COVID-19: Mudanças no regime jurídico das compras públicas brasileiras visam agilizar contratos*
Maria Tereza Fonseca Dias
O Brasil tornou-se rapidamente o epicentro da disseminação da COVID-19 no mundo, com elevado número de pessoas contaminadas e de mortes. De acordo com os dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde em 19 de junho de 2020 (1), o Brasil já acumulava 47.778 mortes em decorrência da COVID-19 e 978.142 pessoas diagnosticadas – sendo o segundo país com a maior incidência de mortes pela doença (2).
De 3 de fevereiro a 9 de junho de 2020, o Estado brasileiro editou 355 normas tratando da pandemia da COVID-19 (emenda à Constituição, leis, medidas provisórias, decretos, portarias etc.) em seus vários aspectos: saúde pública, trabalho, contratos privados, tributação, atividades e serviços essenciais, fronteiras, funcionamento da Administração pública e diversos outros assuntos (3).
O balanço encontrado e divulgado até aqui, encontra-se a seguir:
Normas editadas tratando da Pandemia da COVID-19
• Emenda à Constituição: 1
• Lei Complementar: 2
• Lei: 9
• Medida Provisória: 51
• Decreto Legislativo: 1
• Decreto: 32
• Ato conjunto da Câmara e do Senado: 1
• Instrução Normativa: 10
• Resolução: 47
• Portaria: 192
• Decisão: 3
• Recomendação: 3
• Deliberação: 1
• Circular: 1
• Projeto de Lei: 1
• TOTAL: 355
A pandemia do coronavírus trouxe desafios inéditos no campo das compras públicas, que vão desde a necessidade de aquisição de bens e serviços de forma célere até a escassez desses mesmos bens e serviços no mercado, afetando duramente os preços e o pagamento dessas aquisições.
No caso das compras públicas, foram editadas novas regras para atender a situação de calamidade pública decorrente da pandemia, entre as quais destacam-se: a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, a Emenda à Constituição nº 106, de 7 de maio de 2020 (legislação primária editada pelo Legislativo), e as Medidas Provisórias nº 926, de 20 de março de 2020, nº 951, de 15 de abril de 2020 (que alteraram a Lei nº 13.979/2020), e nº 961, de 6 de maio de 2020.
A primeira regra editada (a Lei nº 13.979/2020), apresentou as seguintes mudanças temporárias no sistema de compras públicas:
- Conferiu discricionariedade às autoridades públicas para registrar preços ou adquirir bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da pandemia, sem a necessidade de realização de licitação, enquanto perdurar a situação de emergência. Na prática, ampliou as hipóteses de contratação direta.
- Estabeleceu, porém, limites a esta discricionariedade, como: a) período da pandemia; b) atendimento da situação emergencial da pandemia; c) existência de risco à segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens – públicos ou particulares; d) contratação limitada somente à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência.
- Autorizou, excepcionalmente, empresas inidôneas ou suspensas de contratar com o Poder Público quando for a única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido.
- Simplificou o processo e a instrução processual referente a: estudos preliminares; termo de referência simplificado, gerenciamento de riscos na gestão do contrato; pesquisa de preços, redução de prazos na publicação de editais e do procedimento licitatório, realização e audiência pública; dispensa de apresentação de documentos, notadamente na fase de habilitação.
- As licitações realizadas por meio de sistema de registro de preços (“SRP”) serão consideradas compras federais, mediante prévia indicação da demanda pelos Estados e Municípios.
- Há possibilidade de ampliação dos prazos dos contratos. Como regra, o prazo será de seis meses, porém poderão ser prorrogados por períodos sucessivos, enquanto perdurar a necessidade de enfrentamento da COVID-19.
- Houve a ampliação dos valores de alteração contratual unilateral de 25% para 50% do valor do contrato, a ser feito pela autoridade pública, nos casos de obras, serviços ou compras. Assim, o governo poderá prever que os contratados fiquem obrigados a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões ao objeto contratado, em até 50% do valor do contrato atualizado.
- Transparência: todas as informações essenciais dos contratos firmados para atender a pandemia deverão ser imediatamente disponibilizadas em site oficial específico da internet.
A Medida Provisória nº 961, por sua vez, instituiu as seguintes regras no contexto de contratos públicos durante a pandemia: a) pagamento antecipado; b) aumento dos limites de dispensa de licitação; c) ampliação do uso do Regime Diferenciado de Contratação Pública (“RDC”).
O pagamento antecipado nas licitações e nos contratos administrativos poderá ser realizado se: a) for condição indispensável para obter o bem ou assegurar a prestação do serviço; ou b) propiciar significativa economia de recursos. Além disso, a antecipação de pagamento deverá estar prevista no edital ou contrato e também deve exigir a devolução integral do valor antecipado em caso de inexecução do contrato. A legislação veda, entretanto, pagamento antecipado pela Administração na hipótese de prestação de serviços com regime de dedicação exclusiva de mão de obra.
Nas hipóteses de licitação dispensável, houve o aumento deste valor. Para obras e serviços de engenharia o valor que era de R$ 15.000,00 (quinze mil reais) passou para R$ 100.000,00 (cem mil reais). Para outros serviços, compras e alienações, passou de R$ 8.000,00 (oito mil reais) para até R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). A contratação pode ser feita sem licitação desde que não se refira a parcelas de uma mesma obra ou serviço, ou, ainda, para obras e serviços da mesma natureza e no mesmo local, que possam ser realizadas conjunta e concomitantemente ou, ainda, a parcelas de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior vulto que possa ser realizada de uma só vez.
A citada Medida Provisória (art. 1º, § 2º, incisos I a V) ainda recomendou que, para reduzir o risco de inadimplemento contratual, a Administração pode também prever outras cautelas, tais como:
I - a comprovação da execução de parte ou de etapa inicial do objeto pelo contratado, para a antecipação do valor remanescente;
II - a prestação de garantia de até 30% do valor do objeto, conforme disciplinado na Lei Geral de Licitações (Lei nº 8.666/1993);
III - a emissão de título de crédito pelo contratado;
IV - o acompanhamento da mercadoria, em qualquer momento do transporte, por representante da Administração; e
V - a exigência de certificação do produto ou do fornecedor.
A Medida Provisória nº 961, por fim, permitiu a utilização do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (“RDC”), de que trata a Lei nº 12.462/2011, para licitações e contratações de quaisquer obras, serviços, compras, alienações e locações durante o estado de calamidade pública. Atualmente o RDC tem hipóteses específicas de aplicação, que foram ampliadas para as contratações durante a pandemia.
O RDC foi assim denominado pelas inovações incorporadas no regime jurídico das contratações públicas brasileiras em relação ao modelo clássico da lei geral (Lei nº 8.666/1993). De maneira bem objetiva, as inovações desse regime são: a) agilidade no procedimento, ao julgar as propostas antes de analisar as qualificações (jurídica, econômica e técnica) das concorrentes; b) previsão do orçamento sigiloso, visando alcançar melhores propostas; c) novos critérios de julgamento das propostas que podem impactar nos resultados da contratação, tais como o “melhor conteúdo artístico” e o “maior retorno econômico”, e, ainda, a d) contratação integrada que visa otimizar os serviços de um mesmo contratado, pois compreende, nos termos da lei, a elaboração e o desenvolvimento dos projetos básico e executivo, a execução de obras e serviços de engenharia, a montagem, a realização de testes, a pré-operação e todas as demais operações necessárias e suficientes para a entrega final do objeto. Na Lei Geral de Licitações, não pode haver, por exemplo, a contratação do projeto de engenharia e construção da obra pela mesma empresa.
Em que pese já estar em tramitação no Congresso Nacional um projeto de lei que visa consolidar, harmonizar e aperfeiçoar o sistema de compras públicas nacional, as normas brasileiras de contratação pública têm um enfoque no aspecto documental e no controle processual (e não de resultados) das aquisições. Trata-se de um sistema, excessivamente formalista e burocrático, apesar de já estar bastante informatizado e o procedimento do pregão, por exemplo, ser bem mais rápido do que o procedimento padrão da concorrência. O atual regime jurídico da contratação pública brasileira é muito mais voltado para tentar conter fraudes do que propriamente em efetuar a melhor compra e obter a proposta mais vantajosa para a Administração.
Como as mudanças estruturais ainda não foram implementadas, a edição de normas especiais para o combate à pandemia era esperada, como ocorreu em todo o mundo. Como descrito, as reformas legais simplificaram o procedimento das licitações e deram maior autonomia às autoridades. Quiçá essas mudanças possam servir de ensaio para o aprimoramento futuro do regime jurídico das contratações públicas e afastar, definitivamente, o mal uso que ainda se faz da res publica.
Maria Tereza Fonseca Dias
Sócia e Coordenadora da Equipe de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
* A versão em inglês deste artigo, com adaptações para o público estrangeiro, foi publicada no blog de Michael Bowsher (advogado e professor visitante no King's College London) sob o título “COVID-19 has not gone away: Changes to Brazilian Public Procurement Law to streamline the Contracting System”. Cf. Michael Bowsher's Mostly Procurement Bulletin or thoughts on Procurement Law and Regulation from various places by the Thames and some other legal themes. Disponível em: https://mostlyprocurement.typepad.com/my-blog/2020/06/covid-19-changes-in-the-brazilian-public-procurement-legal-system-aim-to-streamline-contracts-maria-tereza-fonseca-dias-as.html. Acesso em: 23 jun. 2020.
A revisão técnica do texto em inglês foi efetuada por Bruno Fontenelle (Advogado da Equipe de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados).
(1) PAINEL Coronavírus. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso em: 19 jun. 2020.
(2) BRASIL supera o Reino Unido e é segundo país com mais mortos por coronavírus. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/06/12/brasil-supera-o-reino-unido-e-e-segundo-pais-com-mais-mortos-por-coronavirus.htm. Acesso em: 19 jun. 2020.
(3) BRASIL. Legislação COVID-19. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Portaria/quadro_portaria.htm. Acesso em: 19 jun. 2020.