O fim do voto de qualidade no CARF, que nunca foi voto de minerva
Vinícius Vasconcelos e Rafhael Frattari
As últimas semanas foram de grande expectativa no meio tributário a respeito do destino do voto de qualidade nos julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”). O desfecho desse capítulo foi favorável aos contribuintes: o art. 28 da Lei n. 13.988 (1) alterou a legislação e definiu que no caso de empate, o litígio é resolvido favoravelmente ao contribuinte.
Apesar das alegações de que o fim desse instituto não poderia ter sido feito mediante a inclusão em Medida Provisória que não tratou originariamente do assunto (que ignoram que o tema disciplinado no diploma é justamente a dinâmica extrajudicial de extinção de créditos tributários), o resultado não foi apenas positivo para os contribuintes: trata-se de um retorno às raias legais.
Conforme abordado em capítulo escrito pelos autores desse artigo em obra de 2018 dedicada ao saudoso Ministro Teori Zavascki (2), o ordenamento jamais permitiu que o voto de minerva fosse um voto duplo.
O art. 25, §9º do Decreto n. 70.235/72 (3) apenas previa que os presidentes das Turmas dos órgãos colegiados teriam o voto de qualidade. Porém, o art. 54 do Regimento Interno do CARF (4) ultrapassou essa previsão e estabeleceu que o Presidente teria o voto de qualidade, além do voto ordinário.
Veja-se: o Decreto n. 70.235/72 (5) nunca conferiu ao Presidente do órgão colegiado a possibilidade de votar duas vezes, mas o Regimento Interno do CARF o fez, desfigurando o instituto e desequilibrando os julgamentos. Não poderia um julgador empatar o julgamento e este mesmo julgador decidir a disputa, sob pena da quebra da imparcialidade e da impessoalidade, que é constitucionalmente cogente para a Administração Pública (6).
A situação era ainda mais dramática no que dizia respeito a multas tributárias, sobretudo às multas qualificadas por fraude ou dolo, na medida que o art. 112 do Código Tributário Nacional (7) claramente aponta que, no caso de infrações, a dúvida implica julgamento favorável ao contribuinte.
O problema, de fato, nunca esteve apenas no voto de qualidade, mas sim na maneira em que foi formatado no âmbito do CARF, em violação à lei, à legislação complementar e aos princípios que regem a administração pública. Nunca se teve um verdadeiro voto de minerva.
Embora tenha havido surpresa com o fim do voto de qualidade, essa alteração normativa é fruto de opção legislativa e não tem qualquer incompatibilidade com o sistema jurídico.
Seja como for, não deixa de ser curiosa a reação da Receita Federal e de alguns advogados dos contribuintes! Passou-se a temer que os “Conselheiros dos contribuintes” pudessem sozinhos definir uma votação!! Ora, a discussão já parte de uma premissa equivocada: não há Conselheiros dos contribuintes ou do fisco: há Conselheiros indicados pelos contribuintes ou pelo fisco, mas que devem ser, simplesmente, Conselheiros, agindo com independência e liberdade de convencimento, como muitos, aliás, sempre o fizeram.
Talvez essa suposição seja exatamente pela constância dos chamados votos de bancada e pelo receio de que agora os contribuintes valham-se dele como o fisco sempre se valeu!!
Para embasar melhor essa discussão seria importante termos dados sobre a ocorrência dos chamados votos de bancada ou mesmo sobre os valores envolvidos nos casos na Câmara Superior em que o voto da qualidade foi proferido contra e a favor da tese dos contribuintes. Seriam informações interessantes para uma pesquisa em Direito.
Enfim, espera-se que a alteração legislativa seja mantida pelo Governo Federal já que nada há sobre ela que o Judiciário possa fazer, é uma opção legislativa, como já dito.
De mais, oxalá o debate colocado pela inovação possa impulsionar a reflexão sobre o próprio processo administrativo tributário e a forma pela qual se desenvolve a jurisdição na discussão sobre a exigência dos tributos.
Mais informações sobre o tema podem ser obtidas com a equipe de Direito Tributário do VLF Advogados.
Vinícius Vasconcelos
Advogado da Equipe de Direito Tributário do VLF Advogados
Rafhael Frattari
Sócio da Equipe de Direito Tributário do VLF Advogados
(1) Art. 28. A Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 19-E:
“Art. 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.”
(2) FRATTARI, R.; ALVES, V. A. V. R. As multas, o voto de qualidade no CARF e o art. 112 do CTN. In: MURICI, Gustavo Lanna; CARDOSO, Oscar Valente; RODRIGUES, Raphael Silva (Org.). Estudos de direito processual e tributário e em homenagem ao Ministro Teori Zavascki. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2018. p. 985-1000.
(3) Art. 25. […] § 9º Os cargos de Presidente das Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, das câmaras, das suas turmas e das turmas especiais serão ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional, que, em caso de empate, terão o voto de qualidade, e os cargos de Vice-Presidente, por representantes dos contribuintes.
(4) Art. 54. As turmas só deliberarão quando presente a maioria de seus membros, e suas deliberações serão tomadas por maioria simples, cabendo ao presidente, além do voto ordinário, o de qualidade.
(5) BRASIL. Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972. Dispõe sobre o processo administrativo fiscal, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D70235cons.htm. Acesso em: 17 abr. 2020.
(6) Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: […]
(7) Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:
I - à capitulação legal do fato;
II - à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos;
III - à autoria, imputabilidade, ou punibilidade;
IV - à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.