Doação de empresas privadas para a Administração Pública deve observar regulamentação própria do ente federativo
Maria Tereza Fonseca Dias e Izabella Sabatini
Os particulares podem doar e ceder o uso de bens privados aos órgãos e entidades administrativas por meio dos instrumentos jurídicos previstos no direito privado – tais como doação e comodato – em atenção ao exercício da autonomia privada, observada a titularidade do bem e o direito a sua livre disposição.
Os órgãos e entidades da Administração Pública, observados os princípios da administração pública previstos no art. 37, caput, da CR/88 e a obrigatoriedade de licitar (art. 37, XXI, CR/88) para aquisição de bens, sempre que assumirem com particulares "obrigações recíprocas" por meio de qualquer ajuste que implique acordo de vontades e formação de vínculo jurídico, submetem-se aos ditames da Lei nº 8.666/1993 (art. 2º, Parágrafo Único), cujos princípios estão descritos no seu art. 3º.
No caso de aquisição de bens por meio de doação – ou mesmo nos casos de uso de bem privado por comodato, havendo assunção de encargos pelo poder público, surge, a princípio, a obrigatoriedade de realização da licitação. O fundamento jurídico desta obrigatoriedade é o dever de isonomia e impessoalidade da Administração Pública para com todos os particulares e empreendedores.
Na ausência de uma regra expressa acerca dessa obrigatoriedade há autores – e situações concretas de entidades públicas – que aplicam o art. 17, § 4º, da Lei nº 8.666/1993, consagrando a obrigatoriedade do dever de licitar quando houver recebimento (ainda que gratuito) de bens, porém o dispositivo está voltado para a doação de bens públicos com encargos ao particular.
Veja-se o que determina o art. 17, § 4º, da Lei nº 8.666/1993:
“Art. 17 [...] § 4º - A doação com encargo será licitada e de seu instrumento constarão, obrigatoriamente os encargos, o prazo de seu cumprimento e cláusula de reversão, sob pena de nulidade do ato, sendo dispensada a licitação no caso de interesse público devidamente justificado.”
Recente Acórdão da 2ª Câmara do Tribunal de Contas da União (“TCU”) nº 7916/2018 entendeu que o art. 17, § 4º da Lei nº 8.666/1993 aplica-se tão somente na “situação em que a Administração figura como doadora”.
Entretanto, esse mesmo Acórdão, ao analisar o caso concreto de doação de obra, afirmou que "sendo a Administração a donatária, há outras variáveis a serem dimensionadas."
Em consulta respondida, em 2009, o TCU aquiesceu com a doação de obra pública pelo particular, ao poder público, desde que ela não gerasse encargos à União. Eis a ementa do citado Acórdão:
ACÓRDÃO 1317/2009 ATA 24/2009 - PLENÁRIO - 17/06/2009
Relator: MARCOS VINICIOS VILAÇA
Sumário: CONSULTA. POSSIBILIDADE DE O OPERADOR PORTUÁRIO, ARRENDATÁRIO, REALIZAR DOAÇÃOAO PODER PÚBLICO, SOB FORMA DE OBRAS DE ADEQUAÇÃO DA INFRAESTRUTURA DE PORTOS. RESPOSTA. ARQUIVAMENTO.
A citada manifestação do TCU foi no sentido de que o particular pode doar uma obra à União, desde que não haja assunção de encargo ou dano ao patrimônio público.
O referido raciocínio pode ser aplicado também aos casos de comodato de bens. Assim, havendo assunção de encargo, deverá haver a licitação para a escolha do particular que possa vir a oferecer melhores condições ao setor público, em atenção ao princípio da isonomia e da obtenção da proposta mais vantajosa para a Administração. E, mesmo no caso de doação sem encargo, deve a Administração proceder a avaliação do bem e ao levantamento de eventuais passivos a ele relacionados, para que a aquisição do bem não enseje dano futuro ao patrimônio público.
Considerando, ainda, que a gestão dos bens públicos é de competência de cada entidade federativa, por força da sua autonomia patrimonial (art. 18, CR/1988) é a Administração que opta por disciplinar o recebimento de doações, bem como, diante da situação concreta, em realizar (ou não) a licitação.
As situações de exigência ou não de licitação não são, portanto, taxativas, devendo ser analisado o caso concreto para que se avalie se há ou não o dever de licitar. A licitação (ou chamamento público), nessas hipóteses, poderá ser regida por lei própria, observados os ditames da Lei nº 8.666/1993.
Em síntese: não havendo fixação de encargo e nem dano ao patrimônio público, a doação/comodato pode ser feita por empresa privada sem a necessidade de licitação ou chamamento público. Deverá ser analisado, em cada caso, se há legislação própria do ente federativo (União, Estados, DF e Municípios) disciplinando a matéria.
A título exemplificativo analisa-se o caso de Belo Horizonte. O Município editou o Decreto nº 15.347/2013, que “estabelece procedimentos para o recebimento de doações de bens ou valores pecuniários pela Administração Pública Municipal”.
Para receber qualquer bem ou valores pecuniários, o citado Decreto estabelece, entre outras, as seguintes regras:
a) Toda e qualquer doação de bens ou valores pecuniários a órgãos e entidades da Administração Direta e Indireta do Poder Executivo Municipal será precedida de processo administrativo (art. 2º).
b) Não será admitida doação verbal ou sem atendimento ao disposto no Decreto, inclusive quanto a documentação exigida, identificação do bem, do doador e seu representante, se for o caso (art. 4º).
c) A doação de valores pecuniários somente poderá ocorrer por meio de depósito em conta bancária a ser disponibilizada pela Secretaria Municipal de Finanças ou pela entidade da Administração Indireta, conforme o caso (art. 5º).
d) É vedado o recebimento de doação de bens ou valores pecuniários oriundos de pessoas que estejam respondendo a processo administrativo decorrente de ação de fiscalização em trâmite na Administração Pública Municipal (art. 6º).
e) Deverá ser firmado contrato de doação com o Município, contendo as exigências estabelecidas no referido decreto (art. 3º), cujo extrato será publicado no Diário Oficial do Município (art. 2º, § 3º).
Ademais, segundo o Decreto nº 15.347/2013 (art. 2º, inciso IV) deve constar declaração de que: “o bem está sendo doado a título irrevogável, para ser incorporado ao patrimônio do Município, sem quaisquer ônus presentes ou futuros”.
Além dessa norma geral, o Município de Belo Horizonte também editou o Decreto nº 16.254/2016, que trata da administração da frota de veículos oficiais do Município, disciplinando o recebimento de veículos em doação.
Nesse caso, o art. 54 do Decreto previu que:
“Art. 54 - Toda solicitação de aquisição de veículos ou recebimento dos mesmos em doação deverá ser previamente submetida à apreciação da Secretaria Municipal Adjunta de Gestão Administrativa, para fins de adequação das especificações técnicas dos veículos adquiridos aos padrões da frota utilizada pelo Município, bem como para obtenção de informações acerca da economicidade e dos custos de manutenção e operação da frota.”
Assim, para doar ou ceder em comodato bens privados para o setor público, mister verificar se há exigência de licitação e, mesmo não havendo, se foi editada norma própria, por cada entidade federativa, disciplinando o recebimento de bens e valores.
Maiores informações sobre o tema podem ser obtidas pela equipe de Direito Administrativo do VLF.
Izabella Sabatini
Advogada da Área de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
Maria Tereza Fonseca
Sócia e Coordenadora da Área de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados