IPVA é devido ao Estado onde o veículo circula, decide STF
Henrique Coimbra
No último dia 15, o Supremo Tribunal Federal (“STF”), em plenário virtual, decidiu que o IPVA é devido ao Estado onde o automóvel circula.
A Corte apreciou dois processos distintos: a Ação Direta de Inconstitucionalidade (“ADI”) nº 4.612, ajuizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (“CNC”), contra a Lei nº 7.543/1988, do Estado de Santa Catarina; e o Recurso Extraordinário (“RE”) nº 1.016.605, com repercussão geral reconhecida, em que contendem uma empresa de Uberlândia e o Estado de Minas Gerais.
O primeiro diz respeito à exigência feita às empresas locadoras de automóveis para que recolhessem IPVA relativo ao veículo colocado à disposição para locação em Santa Catarina, ainda que tenham elegido domicílio e registrado o automóvel em outro Estado. Ou seja, cuida-se da hipótese em que o contribuinte possui uma pluralidade de domicílios e se discute a constitucionalidade da eleição, por este, do domicílio no qual registrará a propriedade do veículo e pagará o imposto.
A maioria dos ministros entendeu que, no caso de locadoras de veículos, o IPVA é devido ao estado onde o automóvel é disponibilizado. Isso quer dizer que a empresa locadora que tem filiais em vários Estados não pode optar por licenciar e registrar os veículos em apenas um e disponibilizá-los em todo o país.
O ministro Dias Toffoli ressaltou que “o licenciamento deve guardar estreita relação com a propriedade, isto é, com o núcleo da materialidade do tributo” e que se isso não ocorrer, “acabarão surgindo situações incongruentes, e o referido critério não servirá para definir a qual estado pertence a capacidade ativa para cobrar o imposto”.
Toffoli questionou: “que critério deve ser aplicado para se determinar qual a unidade federada tem a capacidade ativa concernente ao IPVA?”. E afirmou: “Julgo não ser apropriado utilizar o critério do efetivo local de licenciamento do veículo. Se isso fosse feito, haveria desconexão entre a cobrança do tributo e sua materialidade”.
O ministro considerou as situações em que empresas realizam o licenciamento e registro de sua frota em determinado Estado, mas continuadamente a coloca à disposição em estabelecimento localizado em outro Estado. Assim, aduziu que:
Nas hipóteses retratadas, o licenciamento (i) dá apenas a aparência de que o aspecto material da exação acontece no estado onde esse ato foi realizado e (ii) cria um elo meramente formal entre tal unidade e o veículo. Com efeito, usualmente se observa que, nessas situações, a propriedade sobre o veículo automotor não é efetivamente exercida em tal unidade federada. Ademais, o licenciamento ali acontece, usualmente, apenas para o proprietário ficar sujeito a menor carga de IPVA.
O segundo processo, por sua vez, se refere à empresa sediada em Minas Gerais, que, apesar de não possuir filiais ou estabelecimento fora do território mineiro, registrou e licenciou veículo em outro Estado e se insurge contra a cobrança do IPVA imposta por Minas. Isto é, o contribuinte tem domicílio, exerce sua atividade e utiliza o veículo em Minas Gerais, mas o registrou e licenciou em Estado distinto.
Nesse caso, decidido também por maioria, foi fixada a seguinte tese: “a capacidade ativa referente ao IPVA pertence ao estado onde deve o veículo automotor ser licenciado, considerando-se a residência ou o domicílio assim entendido, no caso de pessoa jurídica, o estabelecimento a que estiver ele vinculado”.
É importante conhecer o contexto fático das lides para compreender o entendimento firmado pelo STF em relação ao local de incidência do IPVA.
Apesar de a tese acima aparentemente dar a entender que o critério eleito pela Corte Suprema para a cobrança do imposto é simplesmente o local do licenciamento, essa conclusão decorre do entendimento de que o veículo deve ser registrado e licenciado no domicílio do proprietário, ou seja, no local onde mantém, usa, frui e goza desse bem.
A controvérsia tem origem na ausência de lei complementar de que trata do art. 146, I, da CR/88 (1) regulando a matéria. Para dirimir o conflito os ministros buscaram um indício hermenêutico no texto Constitucional, que sinaliza que o tributo cabe ao Estado onde o veículo foi licenciado, haja vista que o art. 158, III, atribui 50% do imposto arrecadado ao Município onde foi feito o licenciamento (2).
O art. 120 do Código de Trânsito Brasileiro (“CTB”) (3) estabelece que todo veículo deve ser registrado perante o órgão executivo de trânsito no Município de domicílio de seu proprietário. Portanto, é vedado o registro fora do Estado de domicílio do proprietário.
Para o ministro Alexandre de Moraes, o IPVA foi previsto pela primeira vez pela Emenda Constitucional de 1985, incorporada ao texto constitucional de 1988, buscando remunerar a localidade onde, por pressuposto e usualmente, circula o veículo (em razão de gastos com vias públicas). Essa seria a teleologia do dispositivo constitucional e, exatamente por isso, metade do imposto arrecadado deveria ser destinado ao Município onde o veículo circular.
Ao atribuir aos Estados competência para instituir o IPVA, o art. 155, III, da CR/88 (4) delimitou o critério material da hipótese de incidência do imposto, o qual incide sobre o signo representativo de riqueza caracterizado pela propriedade do veículo automotor. Portanto, o IPVA é um tributo sobre a propriedade e, por pressuposto, é devido no local onde o proprietário mantém, usa, frui e goza do veículo automotor.
Para Toffoli a Constituição Federal “admite que o legislador eleja como fato gerador do IPVA não só a propriedade, mas também o domínio útil e a posse a qualquer título de veículo automotor”. Em seu voto apontou que a autorização para se registrar toda a frota em um único Estado estimula concentrações injustas de licenciamento de automóveis em unidades federadas que cobrem o imposto de maneira menos onerosa, deflagrando uma verdadeira guerra fiscal.
O entendimento consolidado no recurso extraordinário, com repercussão geral, deve ser observado por todas as instâncias do Judiciário.
Já o decidido na ADI criou precedente sobre eventuais leis de outros Estados que versem sobre a temática do recolhimento do IPVA para locadoras de veículos e suas filiais, apesar de se referir especialmente à lei do Estado de Santa Catarina.
Os julgamentos geram relevantes impactos financeiros e organizacionais ao modelo de negócio das locadoras de automóveis.
O mercado está habituado a registar toda a frota no Estado em que está localizada a sede da empresa, conforme demonstra o anuário brasileiro do setor de locação de veículos 2020, elaborado pela Associação Brasileira das Locadoras de Automóveis (“ABLA”). Esse documento revela que mais de 60% dos veículos disponibilizados para aluguel no Brasil têm placas de Minas Gerais, onde fica a sede de uma das maiores empresas do setor na América Latina.
Acontece que a tentativa do STF de coibir uma guerra fiscal do IPVA entre os Estados proporciona grandes dificuldades para o setor de locação de veículos do ponto de vista operacional.
A fixação do local onde o automóvel é disponibilizado para locação como critério para definição de onde o IPVA deverá ser recolhido é totalmente incompatível com a dinâmica do mercado de locação de veículos.
Existem diversas situações que estão fora do controle das locadoras e que tornam impossível presumir em qual Estado o veículo será utilizado pelo cliente.
As locadoras oferecem ao cliente a comodidade de devolução do veículo em local diferente ao da retirada, de modo que o automóvel pode ser retirado em determinado Estado e ser entregue em outro. Ademais, determinada empresa pode locar e retirar o veículo no Estado onde está localizada a sua sede, mas definir que o automóvel será utilizado em atividade que será desempenhada em outro Estado.
E ainda, em determinadas épocas, em razão de eventos turísticos, artísticos e culturais, as locadoras costumam remanejar a frota de um Estado para outro de acordo com aumento da demanda, como nas altas temporadas dos litorais brasileiros.
Assim, parece um tanto quanto desarrazoado exigir que periodicamente, a cada mudança do Estado onde o veículo é utilizado, as locadoras procedam a alteração do registro e licenciamento do respectivo automóvel para que seja destinada parcela do imposto a determinado ente federado.
Mais informações sobre o tema podem ser obtidas com a equipe de Direito Tributário do VLF Advogados.
Henrique Coimbra
Advogado da Equipe de Direito Tributário do VLF Advogados
(1) Art. 146. Cabe à lei complementar:
I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
(2) Art. 158. Pertencem aos Municípios:
III - cinquenta por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre a propriedade de veículos automotores licenciados em seus territórios.
(3) Art. 120. Todo veículo automotor, elétrico, articulado, reboque ou semi-reboque, deve ser registrado perante o órgão executivo de trânsito do Estado ou do Distrito Federal, no Município de domicílio ou residência de seu proprietário, na forma da lei.
(4) Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
III - propriedade de veículos automotores.