EIRELI completa três anos, e a possibilidade de constituição por pessoas jurídicas ainda enseja discussão
Paulo Vítor Ângelo
Em janeiro de 2015, completaram-se três anos desde que a figura da empresa individual de responsabilidade limitada – EIRELI foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro. Baseada em modelos já experimentados por outras jurisdições, a EIRELI veio para preencher importante lacuna existente no Direito de Empresa nacional. Até então, devido à inexistência de instituto que impusesse limites à responsabilidade do empreendedor para o exercício individual da atividade empresária, era comum a constituição de sociedades limitadas “de fachada”, nas quais um único sócio possuía interesse concreto no empreendimento. Os demais, detentores de participação irrelevante no capital social, se limitavam ao exercício da chamada “função cítrica”: apenas emprestavam os seus nomes para que restasse caracterizada a pluralidade de sócios, figurando assim como verdadeiros “laranjas”.
As bases fundamentais da EIRELI, tal qual a conhecemos, foram lançadas em projeto de lei apresentado ao Congresso Nacional pelo Dep. Marcos Montes Cordeiro (DEM/MG) no mês de fevereiro de 2009 (PL 4.605/2009), o qual, após rápida tramitação em ambas as casas legislativas, recebeu a sanção presidencial e deu origem à Lei nº 12.441/2011. Esta, além de incluir o artigo 980-A ao Código Civil, alterou os seus artigos 44 e 1.033, para atribuir personalidade jurídica à EIRELI e permitir que as empresas individuais de responsabilidade limitada se originem da conversão de sociedades que eventualmente se encontrem em situação de unipessoalidade.
De inegável utilidade prática – e para alívio dos “testas de ferro em potencial”, como parentes, amigos e empregados –, a EIRELI vem aos poucos caindo no gosto do empresariado. Conforme dados divulgados pela Junta Comercial do Estado de Minas Gerais em seu site oficial (1), a partir da implementação do instituto, no ano de 2012, o número de EIRELIs constituídas perante aquele órgão apresenta tendência crescente, ocupando uma fatia cada vez maior do número absoluto de registros anuais realizados. Em sentido oposto, os dados evidenciam para o mesmo período um decréscimo gradual no número de registros de sociedades limitadas e empresários individuais, ano após ano. Fatos indissociáveis que indicam que a EIRELI vai atingindo os objetivos pensados pelo legislador.
De se notar, contudo, que os números apresentados poderiam ser ainda mais acentuados. Se o texto da Lei nº 12.441/2011 não passou incólume às críticas de especialistas devido à existência de disposições controversas e incorreções terminológicas, uma discussão, em especial, assumiu posição de destaque desde a sua entrada em vigor: a possibilidade de constituição de EIRELIs por pessoas jurídicas.
Os argumentos dos defensores desta ideia já não são novos. Mas permanecem sólidos.
Por um lado, o artigo 980-A do Código Civil estabelece que a EIRELI será constituída por uma única “pessoa”, sem distinguir pessoas naturais de pessoas jurídicas. Por outro, o antigo Departamento Nacional de Registro do Comércio – DNRC, na Instrução Normativa nº 117/2011, aprovou o então vigente Manual de Atos de Registro de Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI, cujo item 1.2.11 restringia a capacidade para a constituição às pessoas naturais. As Juntas Comerciais, de imediato, adotaram este posicionamento. De sua vez, parte considerável da doutrina discordou da posição, ao argumento de que o DNRC feria o princípio da legalidade por tentar impor restrição não estabelecida em lei. Iniciou-se assim o impasse.
Vale observar que do PL 4.605/2009 constava originariamente a disposição de que as EIRELIs seriam constituídas “por um único sócio, pessoa natural” (2). No entanto, durante sua tramitação na Câmara dos Deputados, houve alteração substancial pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), que acabou por definir a atual redação do caput do art. 980-A do Código Civil (3). Dentre as alterações realizadas, se destaca a substituição da expressão “pessoa natural” por, simplesmente, “pessoa”, suprimindo-se o termo “natural”.
Não teria sido a intenção do legislador admitir a possibilidade de que as pessoas jurídicas também fossem titulares de EIRELIs (4)? Se o seu objetivo fosse restringir a capacidade para a constituição ao âmbito das pessoas naturais, não o teria feito expressamente, como no caso do §2º do art. 980-A (5)? É o que nos parece. Mas não aos olhos da entidade registral, que em sua ânsia legislativa, ignora os benefícios decorrentes da extensão desta prerrogativa às pessoas jurídicas, como a eliminação de burocracia desnecessária e a facilitação à realização de investimentos no território nacional por sociedades estrangeiras (6)
Com a extinção do DNRC, substituído em suas funções pelo Departamento de Registro Empresarial e Integração – DREI, houve a expectativa de que os novos manuais de registro trouxessem soluções para alguns dos controversos entendimentos cegamente adotados pelas Juntas Comerciais. Os novos manuais, no entanto, aprovados pela Instrução Normativa DREI nº 10/2013, não apresentaram grandes novidades em relação àqueles anteriormente editados pelo DNRC. Estas expectativas foram renovadas com a notícia da nova modificação aos manuais de registro, promovida pela Instrução Normativa DREI nº 26/2014. Em vão.
Diante da injustificada restrição imposta, as pessoa jurídicas que desejam titularizar EIRELIs vêm procurando obter o direito ao registro pelas vias judiciais. E ainda em 2012, começaram a surgir decisões confirmando esta possibilidade. Uma coerente tendência do Poder Judiciário, digna de elogios dos críticos – que, ao que tudo indica, estão em maioria.
É curioso observar que o próprio DNRC, em um primeiro momento, admitiu a hipótese de que as EIRELIs fossem titularizadas por pessoas jurídicas. O manual de registro anexo à Instrução Normativa nº 117/2011, em sua versão original, publicada no Diário Oficial da União de 30.11.2011, abria espaço para esta possibilidade. No entanto, referida instrução normativa veio a ser republicada no Diário Oficial da União de 22.12.2011, à alegação da existência de incorreções no original de seu anexo. Incluiu-se, a partir daí, a restrição.
A motivação da autoridade registral para impor esta exceção às pessoas jurídicas, se existente, permanece um mistério. E a empresa individual de responsabilidade limitada, concebida para simplificar a vida do empresariado, celebra os seus três anos de existência em meio a mais discussões do que certezas.
Paulo Vítor Ângelo
Advogado da equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados.
(1) http://www.jucemg.mg.gov.br/ibr/informacoes+estatisticas
(2) O PL 4.605/2009 propunha, originariamente, a introdução do art. 985-A ao Código Civil, tendo o caput do dispositivo a seguinte redação: “A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por um único sócio, pessoa natural, que é o titular da totalidade do capital social e que somente poderá figurar numa única empresa dessa modalidade”.
(3) Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País.
(4) Aparentemente, é essa a intenção da comissão de juristas responsável pela elaboração do anteprojeto do Código Comercial, convertido no Projeto de Lei do Senado nº 487/2013. Dito projeto, extinguindo a EIRELI, cria a sociedade limitada unipessoal, titularizada tanto por pessoas naturais quanto por pessoas jurídicas. Tal fato, por si só, indica a existência de um clamor do empresariado por essa possibilidade; mais do que isso, demonstra que não seria nenhuma anomalia jurídica a hipótese de titularização de EIRELIs por pessoas jurídicas.
(5) §2º A pessoa natural que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade.
(6) Há no ordenamento jurídico brasileiro a figura da subsidiária integral, pessoa jurídica constituída por um único sócio, também pessoa jurídica. No entanto, deve esta pessoa jurídica ser, necessariamente, sociedade brasileira. Ademais, a subsidiária integral se reveste do formato de sociedade anônima, e assim, está sujeita ao regime mais complexo e dispendioso da Lei nº 6.404/1976, o que normalmente vincula a sua utilização a investimentos de maior monta.