Judiciário tem papel preponderante na flexibilização da interpretação da norma processual que oportuniza a apresentação de garantias judiciais idôneas que podem salvar empresas
Henrique Gobbi
Nos últimos meses, temos visto nossa dinâmica social ser profundamente afetada pela pandemia do Coronavírus (COVID-19), com drásticos efeitos financeiros em inúmeros setores. Um dos setores mais afetados foi o automotivo, uma vez que, segundo a Sindipeças, apenas na primeira semana de abril houve uma queda de 80% nas vendas de carros, mas certamente não foi o único (1). Diante desse cenário, as empresas estão tomando diversas medidas para conter gastos de toda natureza, com vistas a evitar consequências mais drásticas, como decretação de falência ou mesmo seu fechamento.
É nesse contexto que tem chamado a atenção o impacto dos depósitos e garantias judiciais, que são corriqueiros no dia a dia das grandes empresas. Nas relações de direito privado, a norma geral do Código de Processo Civil indica o depósito em dinheiro como forma prioritária de garantia das execuções, conforme redação do artigo 835 (2), pois a intenção do legislador foi exatamente de garantir um meio seguro e líquido para que o credor tenha seu crédito satisfeito.
Como alternativa, a Lei permite o seguro-garantia e a fiança bancária, também largamente utilizados pelas empresas para garantir execuções de maior monta sem se traduzir em dispêndio da quantia executada, conferindo segurança jurídica e economia para os executados.
Ambos os instrumentos, contudo, impactam o caixa da empresa. Exatamente para mitigar esse impacto, algumas empresas passaram a recorrer ao chamado “Estoque Rotativo” (3), que nada mais é do que a indicação dos bens fungíveis que compõe o estoque de produção de determinadas empresas, como por exemplo os televisores produzidos por uma fábrica de eletrônicos ou os veículos que estão no pátio de uma montadora.
Segundo estimativas, hoje há aproximadamente 250 bilhões de reais depositados como garantia de processos judiciais, valor esse que se substituído, ao menos em parte, por garantia de estoque rotativo, poderá significar uma grande injeção de recursos na economia, ajudando o país a superar os problemas econômicos decorrentes da pandemia (4).
Tal modalidade de garantia conta com aceitação jurisprudencial sólida perante os Tribunais Regionais Federais em razão das garantias de execuções fiscais de elevados valores, que se apoiam no conceito insculpido no artigo 805 do diploma processual civil da menor onerosidade ao devedor (5) conforme se vê no julgamento do Agravo de Instrumento 43765 SP 2008.03.00.043765 (6), que entendeu pela aceitação de um estoque de medicamentos como garantia judicial.
Ao analisar a oferta de bens em estoque rotativo, deve-se contextualizar a nossa realidade atual conforme preconiza o parágrafo § 1º do artigo 835 do CPC: “É prioritária a penhora em dinheiro, podendo o juiz, nas demais hipóteses, alterar a ordem prevista no caput de acordo com as circunstâncias do caso concreto.”
Essa linha de raciocínio é amparada pelo Conselho Nacional de Justiça com a edição da Resolução 313/20 (7), que garante a apreciação do pedido de substituição de garantias durante a suspensão dos prazos processuais, exatamente para elidir depósitos judiciais desnecessários, conforme segue:
Art. 4º No período de Plantão Extraordinário, fica garantida a apreciação das seguintes matérias:
VI – pedidos de alvarás, pedidos de levantamento de importância em dinheiro ou valores, substituição de garantias e liberação de bens apreendidos, pagamento de precatórios, Requisições de Pequeno Valor – RPVs e expedição de guias de depósito.
Esse entendimento não deve ser limitado apenas às execuções de elevado montante, mas estendidos às garantias de valores menores, pois as médias e grandes empresas acabam por empenhar quantias elevadas em inúmeros processos fragmentados, impactando sobremaneira em sua provisão.
Levando em consideração todas essas circunstâncias, é muito importante, nesse momento de crise, que nossos Tribunais entendam (e se convençam) da importância de se flexibilizar a ordem preferencial de garantia do artigo 835 como forma de contribuir para mitigar os reflexos financeiros da Pandemia, sem, obviamente, preterir o direito do credor.
Henrique Gobbi
Advogado e Coordenador da Equipe de Direito Consumerista do VLF Advogados
(1) CILO, Nelson. COVID-19: setor automobilístico vai levar três anos para se recuperar. Economia. Estado de Minas. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2020/04/27/internas_economia,1142056/covid-19-setor-automobilistico-vai-levar-tres-anos-para-se-recuperar.shtml. Acesso em: 18 jun. 2020.
(2) Art. 835, do CPC: “É prioritária a penhora em dinheiro, podendo o juiz, nas demais hipóteses, alterar a ordem prevista no caput de acordo com as circunstâncias do caso concreto.”
(3) JUSTIÇA aceita estoque como garantia em execução fiscal. Disponível em: https://www.jornalcontabil.com.br/justica-aceita-estoque-como-garantia-em-execucao-fiscal/. Acesso em: 17 jun. 2020.
(4) DEPÓSITO judicial pode dar liquidez a empresas. Disponível em: https://www.beefpoint.com.br/deposito-judicial-pode-dar-liquidez-a-empresas/. Acesso em: 18 jun. 2020.
(5) Art. 805, do CPC: “Quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado.”
(6) TRF3 - Agravo de Instrumento 43765 SP 2008.03.00.043765 - Terceira Turma – Des. Federal Nery Junior - 04/03/2010. Disponível em: https://trf-3.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/8333778/agravo-de-instrumento-ai-43765-sp-20080300043765-4-trf3?ref=feed. Acesso em: 17 jun. 2020.
(7) Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 313, de 19 de março de 2020. Estabelece, no âmbito do Poder Judiciário, regime de Plantão Extraordinário, para uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários, com o objetivo de prevenir o contágio pelo novo Coronavírus – Covid-19, e garantir o acesso à justiça neste período emergencial. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/Resolu%C3%A7%C3%A3o-n%C2%BA-313-5.pdf. Acesso em: 18 jun. 2020.