Como conciliar o cumprimento contratual e as instabilidades causadas pela pandemia do COVID-19
Fernanda Galvão e Alice Pereira
A pandemia do COVID-19 (“Coronavírus”) se agrava de forma exponencial e, para além dos impactos que causa à saúde pública, implica dificuldades econômicas sem precedentes, afetando fortemente a dinâmica contratual.
Diante disso, surgem algumas dúvidas, como: é possível suspender ou resolver contratos com base na força maior? Podem as partes renegociar o contrato? O que fazer se o credor se recusar a alterar o que foi pactuado? Se o devedor descumprir suas obrigações contratuais, estará sujeito a penalidades?
No campo do direito contratual há vários caminhos que se podem seguir para enfrentar o atual cenário, no qual o cumprimento dos contratos, durante esse momento de crise aguda, se revela um verdadeiro desafio.
Sabe-se que, em se tratando de contratos, no direito brasileiro, a regra fundamental é de que o pacto deve ser cumprido, respondendo a parte inadimplente pelos prejuízos a que der causa. Porém, essa regra pode sofrer atenuações pela lei, que estabelece casos em que não haverá obrigação de indenizar caso o devedor não cumpra as obrigações contratualmente firmadas. Isso acontece em duas hipóteses: a ocorrência de caso fortuito e força maior; e a renegociação da avença.
O caso fortuito e força maior é caracterizado por um evento que: (i) ocorre por influência de um fato da natureza ou de um terceiro, externo às partes; (ii) é inevitável, ou seja, as partes não têm meios hábeis para evitar seus efeitos e (iii) gera a impossibilidade de cumprimento de uma obrigação.
Portanto, o devedor que comprovar a ocorrência de evento com tais características pode se exonerar do cumprimento da obrigação que se impossibilitou. É importante destacar, contudo, que há duas situações em que, mesmo diante de eventos desta natureza, o devedor responderá, a saber: se já estiver inadimplente no momento da ocorrência do evento inesperado ou se as partes estipularam no contrato prevendo que o devedor será responsabilizado ainda que ocorra caso fortuito ou de força maior.
No caso da pandemia pelo COVID-19, os requisitos da inevitabilidade são mais fáceis de se comprovar. Por exemplo, pode ser considerado como inevitável o fato de terem sido impostas diversas medidas restritivas pelo Poder Público para conter o avanço da disseminação da doença, como o fechamento de estabelecimentos considerados não essenciais.
Contudo, será indispensável, também, demonstrar, a fim de caracterizar o caso fortuito e força maior, o requisito da impossibilidade do cumprimento da obrigação. Isto é, se os efeitos da pandemia trazem barreiras intransponíveis ao devedor no cumprimento das obrigações no caso concreto.
Como o mundo contemporâneo nunca viveu uma situação parecida com esta, não se sabe ao certo como o Poder Judiciário irá interpretar as regras para a caracterização de caso fortuito e força maior. Tendo em vista a gravidade da pandemia causada pelo COVID-19 e seus efeitos nefastos nas atividades econômicas, é possível que o Poder Judiciário faça uma interpretação ampliativa dos requisitos da força maior ou, em outros termos, relaxe os requisitos na sua aplicação.
Pois bem, na hipótese de caracterização do caso fortuito e força maior, permite-se que a exigibilidade da prestação fique suspensa pelo tempo em que ela se mantiver impossível de ser realizada.
Uma vez cessado o evento, as obrigações voltam a ser exigíveis. Logo, a consequência jurídica da caracterização da força maior em questão, inicialmente, é a suspensão das obrigações contratuais que, somente nesse período, se tornam impossíveis de serem cumpridas.
Ressalva-se que, se os efeitos da pandemia forem capazes de tornar determinada obrigação definitivamente impossível de ser realizada ou se o interesse do credor, naquela prestação, se perder, devido ao transcurso de tempo, ou seja, se o cumprimento da obrigação não lhe for mais útil, o credor tem a faculdade de pedir a resolução do contrato conforme autoriza o Código Civil. Contudo, nesse caso, o devedor não estará obrigado a pagar ao credor indenização por eventuais perdas e danos, já que o devedor não teve culpa no descumprimento contratual, ocorrendo este de forma involuntária.
Por sua vez, a renegociação da avença pode se dar, em geral, por livre vontade das partes que resolvem readequar o contrato; ou por determinação judicial.
No primeiro caso, tem-se que as contratantes podem livremente, em um mútuo acordo e a qualquer momento, realizar a revisão do contrato, adequando-o conforme seus interesses. No segundo caso, tem-se a possibilidade de pedir, judicialmente (ou por arbitragem), a revisão da avença, caso as partes não tenham conseguido chegar num consenso.
Se, por um motivo imprevisível, houver desequilíbrio no valor da prestação devida entre o momento em que foi ajustada e o momento de sua execução, a parte interessada pode pedir, judicialmente ou por arbitragem, a revisão, nos termos do previsto no art. 317 CC/2002.
Por motivo imprevisível, entende-se aquele que não pode ser imputável às partes e que era impossível às partes anteverem tal acontecimento. Além disso, a desproporção da prestação devida deve ser manifestamente expressiva.
Assim, aqueles que conseguirem demonstrar que efeitos da pandemia pelo COVID-19 no seu caso concreto constitui um motivo imprevisível, bem como a desproporção da prestação como acima referido, poderão requerer ao Poder Judiciário a revisão da avença. Caberá ao Juiz, portanto, analisar e interpretar se estarão presentes os requisitos, e, em caso afirmativo, procederá à revisão de modo a assegurar, quanto possível, o valor real da prestação, conforme previsto no art. 317 CC/02.
O art. 478, CC/02, a seu turno, traz requisitos um pouco diferentes para que haja a revisão do que foi ajustado entre as partes. São estes: (i) contratos de execução continuada ou diferida; (ii) extraordinariedade dos acontecimentos; (iii) que estes acontecimentos sejam imprevisíveis; (iv) tragam ônus excessivo para uma das partes; e (v) extrema vantagem para a outra.
Presentes os requisitos acima referidos, o devedor pode pedir a resolução do contrato. Contudo, se o credor se oferecer para renegociar a avença, o juiz ou árbitro, determinará que as partes o façam, a teor do previsto no art. 479, CC/02, preservando assim o contrato, evitando a sua resolução.
Registra-se que a demonstração dos requisitos para revisão de contratos com fundamento no art. 478 pode ser uma tarefa árdua, em especial o requisito da extrema vantagem para outra parte. Isso, porque muitas vezes aquilo que causa uma enorme perda para uma das partes pode não resultar, necessariamente, em extrema vantagem para outra parte. Trata-se de conceito jurídico muito aberto e que ainda não há jurisprudência suficiente para sinalizar como será a interpretação.
Dessa forma, tem-se um panorama geral sobre as possíveis medidas e caminhos, conforme o direito brasileiro, quanto ao cumprimento dos contratos diante dos impactos nefastos que a pandemia já causa ao redor de todo planeta e em todos os segmentos da economia mundial.
Para auxiliá-lo a tornar o cumprimento contratual menos desafiador no atual cenário, o VLF constituiu a Task Force COVID-19, que reúne profissionais qualificados e especializados, para atendê-los neste momento que exige a resolução de questões complexas e com muita rapidez.
Fernanda Galvão
Sócia e Coordenadora da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
Alice Pereira
Trainee da Equipe de Consultoria do VLF Advogados