A descaracterização de imóvel rural sob a ótica do INCRA
Pedro Ernesto Rocha e Larissa Vargas
Para compreender a visão do INCRA sobre o procedimento de descaracterização de imóvel rural é essencial entender como a legislação brasileira classifica um imóvel.
A Lei 4.504/64 (1) (chamada de “Estatuto da Terra”) e a Lei 8.629/93 (2) (Lei da Reforma Agrária) definem o imóvel rural como prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial. Isto é, o critério utilizado é a destinação do imóvel – em outras palavras, é para que o imóvel serve – em detrimento de sua localização geográfica.
Já a Lei 5.172/66 (Código Tributário Nacional ou “CTN”) e a Lei 9.393/96 (3) (Lei do ITR), ao tratarem da incidência do IPTU e do ITR, consideram a localização (fora e dentro da zona urbana do município) como fator determinante para a classificação. Para essas normas, independente da finalidade, caracteriza-se como rural o imóvel localizado na zona rural (que é aquela que está fora do perímetro urbano) e como urbano o imóvel localizado dentro do perímetro urbano definido por lei municipal.
Complicando um pouco mais o assunto, embora o CTN e a Lei do ITR adotem o critério da localização, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) consolidou entendimento no sentido de que o critério da destinação é complementar para a caracterização para fins tributários, ao determinar que “não incide IPTU, mas ITR, sobre imóvel localizado na área urbana do Município, desde que comprovadamente utilizado em exploração extrativa, vegetal, agrícola, pecuária ou agroindustrial (art. 15 do DL 57/1966)”. (4)
E não é só. A Constituição Federal adota o critério da localização quando trata de políticas de desenvolvimento urbano (artigo 182) e de hipóteses de usucapião (artigos 183 e 191), e a Lei 6.766/79 (Lei de Parcelamento do Solo) vai no mesmo sentido (artigo 3º). (5)
Como se vê, há uma profusão de normas tratando sobre o tema, sem que seja possível afirmar que um critério se sobressai ao outro. Parece que prevaleceria a análise casuística, em que um deles seria aplicável de acordo com o caso específico em discussão.
Exposto o aspecto legal básico do assunto, passemos à análise prática fundada na regulamentação do INCRA. Em caráter introdutório, cabe evidenciar porque é relevante a regulamentação do INCRA acerca da descaracterização.
Se um imóvel é considerado rural, ele deverá ter inscrição no Sistema Nacional de Cadastro Rural (“SNCR”) e o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (“CCIR”), que é documento emitido pelo INCRA para comprovar a regularidade cadastral do imóvel rural perante a autarquia, e cuja indicação é indispensável na matrícula imobiliária, conforme a Lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos). (6)
Assim, haverá na matrícula a informação pública de que se trata de imóvel rural. E qualquer negócio jurídico envolvendo o imóvel levará em conta – ou deveria levar – a situação registral do bem. Consequentemente, o mínimo de diligência das partes envolvidas trará à tona a análise da matrícula imobiliária e a classificação do imóvel.
E não poderia ser diferente, pois a percepção exata, pelas partes, de como se caracteriza o imóvel, evidenciará uma série de outras questões que permearão o negócio jurídico, como, por exemplo: se será aplicável a Lei 8.245/91 (Lei de Locação) ou o Decreto 59.566/66 (que dispõe sobre arrendamento rural), em caso de negócio de “locação imobiliária”; aplicação ou não da Lei 5.709/71 e do Decreto 74.965/74, referentes às restrições às operações com estrangeiros etc.
Em suma, do ponto de vista registral, ainda que esteja localizado em perímetro urbano, que sua destinação não seja uma atividade rural definida pelo Estatuto da Terra, ou que não haja nenhuma atividade no local, o imóvel poderá ser documentalmente considerado rural, e essa informação será pública.
Para alterar essa classificação, parece que será inescapável a manifestação do INCRA. Isso, porque mesmo que exista lei municipal definindo como zona urbana a área onde se localiza o imóvel, ou que indubitavelmente o imóvel não se destine a atividades rurais, será necessário que a referida autarquia cancele a inscrição de CCIR. (7)
Eis portanto a razão de ser importante compreender qual é o critério adotado pelo INCRA.
Neste sentido, a Instrução Normativa nº 82/15 do INCRA, que regulamenta o procedimento de descaracterização, adota o critério da destinação. Todavia, a mesma norma exige, dentre os documentos que precisam ser apresentados no requerimento de descaracterização, uma declaração de que o imóvel se encontra em perímetro urbano, e certidão do Município atestando tal fato.
Art. 6º Imóvel rural é a extensão contínua de terras com destinação (efetiva ou potencial) agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial, localizada em zona rural ou em perímetro urbano. […]
Art. 19. Quando o imóvel perder a destinação que o caracterizava como rural, nos termos do Capítulo III, deverá ser providenciada a atualização cadastral, que corresponderá às operações de:
I – cancelamento de cadastro, no caso de descaracterização da área total cadastrada; ou
II – atualização cadastral da área remanescente, no caso de descaracterização de área parcial. [...]
Art. 22. O requerimento, dirigido ao Superintendente Regional, deverá conter os seguintes requisitos mínimos: […] III – declaração de que o imóvel se encontra inserido em perímetro urbano, conforme legislação municipal, e que é de interesse dos titulares utilizá-lo para fins urbanos; […]
Art. 23. O requerimento será instruído com a seguinte documentação: […] II – certidão de localização expedida pelo Município, atestando que o imóvel está inserido no perímetro urbano, com indicação do ato legislativo que o delimitou […].
