Compreenda as principais mudanças do marco legal do saneamento básico
Maria Tereza Fonseca Dias
O protagonismo e as novas atribuições da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (“ANA”)
Os serviços de saneamento básico referem-se a uma gama de atividades entre as quais destacam-se o fornecimento de água e a coleta de esgoto, mas que também incluem os serviços de limpeza urbana, manejo dos resíduos sólidos, drenagem e manejo das águas pluviais, tratamento, limpeza e fiscalização preventiva das redes, entre outras atividades correlatas. Há dados bastante consistentes, de diversas organizações públicas e privadas, de que os serviços são deficitários no país, havendo vasta demanda acerca de sua prestação (1). Não é demais ressaltar que são serviços essenciais e envolvem o exercício de direitos fundamentais dos cidadãos.
Tem sido uníssono, entre os especialistas, que a pandemia do coronavírus deixou ainda mais explícitos os problemas de ausência de saneamento básico em todo o país, notadamente nas regiões onde encontra-se a população mais vulnerável. A falta de investimentos no setor é também outro diagnóstico inexcusável no contexto das propostas para as mudanças que foram introduzidas no novo marco legal do saneamento.
Em que pese estar sendo denominada “novo marco do saneamento”, devido às alterações legais promovidas no setor, a Lei nº 14.026/2020, em verdade, atualiza esse marco regulatório a partir da alteração de uma série de outras legislações:
• Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000, que criou a Agência Nacional de Águas, passando a ser denominada Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (“ANA”);
• Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005, que trata da constituição de consórcios públicos;
• Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico;
• Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, que trata dos prazos para a disposição final ambientalmente adequada de rejeitos;
• Lei nº 13.089, de 12 de janeiro de 2015 (Estatuto da Metrópole), para estender seu âmbito de aplicação às microrregiões;
• Lei nº 13.529, de 4 de dezembro de 2017, que dispõe sobre a participação da União em fundo de apoio à estruturação e ao desenvolvimento de projetos de concessões e parcerias público-privadas;
• Lei nº 10.768, de 19 de novembro de 2003, que trata do cargo de Especialista em Recursos Hídricos.
Considerando que a titularidade dos serviços pode ser exercida por diversos entes regionais e locais (Municípios, Distrito Federal, Estado-membro, em conjunto com os Municípios que compartilham efetivamente instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões) há, por um lado, um vazio regulatório (considerando que a maioria dos municípios não têm condições técnicas, operacionais e econômicas de disciplinar os serviços) e, por outro, edição de normas bastante díspares, entre aqueles que efetivamente editaram normas para regular os serviços.
A ausência ou a diversidade regulatória em saneamento é um fator importante de insegurança jurídica, que, por sua vez, afasta os investidores privados.
Assim, a previsão de atribuir competência à autarquia regulatória nacional para tratar do tema pode contribuir para uniformizar as regras, parâmetros tarifários e definir, com melhor clareza, metas de universalização e critérios acerca da qualidade dos serviços.
A competência da ANA para instituir normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico deverá levar em consideração, portanto, a universalização do acesso e efetiva prestação do serviço (art. 2º, inciso I, da Lei nº 11.445/2007).
A ANA irá editar normas de referência para o setor (art. 4º-A da Lei nº 9.984/2000), abrangendo os próprios titulares dos serviços e para as suas entidades reguladoras e fiscalizadores, caso tenham sido criadas.
Essas competências abrangem uma série de atividades, entre as quais destacam-se as do art. 4º-A, § 1º, incisos I, II, III, IV, VII e X segundo os quais a ANA terá papel primordial nas seguintes definições do setor:
• padrões de qualidade e eficiência na prestação, na manutenção e na operação dos sistemas de saneamento básico;
• regulação tarifária;
• padronização dos instrumentos negociais de prestação dos serviços firmados entre o titular do serviço público e o delegatário;
• metas de universalização dos serviços para concessões;
• metodologia de cálculo de indenizações devidas em razão dos investimentos realizados e ainda não amortizados ou depreciados;
• parâmetros para determinação de caducidade na prestação dos serviços públicos de saneamento básico.
Em síntese, como é a ANA que regulará o setor, suas decisões normativas gerarão impactos jurídicos consideráveis, notadamente no âmbito da proteção ambiental, dos direitos dos cidadãos, das atribuições e competências dos governos subnacionais (órgãos, entidades e empresas estatais dos Estados e Municípios), bem como dos direitos e deveres dos delegatários privados dos serviços (concessionários).
Quanto aos atuais e futuros delegatários privados dos serviços, diversos são os impactos regulatórios. Nesse contexto, as normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico (§3º, incisos I a VIII, do art. 4º-A) deverão:
• promover a prestação adequada dos serviços nos moldes do que dispõe o art. 6º da Lei nº 8.987/1995, acrescida da utilização racional dos recursos hídricos e da universalização dos serviços;
• estimular a livre concorrência, a competitividade, a eficiência e a sustentabilidade econômica na prestação dos serviços;
• estimular a cooperação entre os entes federativos e incentivar a regionalização da prestação dos serviços;
• possibilitar a adoção de métodos, técnicas e processos adequados às peculiaridades locais e regionais;
• estabelecer parâmetros e periodicidade mínimos para medição do cumprimento das metas e indicadores de qualidade;
• estabelecer critérios limitadores da sobreposição de custos administrativos ou gerenciais a serem pagos pelo usuário final, independentemente da configuração de subcontratações ou de subdelegações;
• assegurar a prestação concomitante dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário.
Ponto de atenção no novo marco legal do saneamento é a “regulação tarifária” a ser estabelecida pela ANA, pois, nos termos da lei, ela deverá abranger a prestação adequada e ainda considerar o uso racional de recursos naturais, o equilíbrio econômico-financeiro e a universalização do acesso ao saneamento básico (art. 4º-A, § 1º, II, da Lei nº 9.984/2000).
Tratam-se, portanto, de aspectos regulatórios cruciais para a delegação dos serviços não só no momento da licitação, mas durante toda a execução contratual.
Haverá também impacto nos futuros contratos, considerando que a lei determina que a ANA, no exercício da competência para “padronizar” os contratos, deverá considerar “metas de qualidade, eficiência e ampliação da cobertura dos serviços, bem como especificação da matriz de riscos e dos mecanismos de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro das atividades” (art. 4º-A, § 1º, inciso III, da Lei nº 9.984/2000).
Outros dois aspectos a serem disciplinados pela ANA também poderão afetar os futuros contratos: a) a definição da metodologia de cálculo de indenizações devidas em razão dos investimentos realizados e ainda não amortizados ou depreciados – uma vez que tais valores podem impactar a nova concessão; b) o estabelecimento dos parâmetros para determinação de caducidade na prestação dos serviços públicos de saneamento básico, ou seja, a definição dos critérios que serão utilizados para determinar se houve inexecução total ou parcial do contrato, pelo concessionário.
Acerca da competência para estabelecer as metas para a universalização dos serviços para as concessões, a ANA deverá considerar, entre outras condições: o nível de cobertura de serviço existente, a viabilidade econômico-financeira da expansão da prestação do serviço e o número de Municípios atendidos (art. 4º-A, § 1º, inciso IV). Assim, a depender da regulação a ser expedida, as orientações impactarão, inclusive, a formação de consórcios intermunicipais, as unidades de saneamento ou os blocos de municípios para a concessão, conforme explicitado adiante.
Nesse contexto, os agentes privados deverão se preparar (econômica e tecnicamente) para participar das discussões do impacto regulatório das normas a serem editadas pela ANA por meio de audiências e consultas públicas, seja de maneira individual (por empresa) ou por meio de associações de empresas constituídas para dar força ao seguimento dos concessionários.
A previsão dessa participação, inclusive, foi estabelecida no § 4º, incisos I a III, do art. 4º-A da Lei nº 9.984/2000, segundo o qual, entre outras diretrizes para o processo de instituição das normas de referência, a ANA deverá ouvir tanto o mercado quanto as entidades encarregadas da regulação e da fiscalização e as entidades representativas dos Municípios.
Algumas outras atribuições que a legislação estabeleceu à ANA foram as seguintes:
- determinação para que sejam estabelecidas a mediação ou a arbitragem dos conflitos que envolvam titulares, agências reguladoras ou prestadores de serviços públicos de saneamento básico, sujeitas à concordância entre as partes (art. 4º-A, § 5º);
- avaliação do impacto regulatório e do cumprimento das normas de referência do setor pelos órgãos e pelas entidades responsáveis pela regulação e pela fiscalização dos serviços (art. 4º-A, § 6º);
- uniformização regulatória e segurança jurídica na prestação e na regulação dos serviços (art. 4º-A, § 7º);
- estabelecimento dos mecanismos de subsídios para as populações de baixa renda, a fim de possibilitar a universalização dos serviços, e, quando couber, o compartilhamento dos ganhos de produtividade com os usuários dos serviços (art. 4º-A, § 8º);
- fixação dos parâmetros e condições para investimentos que permitam garantir a manutenção dos níveis de serviços desejados durante a vigência dos contratos (art. 4º-A, § 9º);
- elaboração de estudos técnicos para o desenvolvimento das melhores práticas regulatórias bem como guias e manuais para subsidiar o desenvolvimento das referidas práticas (art. 4º-A, § 10);
- capacitação de recursos humanos para a regulação adequada e eficiente do setor de saneamento básico (art. 4º-A, § 11);
- contribuição para a articulação entre o Plano Nacional de Saneamento Básico, o Plano Nacional de Resíduos Sólidos e o Plano Nacional de Recursos Hídricos (art. 4º-A, § 12).
Considerando o volume normativo referente à regulação a ser editada, não é possível estabelecer em que prazos ela estará efetivamente pronta, pois o novo marco previu que as normas de referência serão instituídas pela ANA, de forma progressiva (Art. 4º-A, § 2º). E, assim como ocorre em outros setores regulados por agências reguladoras de caráter nacional, estima-se que será constante a edição de tais regras, tornando-se o setor de saneamento básico sujeito a mudanças constantes e concomitantes à prestação dos serviços.
É preciso destacar que este arcabouço regulatório não é, em tese, obrigatório para os titulares dos serviços, tendo em vista que a União possui competência tão somente para “instituir diretrizes para o saneamento básico” (art. 21, inciso XX, da CR/1988). No entanto, como forma de impor a observância dessas regras, o novo marco do saneamento estabeleceu que somente terão acesso a recursos públicos federais ou a contratação de financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da administração pública federal (como os do BNDES, por exemplo), as entidades reguladoras e fiscalizadoras que as adotarem. Para tanto, a ANA manterá atualizada e disponível, em seu site, a relação das entidades reguladoras e fiscalizadoras que adotarem as normas de referência nacionais (art. 4º-B, da Lei nº 9.984/2000).
Considerando, portanto, as diversas mudanças promovidas na sua estrutura e atribuições, a ANA passa a ter papel central na regulação dos serviços de saneamento básico, unificando as suas orientações para todo o país e alcançando os setores público e privado.
As novas possibilidades de regionalização interfederativa dos serviços por unidades de saneamento ou blocos de municípios
Quanto às alterações na Lei nº 11.445/2007 – que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico – a nova lei de saneamento promove mudanças bastante significativas.
No tocante aos princípios fundamentais, foram acrescidas mudanças pontuais nas seguintes diretrizes já editadas em 2007: efetiva prestação do serviço (art. 2º, I); conservação dos recursos naturais (art. 2º, III); articulação dos serviços de saneamento básico com a política de recursos hídricos (art. 2º, VI); estímulo à pesquisa e melhoria da qualidade dos serviços com ganhos de eficiência e redução dos custos para os usuários (art. 2º, VIII).
A nova lei de saneamento inova ao introduzir novas diretrizes para o setor, a saber:
- redução e controle das perdas de água, inclusive na distribuição de água tratada, estímulo à racionalização de seu consumo pelos usuários e fomento à eficiência energética, ao reuso de efluentes sanitários e ao aproveitamento de águas de chuva (art. 2º, XIII);
- prestação regionalizada dos serviços, com vistas à geração de ganhos de escala e à garantia da universalização e da viabilidade técnica e econômico-financeira dos serviços (art. 2º, XIV);
- seleção competitiva do prestador dos serviços (art. 2º, XV);
- prestação concomitante dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário (Art. 2º, XVI).
As referidas diretrizes, além de buscarem assegurar a prestação dos serviços ao usuário, podem tornar mais atrativa a delegação dos serviços ao setor privado, afinal, a ideia do marco regulatório é gerar competitividade entre os concessionários interessados no setor.
Para que a modelagem das concessões possa ser feita com economia de escala, a lei determinou a junção obrigatória dos serviços de água e esgotamento sanitário e a prestação dos serviços por meio das seguintes estruturas interfederativas: a) gestão associada de serviços públicos (consórcio público ou convênio de cooperação); b) prestação regionalizada de serviços públicos de saneamento básico de interesse comum (região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião, instituídas por Lei complementar estadual ou, ainda, por meio da Região integrada de desenvolvimento (“Ride”) (2), criada por lei federal específica) ou, ainda, c) unidade regional de saneamento básico, criada pelos Estados e constituída por municípios limítrofes ou não e d) bloco de Municípios, que consiste no agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes, estabelecido pela União e formalmente criado por meio de gestão associada voluntária desses Municípios.
As novidades da nova lei do saneamento quanto à gestão interfederativa dos serviços foram, portanto, a “unidade regional” e o “bloco de Municípios”. Ambas estratégias possuem o objetivo de dar viabilidade econômica e técnica à prestação dos serviços nos Municípios menores ou cujas receitas são deficitárias. Assim, atuando de forma agrupada e coletiva, vários municípios poderão prestar os serviços dentro dos parâmetros a serem estabelecidos pela ANA, inclusive universalizá-los sem desconsiderar o requisito da modicidade das tarifas.
Também foram promovidas alterações referentes à gestão dos serviços mediante consórcio público ou convênio de cooperação, que são regidos pela Lei nº 11.107/2005. Diversamente do que está previsto na citada lei, os consórcios intermunicipais de saneamento básico poderão ser formalizados somente por Municípios e poderão prestar o serviço aos seus consorciados diretamente a partir da instituição de autarquia intermunicipal (art. 8º, § 1º, I, Lei n. 11.445/2007). Além disso, os consórcios intermunicipais de saneamento básico estão proibidos de formalizar contrato de programa com sociedade de economia mista ou empresa pública ou a subdelegar o serviço prestado pela autarquia intermunicipal sem prévio procedimento licitatório (art. 8º, § 1º, II, Lei nº 11.445/2007).
Esta última medida está claramente vedando que venham a ser constituídos consórcios intermunicipais com a participação dos Estados e suas respectivas companhias de saneamento estaduais para atuar por meio de contratos de programas com os municípios consorciados, sem necessidade de licitação.
Além disso, em caso de convênio de cooperação, a nova lei de saneamento dispensa a autorização legal, podendo a gestão associada dos serviços de saneamento ser firmada pelos chefes dos Poderes Executivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 8º, § 4º, Lei nº 11.445/2007).
A lei ainda obriga que os titulares dos serviços públicos de saneamento básico deverão definir a entidade responsável pela regulação e fiscalização desses serviços, independentemente da modalidade de sua prestação (art. 8º, § 5º, Lei nº 11.445/2007).
A nova lei também inclui novos dispositivos para explicitar as atividades referentes aos serviços de abastecimento de água (art. 3º-A, Lei nº 11.445/2007); esgotamento sanitário (art. 3º-B, Lei nº 11.445/2007); limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos (art. 3º-C, Lei nº 11.445/2007) e manejo de águas pluviais (art. 3º-D, Lei nº 11.445/2007).
Licitação e contratação dos serviços
O principal dispositivo da Lei nº 11.445/2007 que poderá alterar a forma como os serviços são prestados hoje em dia é o art. 10 da Lei nº 11.445/2015, que determina a celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação. Caso subsistam contratos de programa regulares (entre Municípios e companhias estaduais por exemplo), eles ficarão vigentes tão somente até o advento do seu termo contratual (art. 10, § 3º, Lei n. 11.445/2015). A alteração é bastante significativa pois, segundo dados do IBGE, “entre as companhias estaduais de saneamento, os principais instrumentos para os serviços de água são a concessão (1.636 contratos ou 42,7%) e contrato programa (1.260 ou 32,9%); e para os serviços de rede de esgoto, contrato de programa (639 ou 47,9%) e concessão (539 ou 40,4)” (3).
Nos termos do art. 14 da Lei nº 11.445/2007, em caso de alienação de controle acionário de empresa pública ou sociedade de economia mista prestadora de serviços públicos de saneamento básico, os contratos de programa ou de concessão em execução poderão ser substituídos por novos contratos de concessão, observando-se, quando aplicável, o Programa Estadual de Desestatização.
Além disso, os contratos de parcerias público-privadas ou de subdelegações que tenham sido firmados por meio de processos licitatórios deverão ser mantidos pelo novo controlador em caso de alienação de controle de empresa estatal ou sociedade de economia mista. Esses contratos serão mantidos em prazos e condições pelo ente federativo exercente da competência delegada, mediante sucessão contratual direta (art. 18 da Lei nº 11.445/2007).
Quanto ao contrato, o art. 10-A da Lei nº 11.445/2015 determinou as suas cláusulas essenciais além daquelas já previstas no art. 23 da Lei nº 8.987/1995, a saber:
I - metas de expansão dos serviços, uso racional da água e outros recursos naturais;
II - possíveis fontes de receitas alternativas, complementares ou acessórias e compartilhamento de receitas;
III - metodologia de cálculo de eventual indenização relativa aos bens reversíveis não amortizados por ocasião da extinção do contrato;
IV - repartição de riscos entre as partes, incluindo os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária.
Assim como já previsto na Lei Geral de Concessões e na Lei Geral de Parcerias Público-Privadas, foi previsto no art. 10-A, § 1º, que os contratos que envolvem a prestação dos serviços públicos de saneamento básico também poderão prever mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes do contrato ou a ele relacionadas, inclusive a arbitragem, nos termos da Lei nº 9.307/1996.
Para a licitação, a Lei nº 11.445/2015 estabeleceu claramente, em seu art. 10-B, a possibilidade de que a comprovação da capacidade econômico-financeira da contratada possa ser feita por recursos próprios ou por contratação de dívida, com vistas a viabilizar a universalização dos serviços na área licitada até 31 de dezembro de 2033, nos termos do § 2º do art. 11-B da Lei nº 11.445/2015. No parágrafo Único do art. 10-B foi estabelecido que a metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira da contratada será regulamentada por decreto do Poder Executivo – o que afasta as regras atualmente estabelecidas na Lei nº 8.666/1993 sobre a matéria.
Na hipótese de prestação dos serviços públicos de saneamento básico por meio de contrato, foi prevista expressamente, além da concessão comum, a possibilidade de realizar licitação e contratação de parceria público-privada, nos termos da Lei nº 11.079/2004. E, se houver previsão contratual ou autorização expressa do titular dos serviços, o objeto contratado pode ser subdelegado (ou subconcedido), observado, para a referida subdelegação, o limite de 25% (vinte e cinco por cento) do valor do contrato (art. 11-A, da Lei n. 11.445/2015).
Nos termos do art. 29 da Lei nº 11.445/2015, os serviços públicos de saneamento básico terão a sustentabilidade econômico-financeira assegurada por meio de remuneração pela cobrança dos serviços, e, quando necessário, por outras formas adicionais, como subsídios ou subvenções. A lei, entretanto, veda a cobrança em duplicidade de custos administrativos ou gerenciais a serem pagos pelo usuário nos serviços de abastecimento de água, de esgotamento sanitário, de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e de drenagem e manejo de águas pluviais urbanas, na forma de taxas, tarifas e outros preços públicos, conforme o regime de prestação do serviço ou das suas atividades.
Foi prevista a tarifa mínima a ser paga pelo usuário, quando disponibilizada rede pública de esgotamento sanitário, ainda que a sua edificação não esteja conectada à rede pública (art. 45, § 4º, da Lei nº 11.445/2007). Além do pagamento de taxa ou de tarifa, o usuário não está isento da obrigação de conectar-se à rede pública de esgotamento sanitário, com a sujeição de pagamento de multa e demais sanções previstas na legislação (art. 45, § 5º, da Lei nº 11.445/2007).
A lei confere o prazo para que as entidades reguladoras ou os titulares dos serviços públicos de saneamento básico estabeleçam prazo não superior a 1 (um) ano para que os usuários conectem suas edificações à rede de esgotos, sob pena de o prestador do serviço realizar a conexão mediante cobrança do usuário (art. 45, § 6º, da Lei nº 11.445/2007).
Os vetos opostos à proposição de Lei aprovada e os rumos da Lei nº 14.026/2020
O presidente da República apresentou 12 (doze) vetos à nova lei do saneamento, que ainda serão objeto de apreciação do Congresso Nacional, que pode mantê-los, derrubá-los ou sequer apreciá-los, permanecendo a Lei nº 14.026/2020, nesta última hipótese, da forma como foi editada. Entre eles destacam-se os seguintes:
a) Participação facultativa dos Municípios na gestão regionalizada dos serviços (art. 3º, § 4º).
O veto foi oposto sob a justificativa de que a participação facultativa dos Municípios em regiões metropolitanas microrregiões e aglomerações urbanas é compulsória e viola o § 3º do art. 25 da Constituição da República (ADI 1842, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 28/02/2013).
b) Apoio financeiro e assistência técnica da União para a organização e a formação dos blocos de prestação de serviços de saneamento regionalizada (§ 12, do art. 50, da Lei nº 11.445/2007) e ações de apoio técnico e financeiro da União e dos estados aos Municípios (§ 1º do art. 54 da Lei nº 12.305/2010).
Entre as razões apresentadas do veto, destaca-se a justificativa de que as despesas referentes a este apoio não foram acompanhadas da estimativa do respectivo impacto orçamentário e financeiro, em violação às regras do art. 113 do ADCT, bem como dos arts. 16 e 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal e ainda do art. 114 da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2020 (Lei nº 13.898, de 2019).
c) Limites excessivos para a subdelegação (§ 5º, do art. 11-A, da Lei nº 11.445/2007).
Havia sido previsto que a empresa vencedora da licitação poderia subdelegar mais de 25% do valor do contrato para outras empresas, sem prévia autorização municipal.
As razões do veto apresentadas consistem na assertiva de que o texto legal aprovado gera insegurança jurídica ao não definir qual seria o máximo permitido para a subdelegação contratual da prestação dos serviços públicos de saneamento básico. Assim, de acordo com o Poder Executivo, além de onerar a prestação do serviço com custos não estimados, a medida ainda desprestigia as regras de escolha do poder concedente estabelecida na legislação.
d) Competência do Conselho Nacional de Recursos Hídricos para acompanhar a execução do Plano Nacional de Saneamento Básico e a situação da regulação do saneamento no Brasil (art. 46-A da Lei nº 11.445/2007).
A razão central do veto foi a usurpação da competência privativa de iniciativa legislativa do Presidente da República, em ofensa ao art. 61, § 1º, II, ‘e’, da Constituição da República (ADI 3.061, rel. Min. Ayres Britto, j. 5/4/2006, DJ de 9-6-2006).
e) Indenização de investimentos não amortizados das prestadoras de serviço de saneamento (art. 14, §§ 6º e 7º).
A proposição de lei previa que, em caso de alienação de controle acionário de empresa pública ou sociedade de economia mista prestadora de serviços públicos de saneamento básico, os entes públicos titulares dos serviços poderiam assumir a prestação dos serviços mediante a indenização das parcelas dos investimentos vinculados a bens reversíveis, ainda não amortizados ou depreciados. O referido pagamento tomaria como base os valores comprovadamente custeados pelo lucro ou por empréstimos tomados especificamente para esse fim, lançados em balanço pelas empresas prestadoras do serviço ou mediante apresentação de documentos contábeis que possibilitem a verificação de que os referidos investimentos não foram custeados exclusivamente pela receita proveniente da cobrança das tarifas dos usuários.
Foi oposto veto ao referido dispositivo sob a justificativa de que ele gera insegurança jurídica por estar em descompasso com as disposições da Lei nº 8.987/1995 (Lei de Concessões) e diante da impossibilidade de fazer, na prática, a distinção entre receita proveniente de tarifa direcionada para um ativo, de forma que torna inviável a sua implementação e, por consequência, inviabiliza o pagamento de indenização, que poderá ser considerada como um enriquecimento ilícito por parte do titular por se apropriar de um recurso que é do prestador.
f) Prorrogação, por 30 anos, de contratos de programa prestados por empresas públicas e sociedades de economia mista (art. 16).
O art. 16 da proposição de lei havia previsto que tanto os contratos de programa vigentes quanto as situações de fato de prestação dos serviços públicos de saneamento básico por empresa pública ou sociedade de economia mista, poderiam ser reconhecidos como contratos de programa, formalizados ou renovados, mediante acordo entre as partes, até 31 de março de 2022 e sua vigência teria prazo máximo de 30 (trinta) anos.
Entre as razões de veto apresentadas encontra-se o fato de que o prazo da proposta era muito extenso; que a renovação postergaria soluções para os impactos ambientais e de saúde pública decorrentes da falta de saneamento básico, além de limitar a livre iniciativa e a livre concorrência. A regra também foi considerada descompassada dos objetivos do novo marco legal do saneamento básico que orienta a celebração de contratos de concessão, mediante prévia licitação.
g) Aplicabilidade das regras de licitação e contrato apenas aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, excluindo os demais serviços de saneamento básico (art. 20 da Lei nº 14.026/2020).
A justificativa apresentada para o veto foi que ao afastar as regras para a concessão dos serviços públicos do art. 175 da CR/1988 haveria quebra de isonomia entre as atividades de saneamento básico,
de forma a impactar negativamente na competição saudável entre os interessados na prestação desses serviços, além de tornar menos atraente os investimentos, em descompasso com a almejada universalização dos serviços, foco do novo marco do saneamento, que busca promover ganhos de qualidade, efetividade e melhor relação custo-benefício para a população atendida. (4)
h) Obtenção de licenciamento ambiental (art. 21, caput, § 1º e § 2º).
A proposição aprovada previa que os Municípios iriam promover o licenciamento ambiental das atividades, empreendimentos e serviços de saneamento básico e que a aprovação do licenciamento de projeto de saneamento básico deveria ter prioridade sobre os demais que tramitassem no órgão ambiental.
As razões dos vetos basearam-se no fato de que a previsão das competências para a promoção de licenciamento ambiental pelos Municípios está em descompasso com a Lei Complementar nº 140/2011, que definiu precisamente o seu âmbito de competências (ADI 5.127, voto do rel. p/ o ac. min. Edson Fachin, j. 15-10-2015, P. DJE de 11-5-2016). Além disso, a Constituição da República determina que a matéria é reservada à Lei Complementar e, portanto, não poderia ser tratada em Lei Ordinária Federal (ADI 5.127, voto do rel. p/ o ac. min. Edson Fachin, j. 15-10-2015, P. DJE de 11-5-2016).
Considerações finais
O veto oposto ao art. 20 da Lei nº 14.026/2020 é o que tem causado as maiores discussões entre os parlamentares, pois havia sido fruto de acordo entre o Executivo e as casas legislativas e trará grande impacto nas companhias estaduais de saneamento básico, haja vista a existência de diversos serviços que são prestados por essas companhias sem contrato, com contratos vencidos ou em vias de ter sua vigência expirada.
Mantido o veto a esse dispositivo, haverá possibilidade de licitar imediatamente serviços de saneamento básico em diversos municípios que estiverem diante desta situação.
O novo marco legal do saneamento abriu, ainda, a possibilidade de discussão da validade de diversos contratos de programas, convênios e outros ajustes firmados no setor de saneamento (sobretudo entre os Municípios e as Companhias Estaduais) que, supostamente, estariam ainda em vigor.
Assim, mesmo que seja mantido o veto ao art. 20, a nova lei abre a possibilidade de discussão do que pode ser considerada operação irregular versus “operação regular”: que é aquela, nos termos do art. 2º, inciso XIII, da Lei nº 11.445/2015, que observa integralmente as disposições constitucionais, legais e contratuais relativas ao exercício da titularidade e à contratação, prestação e regulação dos serviços.
Considerando as diversas mudanças promovidas e o término dos atuais contratos para a execução dos serviços, é forçoso concluir que o novo marco legal do saneamento básico abre novas possibilidades de parcerias com o setor privado visando universalização dos serviços.
Maria Tereza Fonseca Dias
Sócia e Coordenadora da Equipe de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
(1) Os dados do Governo Federal acerca do setor estão disponíveis no Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Disponível em: http://www.snis.gov.br/. A OSCIP Instituto Trata Brasil também divulga estudos sobre o tema, entre os quais o ranking do saneamento. Disponível em: http://www.tratabrasil.org.br/estudos/estudos-itb/itb/ranking-do-saneamento-2020.
(2) Ride é uma área análoga às regiões metropolitanas brasileiras, porém, situada em mais de uma unidade federativa. No caso de Ride, a nova lei de saneamento estabelece que a prestação regionalizada do serviço de saneamento básico estará condicionada à anuência dos Municípios que a integram (art. 3º, § 5º).
(3) IBGE. PNSB 2017: Abastecimento de água atinge 99,6% dos municípios, mas esgoto chega a apenas 60,3%. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/28324-pnsb-2017-abastecimento-de-agua-atinge-99-6-dos-municipios-mas-esgoto-chega-a-apenas-60-3. Acesso em: 27 jul. 2020.
(4) MENSAGENS de veto disponíveis em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm. Acesso em: 27 jul. 2020.