O processo de relicitação nos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário da administração pública federal poderá dificultar a indenização do contratado originário (atual concessionário)
Maria Tereza Fonseca Dias
1 Aspectos gerais do processo de relicitação
A Lei nº 13.448, de 5 de junho de 2017, previu a possibilidade de “relicitação” dos contratos de concessão definidos no Programa de Parcerias de Investimentos (“PPI”) (Lei nº 13.334/2016).
A previsão de que nova licitação fosse realizada em contratos vigentes nos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário teve por escopo redimensionar as parcerias anteriormente firmadas, devido a impossibilidade (fática, jurídica, econômica etc.) de dar continuidade aos empreendimentos. Nos termos da Lei nº 13.448/2017 (art. 13) a relicitação pode ser utilizada pelo Governo Federal nas hipóteses em que as “disposições contratuais não estejam sendo atendidas ou cujos contratados demonstrem incapacidade de adimplir as obrigações contratuais ou financeiras assumidas originalmente”.
A relicitação foi definida na lei como o “procedimento que compreende a extinção amigável do contrato de parceria e a celebração de novo ajuste negocial para o empreendimento, em novas condições contratuais e com novos contratados, mediante licitação promovida para esse fim” (art. 4º, III, da Lei nº 13.448/2017).
Ainda nos termos da Lei (art. 13), a relicitação do objeto do contrato de parceria tem por escopo assegurar a continuidade da prestação dos serviços, objetivo que foi reforçado no art. 2º, inciso II, do Decreto nº 9.957/2019.
Assim, conforme explicitado, considerando que a relicitação refere-se à extinção amigável de contrato administrativo vigente para a realização de novo ajuste com base em nova licitação, a legislação cuidou de estabelecer os principais parâmetros para que o procedimento seja realizado, visando assegurar os direitos de todas as partes envolvidas, a saber: do contratado, que irá deixar de executar o objeto pactuado; da Administração Pública Federal; do novo contratado e da sociedade, signatária da prestação dos serviços oriundos da execução do objeto do contrato a ser firmado.
O primeiro aspecto relevante da relicitação é que o procedimento ocorrerá por meio de acordo entre as partes (art. 14 da Lei nº 13.448/2017) em conformidade com a lei e o regulamento, a partir de pedido formulado pela contratada interessada.
Para que a relicitação ocorra, primeiramente deverá ser feita a qualificação dos empreendimentos que poderão ser relicitados, a partir do requerimento apresentado pelo atual contratado; após a qualificação, será necessário celebrar termo aditivo ao contratado atual. A seguir, o Governo Federal iniciará o processo de relicitação, seguindo os mesmos trâmites preparatórios para celebração de uma nova parceria, inclusive quanto à necessidade de aprovação de novo plano de outorga e requisitos previstos na legislação (art. 9º, Decreto nº 9.957/2019). É nessa etapa que serão elaborados o edital de relicitação e a minuta do futuro contrato de parceria. O Decreto, por fim, traz especificidades referentes às indenizações a serem eventualmente pagas à contratada atual.
Procedimentos da Relicitação:
Qualificação dos emprendimentos > Celebração de Termo Aditivo ao Contrato > Fase preparatória da licitação > Indenizações, licitação e contratação
2 Atribuições e responsabilidades da Administração Pública Federal
Caberá a Administração Pública Federal avaliar a possibilidade de instauração do processo de relicitação, tendo em vista os aspectos operacionais e econômico-financeiros do contrato e a continuidade dos serviços envolvidos (art. 14, § 1º, Lei nº 13.448/2017).
A relicitação propriamente dita será precedida da qualificação do empreendimento que consiste na formulação e análise do pedido formulado pela contratada originária à agência reguladora competente, conforme requisitos descritos nos artigos 3º a 6º do Decreto nº 9.957/2019.
A qualificação dos contratos que poderão ser relicitados, de acordo com os artigos 4º a 6º do Decreto nº 9.957/2019, caberá às seguintes autoridades: a agência reguladora competente, o Ministério da Infraestrutura, o Conselho do PPI da Presidência da República e o Presidente da República, a quem caberá a deliberação final.
À agência reguladora competente caberá manifestar-se sobre a viabilidade técnica e jurídica do requerimento apresentado pela contratada (art. 4º do Decreto nº 9.957/2019).
Após a manifestação da agência, o processo será remetido ao Ministério da Infraestrutura, ao qual caberá manifestar-se sobre a compatibilidade do requerimento de relicitação com o escopo da política pública formulada para o setor correspondente (art. 5º do Decreto nº 9.957/2019).
A seguir, o processo irá para o Conselho do PPI, ao qual caberá opinar, previamente à deliberação do Presidente da República, quanto à conveniência e à oportunidade da relicitação e sobre a qualificação do empreendimento no PPI (art. 6º do Decreto nº 9.957/2019).
A seguir, as autoridades responsáveis pela qualificação do empreendimento que será objeto de relicitação:
Agência reguladora > Ministério da Infraestrutura > Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos ("PPI") da Presidência da República > Presidência da República
Vê-se, assim, que devido às diversas instâncias administrativas responsáveis pela análise do pedido de qualificação dos empreendimentos objeto de relicitação e à complexidade documental a ser apresentada e avaliada pela contratada, a tramitação do pedido poderá ser demorada.