Ora, a interpretação dessas normas aponta no sentido de que o INCRA trabalha, em verdade, com ambos os critérios. À vista disso, um imóvel rural, vindo a ser incluído em perímetro urbano, mas mantendo suas atividades rurais, continuará sendo considerado rural (em razão de sua destinação), porém, um imóvel rural, localizado na zona rural (fora do perímetro urbano definido por lei municipal), mesmo que deixe de desenvolver atividades rurais, permanecerá como rural (em razão da sua localização).
O critério da destinação seria, por conseguinte, absoluto para classificar um imóvel como rural, mas insuficiente para desclassifica-lo e torna-lo urbano, pois, para tanto, seria necessário aplicar tanto o critério da destinação quanto o da localização. Inclusive, essa interpretação foi corroborada pelo INCRA em processos administrativos que indeferiram a descaracterização de imóveis rurais porque, apesar de não destinados a atividades rurais, os referidos imóveis ainda se localizavam fora do perímetro urbano. (8)
Ante o exposto, pode-se concluir que: (i) o ordenamento jurídico apresenta dois critérios fundamentais para caracterização de imóveis, a saber o da localização e o da destinação, sendo que a aplicabilidade de um ou de outro varia de acordo com a matéria (tributária, cível, fundiária etc.) sob análise; e (ii) para o INCRA, a descaracterização de um imóvel de rural para urbano depende do cumprimento dos dois critérios.
Pedro Ernesto Rocha
Advogado e Coordenador da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Larissa Vargas
Estagiária da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) Lei 4.504/64: “Art. 4º Para os efeitos desta Lei, definem-se: I – ‘Imóvel Rural’, o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agro-industrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada […]”.
(2) Lei 8.629/93: “Art. 4º Para os efeitos desta lei, conceituam-se: I – Imóvel Rural – o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agro-industrial […]”.
(3) Lei 5.172/66: “Art. 29. O imposto, de competência da União, sobre a propriedade territorial rural tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel por natureza, como definido na lei civil, localização fora da zona urbana do Município.” […] “Art. 32. O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município.”
Lei 9.393/96: “Art. 1º O Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural – ITR, de apuração anual, tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel por natureza, localizado fora da zona urbana do município, em 1º de janeiro de cada ano”.
(4) “TRIBUTÁRIO. IMÓVEL NA ÁREA URBANA. DESTINAÇÃO RURAL. IPTU. NÃO-INCIDÊNCIA. ART. 15 DO DL 57/1966. RECURSO REPETITIVO. ART. 543-C DO CPC. 1. Não incide IPTU, mas ITR, sobre imóvel localizado na área urbana do Município, desde que comprovadamente utilizado em exploração extrativa, vegetal, agrícola, pecuária ou agroindustrial (art. 15 do DL 57/1966). 2. Recurso Especial provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução 8/2008 do STJ. (REsp 1112646/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 26/08/2009, DJe 28/08/2009).” (STJ. Repetitivos e IACs. Disponível em: http://www.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&sg_classe=REsp&num_processo_classe=1112646. Acesso em: 19 jun. 2020. Grifo nosso.)
(5) Constituição Federal: “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
§ 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. […]”;
“Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. […]”; e
“Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.”
Lei 6.766/79: “Art. 3º Somente será admitido o parcelamento do solo para fins urbanos em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, assim definidas pelo plano diretor ou aprovadas por lei municipal”.
(6) Lei 6.015/73: “Art. 176 – O Livro nº 2 – Registro Geral – será destinado, à matrícula dos imóveis e ao registro ou averbação dos atos relacionados no art. 167 e não atribuídos ao Livro nº 3. § 1º A escrituração do Livro nº 2 obedecerá às seguintes normas: […] II – são requisitos da matrícula: […] 3) a identificação do imóvel, que será feita com indicação: a – se rural, do código do imóvel, dos dados constantes do CCIR, da denominação e de suas características, confrontações, localização e área”.
(7) Seja antes da nova classificação passar a constar da matrícula do imóvel em razão de Lei Municipal, seja depois. Sobre o tema cabe citar excerto da obra de Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho: “Diante dessa profusão de leis e critérios, indaga-se: como o tabelião e o registrador vão saber se o imóvel é rural ou não? Penso que deverão observar o que estiver contido na matrícula. Se o proprietário quiser fugir das restrições impostas aos imóveis rurais, terá que ser feita a alteração da classificação constante na matrícula, pelas próprias vias, com a averbação da mudança da destinação, quando então deverá haver prévia manifestação do INCRA. […] 881 Não entendo, contudo, deve ser ouvido previamente o INCRA, caso conste do registro de imóveis o terreno ainda como rural, embora o Município, por meio de competente certidão, comprove ter incluído a área nos limites urbanos”. (SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates Castanheira. Direito Registral Imobiliário – Teoria Geral – v. 1. Curitiba: Juruá, 2018. p. 405 – nota 881).
(8) Como foi o caso nos processos:
(i) 54000.124634/2018-13 (o ofício que comunica o indeferimento ao requerente está disponível em: https://sei.incra.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?8RP-Lew_IbefGWQzW_L9_iSIrvR32ujn2-xNU8oupxfpXv5V8jmsfzWmbxQaKunKZ3nM6iVWZqPjmoa7NUOMSjXRQe_0WL8z8gCEAxjrwpSrI8tog0U_in_-YkKzuve4. Acesso em: 23 jun. 2020); e
(ii) 54000.038109/2018-86 (ofício do INCRA ao requerente disponível em:
https://sei.incra.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?8RP-Lew_IbefGWQzW_L9_iSIrvR32ujn2-xNU8oupxc-AGXEvbcmBoGSJ_7O0wIxZsZWcS15KvT-xHqVEliHGPUfszmgi0DgLWMoehLaGmU8SLpEROLJln4D87RBkZeb. Acesso em: 23 jun. 2020).