Após reconhecer repercussão geral, STF decidirá sobre a prevalência da negociação coletiva quanto às horas in itinere sobre a previsão legal
Lorena Carvalho
A Lei nº 13.467/2017 (1), conhecida como “Reforma Trabalhista”, em vigor desde 11/11/2017, trouxe inúmeras alterações na legislação trabalhista. Dentre elas a exclusão do pagamento das chamadas horas in itinere (art. 58, § 2º da CLT) e a prevalência do negociado sobre o legislado, com a introdução do art. 611- A, da CLT.
As horas in itinere, chamadas de horas de percurso ou de trajeto, consistem no tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e o tempo gasto para o seu retorno após a jornada trabalhada.
Antes da Reforma Trabalhista, o tempo de trajeto era devido ao empregado como horas extras, caso ultrapassassem a sua jornada de trabalho, desde que o local fosse de difícil acesso ou não servido de transporte público.
A Lei nº 13.467/2017 excluiu expressamente tal benesse, trazendo a seguinte previsão ao art. 58, § 2º da CLT:
Art. 58, § 2º O tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador.
Ocorre, no entanto, que as demandas trabalhistas que discutem o direito às horas in itinere no período anterior à vigência da Lei 13.467/2017 devem ser regidas pelas normas previstas à época, tendo em vista que as normas de ordem material não retroagem. Portanto, as decisões dessas demandas são de extrema relevância, tendo em vista o alto impacto no passivo trabalhista de uma empresa quanto às horas in itinere pleiteadas em relação ao período anterior a 11/11/2017.
Em notícia datada de abril de 2019 [2] e divulgada no site do tribunal, relata-se que o Tribunal Superior do Trabalho (“TST”), nos autos do processo nº 470-18.2014.5.09.0017, concluiu pela inadmissibilidade do recurso extraordinário, e não remeteu os autos para o STF, assinalando que “não há questão constitucional no exame da validade de norma coletiva de trabalho que limita o pagamento de horas in itinere” (2).
Após tal entendimento, o Supremo Tribunal Federal (“STF”) se posicionou sobre o tema. Apesar de ainda não haver análise do mérito, que será julgado posteriormente, a decisão do STF no ARE 1.121.633, datada de 03/05/2019, reconhecendo a repercussão geral da matéria (validade da norma coletiva que restringe ou limita as horas in itinere) é de suma importância para o tratamento das demandas nessa temática. Determinou-se que os Recursos Extraordinários sejam remetidos e analisados pelo STF, dando esperanças ao empregador que negociou com o Sindicato a redução ou exclusão das horas in itinere, normalmente concedendo vários outros benefícios aos empregados.
Cumpre ressaltar que a Constituição Federal reconhece expressamente os acordos coletivos e convenções coletivas de trabalho, por meio do artigo 7º, inciso XXVI, e, portanto, o ajuste celebrado com o Sindicato tem plena e total eficácia, podendo as partes, por intermédio das entidades sindicais, ceder a determinados direitos, ou regulá-los de forma diversa da estipulada em lei.
Assim, qualquer decisão que contrarie o estabelecido nas cláusulas convencionais, estaria incorrendo em ofensa à literalidade da norma do art. 7º, inciso XXVI, CR/88, in verbis:
Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XXVI – reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho;
Tal prestígio tem arrimo no fato de que as negociações coletivas representam a vontade de todas as partes envolvidas, visto que fazem concessões recíprocas a fim de regular uma situação de modo vantajoso a ambas.
Importante ressaltar que as convenções e os acordos coletivos legitimamente firmados pelas representações sindicais hão de ser reconhecidos e fielmente observados. E mais, diante da inquestionável subjetividade dos conceitos de prejuízo e benefício para o trabalhador, as normas coletivas devem ser analisadas como um todo indivisível e não isoladamente, conforme aplicação da teoria do conglobamento.
A indisponibilidade dos direitos trabalhistas deve ser tratada com rigidez nas relações diretas entre empregado e empregador, ou seja, no âmbito do Direito Individual do Trabalho, tendo em vista a hipossuficiência e o presumível vício da manifestação de vontade do trabalhador.
O mesmo entendimento não se aplica em relação ao Direito Coletivo do Trabalho, podendo a indisponibilidade ser relativizada, notadamente no que concernente ao quantum pecuniário. A razão de tal diferenciação justifica-se na melhor organização, instrução e estruturação das entidades sindicais, que tem plena capacidade de defender e assegurar os direitos trabalhistas da categoria que representa.
Corroborando com esse posicionamento e reconhecendo validade e prevalência da negociação coletiva sobre a previsão legal, a Reforma Trabalhista introduziu os artigos 611-A (3) e 611-B à Consolidação das Leis do Trabalho (“CLT”).
Nesse sentido, destaca-se que, em decisão recente, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 895.759 (4), decidiu que o acordo coletivo de trabalho deve prevalecer sobre a legislação trabalhista brasileira, com a seguinte ementa:
EMENTA: TRABALHISTA. AGRAVOS REGIMENTAIS NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ACORDO COLETIVO DE TRABALHO. TRANSAÇÃO DO CÔMPUTO DAS HORAS IN ITINERE NA JORNADA DIÁRIA DE TRABALHO. CONCESSÃO DE VANTAGENS DE NATUREZA PECUNIÁRIA E DE OUTRAS UTILIDADES. VALIDADE. 1. Conforme assentado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 590.415 (Rel. Min. ROBERTO BARROSO, DJe de 29/5/2015, Tema 152), a Constituição Federal “reconheceu as convenções e os acordos coletivos como instrumentos legítimos de prevenção e de autocomposição de conflitos trabalhistas”, tornando explícita inclusive “a possibilidade desses instrumentos para a redução de direitos trabalhistas”. Ainda segundo esse precedente, as normas coletivas de trabalho podem prevalecer sobre “o padrão geral heterônomo, mesmo que sejam restritivas dos direitos dos trabalhadores, desde que não transacionem setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade absoluta”. 2. É válida norma coletiva por meio da qual categoria de trabalhadores transaciona o direito ao cômputo das horas in itinere na jornada diária de trabalho em troca da concessão de vantagens de natureza pecuniária e de outras utilidades.
Portanto, a decisão do STF no ARE 1.121.633, reconhecendo a repercussão geral da matéria, evitará decisões do TST, como ocorrido no autos nº 470-18.2014.5.09.0017, que negou provimento ao agravo da empresa contra decisão do vice-presidente do TST, que havia negado seguimento ao recurso extraordinário por meio do qual a empresa pretendia levar o caso ao Supremo Tribunal Federal.
Reconhecida a repercussão geral pelo STF, o TST não mais deverá negar seguimento aos recursos extraordinários interpostos para levar ao STF a discussão quanto à validade das normas coletivas que restringem ou extinguem o direito às horas in itinere, havendo ainda precedente favorável do próprio STF quanto à validade de tais normas, conforme visto no RE 895.759.
Mais informações sobre o tema podem ser obtidas com a equipe trabalhista do VLF Advogados.
Lorena Carvalho Lara
Advogada da equipe trabalhista do VLF Advogados
(1) Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13467.htm>. Acesso em 21 de maio de 2019.
(2) Notícia do TST quanto ao julgamento do processo nº 470-18.2014.5.09.0017. Disponível em: <http://www.tst.jus.br/web/guest/noticias/-/asset_publisher/89Dk/content/id/24864575>. Acesso em 21 de maio de 2019.
(3) Art. 611-A. A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre:
I – pacto quanto à jornada de trabalho, observados os limites constitucionais;
II – banco de horas anual;
(...)
V – plano de cargos, salários e funções compatíveis com a condição pessoal do empregado, bem como identificação dos cargos que se enquadram como funções de confiança;
(...)
(4) Acompanhamento processual do RE895759. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4794743>. Acesso em 21 de maio de 2019.