Após a qualificação dos empreendimentos que poderão ser relicitados, caberá à agência reguladora competente ou ao Ministério da Infraestrutura, quando for o caso, adotar as medidas necessárias à realização da relicitação do empreendimento qualificado. Para tanto, a entidade ou o órgão competente promoverá o estudo técnico – incluindo todos os itens definidos em lei (art. 17, § 1º da Lei nº 13.448/2017) para subsidiar a relicitação dos contratos de parceria, visando a assegurar a viabilidade econômico-financeira e operacional do novo contrato (art. 17), podendo, para tanto, consultar os financiadores do contratado (art. 17, § 3º). Além disso, a Administração Federal deverá submeter os estudos de que trata o art. 17 desta Lei à consulta pública, atendendo aos requisitos do art. 18 da Lei e, posteriormente, está obrigada a encaminhar tais estudos ao Tribunal de Contas da União, juntamente com os demais documentos do processo de relicitação.
3 Atribuições e responsabilidades do contratado originário (atual concessionário)
O contratado originário (atual concessionário) deverá demonstrar intenção de aderir ao processo de relicitação e, para tanto, estará obrigado a apresentar diversos documentos e subsídios referentes à execução do contrato (art. 14, § 2º, da Lei nº 13.448/2017) que possibilitem a tomada de decisão de ambas as partes. Dentre eles, destacam-se a apresentação de justificativas e dos elementos técnicos que demonstrem a necessidade e a conveniência da adoção do processo de relicitação e as informações necessárias à realização do processo de relicitação, em especial as demonstrações relacionadas aos investimentos em bens reversíveis vinculados ao empreendimento.
O Decreto nº 9.957/2019 detalhou, ainda mais, as informações a serem enviadas pela contratada interessada no requerimento de relicitação, conforme explicitado na documentação constante do seu art. 3º, incisos V e VI. Se, por um lado, tais exigências tornam ainda mais complexo e burocrático o procedimento, por outro, elas podem instruir, com informações mais precisas, a tomada de decisão e ainda tornar o acordo firmado entre as partes e os critérios e procedimentos da nova licitação mais transparentes.
A intenção de aderir a relicitação, nos termos da Lei nº 13.448/2017, é irretratável e irrevogável e deve ser seguida da renúncia dos seguintes direitos: renúncia ao prazo para corrigir eventuais falhas e transgressões em caso de instauração do processo de caducidade da concessão (art. 38, § 3º, da Lei nº 8.987/1995) e renúncia expressa quanto à participação no novo certame ou no futuro contrato de parceria relicitado.
Logo, nos termos do art. 16 da Lei nº 13.448/2017, o contratado que adere à relicitação não poderá participar do novo certame.
O acordo entre as partes propriamente dito será feito por meio de termo aditivo ao contrato por meio do qual a contratada aquiesce em: i) aderir a relicitação e na extinção amigável do ajuste originário; ii) suspender as obrigações de investimento vincendas e definir as condições mínimas em que os serviços deverão continuar sendo prestados pelo atual contratado até a assinatura do novo contrato de parceria; iii) submeter-se à arbitragem no tocante às questões que envolvam o cálculo das indenizações devidas pelo órgão ou pela entidade competente. (art. 15, incisos I a III). O Decreto nº 9.957/2019 detalhou ainda mais os conteúdos do termo aditivo em seu art. 8º, acrescentando-lhes novos itens.
O termo aditivo também poderá prever que as indenizações devidas à contratada serão pagas pelo novo contratado – nos termos e limites previstos no edital da relicitação – ou diretamente aos financiadores do contratado original (art. 15, § 1º, I e II).
A lei ainda estabelece outras especificidades do processo, tratando, inclusive, da hipótese e consequências da licitação deserta, ou seja, quando não acudirem interessados (art. 20).
4 A relicitação e as indenizações ulteriores ao contratado originário (atual concessionário)
O maior desafio da relicitação das concessões nos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário, pelo Governo Federal, encontra-se nas consequências que a interrupção prematura de contratos de longo prazo pode causar, entre as quais se destaca o direito à indenização devida à concessionária. Nos termos da Lei Geral de Concessões (art. 35), a extinção da concessão implica em: a) retornar ao poder concedente todos os bens reversíveis, direitos e privilégios transferidos ao concessionário conforme previsto no edital e estabelecido no contrato; b) a possibilidade de imediata assunção do serviço pelo poder concedente, com a ocupação das instalações e a utilização, pelo poder concedente, de todos os bens reversíveis; c) a realização dos levantamentos, avaliações e liquidações necessários para a determinação dos montantes da indenização que será devida à concessionária.
Pela Lei da relicitação, tais direitos do Poder Concedente já seriam transmitidos à concessionária, considerando o que dispuser o edital e o contrato a ser firmado com base na legislação de regência.
Por fim, ainda que se estabeleçam os valores da indenização devida ao contratado originário, a extinção dessas concessões já antevê que os conflitos gerados por todo esse processo poderão ser ulteriores à própria relicitação. Nesse sentido, o art. 11, § 2º, do Decreto nº 9.957/2019 prediz que, em que pese o pagamento das indenizações apuradas ser condição para o início do novo contrato de parceria, outros valores poderão ser apurados e pagos posteriormente, decorrentes de decisão judicial, arbitral ou outro mecanismo privado de resolução de conflitos, na forma prevista no inciso IV, do art. 8º.
A legislação de regência da relicitação, portanto, não impõe a determinação dos montantes da indenização efetivamente devida à concessionária.
Maria Tereza Fonseca Dias
Sócia e Coordenadora da Área de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados