As discussões em torno do fim do voto de qualidade e as brechas utilizadas pelo CARF para manutenção do instituto
Érika Villar
O chamado “voto de qualidade” do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”) consiste no estabelecimento de um voto de desempate conferido ao presidente das turmas julgadoras, ocupado obrigatoriamente por representante da Fazenda Nacional.
Após a apresentação dos votos de todos os Conselheiros, inclusive o voto do próprio Presidente, caso ocorra o empate, o voto do Presidente passa a ter peso duplo, o que leva ao desempate no sentido do entendimento por ele manifestado.
O voto de qualidade está previsto no artigo 54 do Regimento Interno (1) do CARF, bem como no artigo 25, do Decreto 70.235/72 (2), que versa sobre o processo administrativo fiscal: “os cargos de Presidente das Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, das câmaras, das suas turmas e das turmas especiais serão ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional, que, em caso de empate, terão o voto de qualidade, e os cargos de Vice-Presidente, por representantes dos contribuintes”.
Sempre houve muitos debates em torno da disposição, visto que o voto de qualidade afasta o caráter paritário do julgamento do CARF, fazendo com que um representante de Fazenda Nacional tivesse sempre a palavra final em caso de empate do julgamento.
Ao determinar que apenas conselheiros representantes da Fazenda Nacional possam ser presidentes nos colegiados de julgamento do CARF, claramente há uma violação à definição do CARF como órgão paritário. A ilegalidade, portanto, não está simplesmente na existência do voto de qualidade, e sim na determinação de que o Presidente seja um representante da Fazenda Nacional que deterá, como consequência, o voto de qualidade.
Ante as inúmeras discussões sobre o tema, inclusive judiciais, o voto de qualidade foi extinto do ordenamento jurídico, por meio da Lei 13.988/2020 (oriunda da Medida Provisória 899/2019), que incluiu o art. 19-E na Lei nº 10.522/2002 que determinou: "Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte”.
De fato, a nova legislação inspira-se no art. 112 do CTN, o qual consagra a interpretação mais favorável ao contribuinte, em caso de dúvida sobre a aplicação de penalidades.
No entanto, a alteração da legislação foi apontada como objeto para controle concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal (“STF”) com a propositura de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6399, 6403 e 6415, todas distribuídas por prevenção ao relator ministro Marco Aurélio. As ADIs foram propostas pelo procurador-geral da República Augusto Aras, pelo Partido Socialista Brasileiro (“PSB”) e pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (“Anfip”), respectivamente.
As ADIs questionam o fim do voto de qualidade, impugnando a validade do dispositivo que trouxe a sua extinção. Dentre os argumentos apontados estão a violação à presunção de validade do ato administrativo e a ofensa ao princípio constitucional de prevalência do interesse público sobre o privado. Além disso, questiona-se uma possível quebra na igualdade de tratamento, visto que a Fazenda Pública não tem a faculdade de acionar o Poder Judiciário em caso de discordância com decisão administrativa, prerrogativa garantida ao contribuinte. Além disso, as ADIs apontam também um vício formal da norma instituída, sob a alegação de que ela foi fruto de emenda parlamentar que não possui relação temática com a medida provisória em que foi inserida.
Além do questionamento quanto à constitucionalidade da Lei 13.988/20 perante o STF que visa a manutenção do voto de qualidade, o CARF também vem utilizando brechas na letra da lei para manter a aplicação do instituto.
É o caso do julgamento ocorrido no processo nº 13906.000078/2007-57, cujo acórdão foi publicado em 7 de maio de 2020, em que restou claro o desrespeito ao princípio do in dubio pro contribuinte, trazido pela Lei nº 13.988/2020.
O caso envolvia o indeferimento de pedido de inclusão no Simples Nacional realizado por pessoa jurídica sócia de outra sociedade empresária. A primeira solicitou seu enquadramento no regime tributário simplificado, mas teve o pedido recusado pela Receita Federal por participar do capital social de outra empresa. Após empate no julgamento, o presidente da Segunda Turma Extraordinária da Primeira Seção e representante do fisco proferiu o voto de desempate, negando provimento ao recurso.
Num segundo caso, a decisão exarada em 2 de junho de 2020 no processo nº 10980.002921/2008-30 também foi pautada no voto de qualidade. Trata-se de contribuinte excluído do regime do Simples Nacional em razão de ter auferido receitas advindas da locação de mão obra e serviços de implantação de reserva legal.
Após o recebimento do ato declaratório executivo que determinou a sua exclusão, a empresa apresentou defesa, que também restou improcedente e, posteriormente, Recurso Voluntário. Este último foi conhecido, mas com o emprego do voto de qualidade, o Conselheiro Presidente da Primeira Turma Extraordinária da Primeira Seção negou provimento quanto ao mérito.
A justificativa para a utilização do voto de qualidade nos dois casos pautou-se no fato de que as discussões não envolveram efetivamente a cobrança de um crédito oriundo da relação obrigacional tributária, mas sim, da inclusão ou manutenção no regime de tributação diferenciado e, diante do empate e com base na interpretação literal da legislação, o órgão administrativo optou pela prevalência do voto de qualidade. Isso porque a letra da lei fala “em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência de crédito tributário”.
Em que pese a redação do artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002, alterado pela Lei nº 13.988/2020, percebe-se que os conselheiros representantes do fisco, aproveitam-se dessa “interpretação” da legislação para aplicar o voto de qualidade em caso de empate e tomar, na maioria das vezes, decisões que favorecem a Fazenda Nacional. Ora, a consequência destas decisões certamente será a exigência de créditos tributários, já que excluídos do Simples, serão cobrados dos contribuintes os tributos pelo sistema normal. Enfim, as decisões que continuam aplicando o voto de qualidade estão mais preocupadas com uma interpretação pontual e literal da norma do que com a sua análise sistemática, pois não há qualquer razão para a extinção do voto de qualidade nos casos mais importantes e a sua manutenção nos demais…
De todo modo, os contribuintes prejudicados certamente poderão recorrer ao Poder Judiciário para tentar garantir uma interpretação mais ampla da legislação federal, e exigir que, em caso de empate, o julgamento seja concluído a seu favor.
De todo modo, já há projetos de lei buscando recriar o voto de qualidade. Ao fim e ao cabo, seria bastante interessante se houvesse dados exatos para que a análise da utilização do voto de qualidade, inclusive com os valores envolvidos nos casos, seja feita com base em fatos, não em impressões. Imagino que isso seria fundamental para que a discussão iluminasse algumas das premissas da atuação do CARF, que é a de órgão paritário.
Mais informações com relação ao tema podem ser obtidas com a equipe de Direito Tributário do VLF Advogados.
Érika Villar
Advogada da Equipe de Direito Tributário do VLF Advogados
(1) PORTARIA MF nº 343, de 09 de junho de 2015. Aprova o Regimento Interno do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) e dá outras providências. Ministério da Fazenda. Disponível em: http://idg.carf.fazenda.gov.br/acesso-a-informacao/institucional/regimento-interno/ricarf-multi-19042018.pdf. Acesso em: 27 jul. 2020.
(2) BRASIL. Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972. Dispõe sobre o processo administrativo fiscal, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D70235cons.htm. Acesso em: 27 jul. 2020.