Alteração de normas aplicáveis às relações entre particulares em razão da COVID-19
Alice Pereira, Fernanda Galvão e Leila Bitencourt
A pandemia da COVID-19 afetou a vida das pessoas em inúmeros aspectos. No campo jurídico, não foi diferente. Muitos institutos do Direito e normas jurídicas tradicionais começaram a se apresentar como inadequadas e inadaptáveis a esse cenário tão peculiar. Nas relações jurídicas firmadas entre particulares – as chamadas relações privadas – o pontapé inicial para a necessária adaptação foi o Projeto de Lei nº 1.179/2020 (“Projeto”) do Senador Antonio Anastasia. Após tramitação inicial no Senado, o Projeto foi remetido, em 13 de abril de 2020, à Câmara dos Deputados, que o aprovou em 14 de maio de 2020, após debates na comunidade jurídica.
Nessa oportunidade, a Câmara realizou alterações no Projeto, o que fez com que o texto retornasse ao Senado para aprovação. A expectativa era de que ele fosse aprovado com celeridade, já que se entendia que era preciso oferecer uma alternativa de flexibilização, ao menos transitória, às relações de direito privado que estavam e ainda estão sendo fortemente afetadas pelos efeitos da pandemia causada pela COVID-19. Contudo, foi aprovado pelo Senado somente em 19 de maio de 2020 (2).
Registra-se que o Projeto não abrange matérias tributárias, administrativas, ou ligadas à falência e recuperação de empresas.
Conforme detalha o Portal de Notícias do Senado, o Projeto possuía o objetivo de suavizar as consequências socioeconômicas da pandemia, de modo (i) a preservar contratos; (ii) a suspender determinados prazos e (iii) a evitar o acúmulo de ações para serem decididas no Poder Judiciário a fim de tratar conflitos surgidos em razão do cenário atual. (3)
Após rejeição, pelo Senado, da versão da Câmara dos Deputados ao Projeto, este foi finalmente encaminhado para o Congresso Nacional, para sanção pela Presidência da República, onde ainda permaneceu aguardando promulgação por mais de 20 dias. Ocorre que, nessa fase final, houve Veto Parcial ao Projeto, resultando na retirada de 16 artigos. (4)
Um dos dispositivos vetados pela Presidência da República é o caput do art. 9º do Projeto, o qual era referente às relações locatícias de imóveis urbanos. Essa previsão tratava sobre a proibição de haver decisão judicial que ordene curto prazo para a retirada do inquilino que está em atraso no pagamento de aluguel. Como esse artigo trata da possibilidade de proteger o devedor de aluguel ao impedir que haja ordem judicial para retirá-lo, houve diversos debates acalorados na comunidade jurídica para discutir até que ponto o Estado pode intervir em contratos que são firmados entre particulares.
Após as aprovações nas duas Casas – Câmara dos Deputados e Senado – e da sanção presidencial, em 12 de junho de 2020, o Projeto foi publicado como a Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020 (“Lei”), cujo conteúdo deverá ser aplicado, a partir de 20 de março de 2020, aos eventos relacionados à pandemia pela COVID-19. A definição da data de início de aplicação dessa Lei é muito importante, porque é esse o marco que delimita quais relações jurídicas impactadas pela pandemia serão reguladas pela nova norma. É bom lembrar que essas previsões podem ser aplicadas somente em um certo período, no geral, entre 20 de março de 2020 e 30 de outubro de 2020.
Destacam-se seis temas principais tratados pela Lei: (i) prescrição e decadência; (ii) sociedades empresárias; (iii) relações de consumo; (iv) usucapião; (v) condomínios edilícios; (vi) direito concorrencial e (vii) direito de família e sucessões.
No âmbito da prescrição e decadência, destaca-se que a contagem desses prazos foi impedida ou suspensa; sobre as sociedades empresárias e condomínios edilícios, foi permitida a realização de assembleia por meio eletrônico; na relação consumerista, proibiu-se o exercício do direito de arrependimento para vendas por meio de delivery para produtos perecíveis, de consumo imediato e medicamentos; na usucapião, os prazos para cumprir os requisitos para se adquirir a propriedade foram suspensos; no direito concorrencial, houve adaptações na apuração e no procedimento ligado a infrações à ordem econômica e a atos de concentração; no âmbito da família e sucessões, estabeleceu-se que a prisão do devedor de pensão de alimentos deverá ser cumprida em domicílio.
Outra mudança relevante trazida pela Lei foi o artigo 20, que determinou a partir de quando serão aplicadas as sanções previstas na Lei Geral de Proteção de Dados, Lei nº 13.709/2018 (“LGPD”). A entrada em vigor da LGPD está prevista para agosto próximo, mas, com o dispositivo inserido pela Lei, as penalidades previstas na LGPD (arts. 52, 53 e 54) somente poderão ser aplicadas a partir de 3 de maio de 2021. Embora já exista data para aplicação dessas penalidades, não foi criada ainda a entidade que irá promover a aplicação – a Agência Nacional de Proteção de Dados (“ANPD”). Devido a essa função importante e tantas outras atribuições indispensáveis para que a LGPD possa de fato valer, aguarda-se que essa providência pelo Poder Executivo seja tomada ainda durante o ano de 2020.
A Equipe de Consultoria do VLF Advogados está preparada para esclarecer dúvidas sobre o tema, bem como para auxiliar e analisar os efeitos dessas novas regras trazidas pela Lei.
Alice Pereira
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Fernanda Galvão
Sócia e Coordenadora da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
Leila Bitencourt
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) BRASIL. Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020. Dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Lei/L14010.htm. Acesso em: 24 jun. 2020.
(2) PROJETO de Lei n° 1179, de 2020. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141306. Acesso em: 24 jun. 2020.
(3) PROJETO que cria regime jurídico especial durante pandemia vai a sanção. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/05/19/projeto-que-cria-regime-juridico-especial-durante-pandemia-vai-a-sancao. Acesso em: 24 jun. 2020.
(4) VETO nº 20/2020. Regime Jurídico Emergencial e Transitório (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19). Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/vetos/-/veto/detalhe/13325. Acesso em: 24 jun. 2020.