O Jogo do Anjo (livro) e O Conto da Aia (série)
Luciana Corrêa Netto e Katryn Rocha
O Jogo do Anjo
Sabe aquele livro que ao terminar a última página você fica horas anestesiado e recapitulando os momentos mais marcantes? O Jogo do Anjo é assim. Este livro foi escrito pelo catalão Carlos Ruiz Zafón, prestigiadíssimo escritor, vencedor de inúmeros prêmios literários ao redor do mundo, e que faleceu precocemente, em junho deste ano.
Em O Jogo do Anjo há um toque sobrenatural, o que, de forma alguma, retira-lhe o mérito de ser um livro excepcional, mesmo para aqueles que esperam ou prefiram algo mais racional. Não é um simples livro de suspense e mistério. Vai muito além disso. A escrita do Zafón é impressionante. Uma dica: se você nunca leu nada dele, por favor, leia, porque não vai se arrepender.
Conheci o autor e sua obra em 2012 por indicação de um colega de trabalho. Embora o começo da trama não seja dos mais contagiantes, a cada virada de página desperta uma inquietação no leitor, seguida de uma curiosidade que torna impossível interromper a leitura.
A trama, narrada em primeira pessoa, se passa em 1920 e tem como cenário Barcelona. Somos apresentados a um personagem intenso e perturbado: David Martín, um jovem de 28 anos de idade que, apesar do talento como escritor, nunca foi reconhecido profissionalmente e está acostumado a vender barato seu trabalho para editores oportunistas. Para sobreviver, se vê obrigado a escrever novelas policiais, sob o pseudônimo Ignatius B. Samson.
Martín fala um pouco sobre a sua infância triste e solitária. Talvez, por isso, seja sarcástico e dono de um humor ácido. Mesmo assim é impossível não ter empatia pelo personagem, pois é fácil compreender suas frustrações e angústias. A vida de Martín muda drasticamente quando conhece Andreas Corelli, um misterioso editor de livros que carrega um broche de anjo no peito.
Consciente do talento distinto de Martín, Corelli o contrata para escrever um único livro, com a promessa de dar ao falido e desprestigiado escritor aquilo que ele mais deseja: dinheiro e sucesso.
Corelli encomenda uma história como nenhuma já escrita, um livro que pareça ao leitor como uma nova religião, e que ao invés de fãs lhe traga fiéis. Conforme vai trabalhando no livro, Martín se vê envolto de diversos mistérios e sua vida começa a tomar rumos desesperadores, tudo isso ligado ao livro e ao tal editor misterioso.
Corelli, ao mesmo tempo em que pode ser interpretado como o vilão da história, é também o maior aliado e benfeitor de Martín.
É, sem dúvida, uma trama complexa e intrincada, mas a narrativa construída por Zafón é incrível e cheia de reviravoltas. É interessante como tudo começa de forma lenta, a ambientação e a apresentação dos personagens, e depois temos uma narrativa com um ritmo frenético, mistérios e quebra-cabeças que aos poucos vão se encaixando.
É genial a forma como Zafón descreve com riqueza de detalhes a cidade de Barcelona. Mesmo quem não conhece o cenário da trama, se sentirá íntimo da cidade, como se, de fato, já a tivesse visitado pelo menos uma vez na vida. O livro tem diálogos ricos e memoráveis, e personagens que se tornam tão vívidos que parecem reais.
Vale dizer que O Jogo do Anjo, publicado pela primeira vez em 2008, é o segundo livro, na ordem de lançamento, da tetralogia O Cemitério dos Livros Esquecidos, concluída em 2016, mas que não é preciso ser lida em uma ordem específica. Cada livro apresenta uma história fechada e independente.
É genial! Recomendo a leitura, principalmente para quem está retomando esse saudável hábito que é ler.
Luciana Corrêa Netto
Advogada da Equipe de Contencioso Cível Estratégico do VLF Advogados
O Conto da Aia
As distopias, sejam elas literárias ou fílmicas, denunciam atuais convenções sociais de forma extrapolada. Geralmente são caracterizadas pelo totalitarismo e pelo controle opressivo sobre determinada sociedade, uma “anti-utopia” na qual a tecnologia é usada como ferramenta de controle, seja por parte do estado, das instituições ou corporações.
A premiada série distópica O Conto da Aia, foi criada por Bruce Miller e é baseada no romance homônimo da escritora canadense Margaret Atwood. A história é ambientada nos Estados Unidos e é narrada de forma não linear pela protagonista June (interpretada por Elisabeth Moss) na qual acontecimentos do passado e presente se misturam. No futuro reproduzido na série, os Estados Unidos se transformaram em uma teocracia totalitária fundamentalista cristã, passando a se chamar República de Gilead. Altamente militarizado, dividido em castas e com a maioria dos direitos civis suspensos, o país enfrenta também uma profunda queda nas taxas de natalidade, atribuída a uma súbita esterilidade feminina (parte-se do pressuposto de que somente mulheres são estéreis).
Com uma lei fundamentada no Antigo Testamento, as suspensões dos direitos promovida pelo golpe afetaram principalmente as mulheres, mas também qualquer um que não estivesse dentro da conduta cristã. Inclui-se médicos que faziam procedimentos como o aborto, homossexuais (chamados de traidores de gênero), pessoas consideradas adúlteras e quaisquer outros que não seguissem os preceitos bíblicos. Todos sob risco de execução sumária e exposição dos corpos em locais públicos.
É dentro dessa realidade que algumas mulheres que já tivessem dado à luz tiveram suas crianças sequestradas e entregues a famílias desprovidas de filhos. Quanto a elas, por terem se mostrado férteis, foram obrigadas a viver servindo exclusivamente como escravas reprodutoras. Esse é o caso da narradora-personagem June, que faz parte da primeira geração de Aias deste governo e, por isso, se lembra constantemente da sua vida antes do ataque terrorista e sofre muito pela perda de sua filha e de seu marido, Luke (interpretado por O. T. Fagbenle).
Passando a ser considerada um mero objeto de posse, June foi destituída de tudo: dinheiro, roupas, livre arbítrio, autonomia e, inclusive, seu próprio nome. A sociedade de Gilead, enquanto sociedade fortemente baseada em princípios religiosos tradicionais, acaba por girar em torno da família. A partir do momento em que o homem e a mulher não são mais capazes de cumprir a promessa de se multiplicar sobre a terra (Gênesis, 1:22), a capacidade geradora de vida se torna um dom raro. Sendo assim, surge a necessidade de se reconfigurar o espaço familiar, colocando, no centro do funcionamento privado, as aias.
A série, de forma potencializada, discute sobre a dominação dos corpos femininos, que é, mais do que nunca, uma questão de poder e, também, nos faz refletir, por exemplo, sobre o poder controlador que a religião e a palavra religiosa possuem. Percebemos que em Gilead, a partir da conquista do apoio da maioria da população via discurso religioso, a reconstrução do texto canônico é um dos pilares do controle exercido nessa sociedade. Para garantir a doutrinação total da sociedade, a palavra bíblica se retrai a características medievais, onde apenas os homens de grande poder e os sacerdotes possuem seu conhecimento.
Na sociedade de Gilead, o papel das aias é representado pelas duas características fortes no livro do Gênesis: a divindade e a culpa. A ocupação das aias é legitimada por Deus e seus representantes nesse mundo, mas é, ao mesmo tempo, um símbolo da falha humana, um lembrete de que toda a humanidade destruiu o mundo em que vivia, que os avanços tecnológicos vieram com um preço caro.
A série está disponível no Globoplay.
Katryn Rocha
Auxiliar de Comunicação do VLF Advogados