Conheça os principais argumentos levantados pelos partidos políticos para a declaração de inconstitucionalidade do Novo Marco Legal do Saneamento
Maria Tereza Fonseca Dias
Os principais aspectos questionados pela ADI nº 6492 (PDT) e pela ADI nº 6536 (PT, PSOL, PSB e PCdoB) na Lei nº 14.026/2020 referem-se a: 1) violação do pacto federativo – pelas competências atribuídas à Agência Nacional de Águas (“ANA”) e restrições impostas à autonomia Municipal para a gestão e prestação dos serviços; 2) restrições ao exercício do direito fundamental à saúde e ao acesso à água, além da violação aos preceitos de redução da pobreza e desigualdades regionais – considerando os riscos de violação ao princípio da universalização dos serviços e à modicidade das tarifas, bem como a inviabilização da atuação das companhias estaduais; 3) afronta às normas de finanças públicas, pois a lei gera despesas aos entes federativos sem indicar a fonte de custeio próprio ou estimativa do impacto orçamentário e financeiro; e 4) violação de normas de gestão pública, tais como a legalidade, a regra do concurso público, as normas gerais de licitações e contratos administrativos e a responsabilidade civil do Estado, atribuída exclusivamente ao Município.
Este texto tem por objetivo precípuo descrever o conteúdo das ADIs, razão pela qual não será feita a análise da pertinência dos argumentos ou da perspectiva de declaração da inconstitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal (“STF”), da nova lei do saneamento.
1) Violação do pacto federativo
As ADIs consideram que diversas normas editadas pela Lei nº 14.026/2020 violam o pacto federativo. Os questionamentos giram em torno, notadamente, das competências do Município, pois os serviços de saneamento compreendem atribuições inerentes ao interesse local.
Como parâmetros de controle, as ADIs indicam que diversas normas do Novo Marco Legal do Saneamento estariam a malferir o modelo republicano e federativo adotado no Brasil (art. 1º), a autonomia dos poderes (art. 2º), a autonomia dos entes federativos (art. 18), especificamente a dos Municípios; a competência da União para instituir diretrizes para o saneamento básico (art. 21, XX); as normas gerais de licitação e contratação, editadas pela União (art. 22, XXVII); a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em matéria de saneamento básico (art. 23, IX) e para legislarem sobre procedimentos em matéria processual e proteção e defesa da saúde (art. 24, XI e XII); e competência dos Estados-membros para instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum (art. 25, § 3º), a autonomia municipal e a cooperação das associações representativas no planejamento municipal (art. 29, caput e XII).
Ademais, as ADIs ressaltam as competências do Município para legislar sobre assuntos de interesse local, suplementar a legislação federal e a estadual no que couber e organizar e prestar os serviços públicos de interesse local (art. 30, I, II e V); o princípio da não intervenção, segundo o qual a União poderá intervir nos Estados para assegurar a observância do princípio constitucional da autonomia municipal (art. 34, VII, c); o princípio da não intervenção dos estados em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal (art. 35, IV); a necessidade de edição de Lei complementar, de competência da União, para articular sua ação em um mesmo complexo geoeconômico e social, visando a seu desenvolvimento e à redução das desigualdades regionais (art. 43); a violação da lei de consórcios públicos que autoriza os entes federativos a efetuarem a gestão associada de serviços públicos, editada com base no art. 241 da Constituição.
No caso dos serviços de saneamento básico, foram elencados pela ADI nº 6536 os dispositivos constitucionais de que tratam a matéria: (a) a competência da União para traçar diretrizes, por lei ordinária, sobre o saneamento básico (art. 21, XX); (b) a competência administrativa comum dos entes federativos para a promoção das condições do saneamento básico (art. 23, IX); e (c) a competência participativa do Sistema Único de Saúde na formulação da política e da execução de ações de saneamento básico (art. 200, IV).
Conforme as premissas estabelecidas na ADI nº 6536, o serviço público de saneamento é privativo do Poder Público no qual suas atribuições são inerentes ao interesse local, que se incluem, portanto, na competência originária do Município. Os autores desta ADI alegam que a competência municipal prevalece, mesmo que a natureza complexa do saneamento requeira a participação de outros Municípios e do Estado no planejamento, execução e gestão do serviço integrado. Assim, mesmo que se tenha, por delegação ou concessão, outorgado a operação de tais serviços à empresa pública ou sociedade de economia pertencente a Estado-membro, não se pode reduzir, direta ou indiretamente, as atribuições constitucionais dos Municípios, como foram feitas pela nova lei do saneamento.
Conforme arguido na ADI nº 6492, a União, no uso de competência para estabelecer diretrizes que deveriam limitar-se ao tratamento genérico da matéria, optou por a esgotá-la. O art. 4º-A da Lei nº 9.984/2000 (acrescido pela Lei nº 14.026/2020), atribuiu à ANA competência para o estabelecimento de normas gerais acerca da regulação tarifária dos serviços públicos de saneamento básico e a padronização dos instrumentos negociais referentes a tal serviço, impondo metas de qualidade, eficiência e ampliação de cobertura das atividades.
A conclusão da ADI nº 6492 é que houve violação à autonomia federativa por meio da elaboração de norma exauriente pela União, sem margem para que os entes federativos adequem-se, conforme suas peculiaridades regionais e locais, ainda mais quando se trata de assunto afeto ao Município atrelado à defesa do interesse local.
As normas que estariam a violar o pacto federativo no Novo Marco Legal do Saneamento também se referem às competências atribuídas à ANA, uma agência reguladora federal. Os pedidos de declaração de inconstitucionalidade consideram como premissa o superdimensionamento que a nova lei de saneamento deu à ANA, autarquia federal atualmente vinculada ao Ministério do Meio Ambiente (“MMA”), notadamente por violar a autonomia dos municípios na condução dos serviços públicos do saneamento básico brasileiro.
A Agência, segundo a ADI nº 6536, não possui competência técnica ou legal para planejar, gerir ou fiscalizar os serviços de saneamento de que são titulares os Municípios brasileiros e cujos serviços são executados, em boa parte, por meio de contratos administrativos com as Companhias Estaduais de Saneamento Básico (“CESB”). Inclusive, o próprio STF já decidiu pela titularidade de tais serviços pelos Municípios, sem a possibilidade de ingerência de outros entes federativos – conforme se observa na ADI 2.340/SC, Rel. Min. Ricardo Lewandowski (1), na ADI 1.842/RJ Rel. p/ Acórdão Min. Gilmar Mendes (2) e ADI 2077/BA Rel. Min. Alexandre de Moraes (3).
Ainda quanto à violação do pacto federativo, a ADI nº 6536, alegou que a nova lei estaria a coagir os Municípios a respeitar as determinações da ANA ou, do contrário, passarão a não ter mais acesso aos recursos públicos da União (art. 13, § 3º, da Lei nº 14.026/2020).
Também alegou a ADI nº 6536 que o poder normativo atribuído à ANA viola o espaço legislativo de normas gerais, que cabe à União, pois a Agência poderá suplementar a legislação federal. Além disso, tais normas de referência podem ainda afastar o princípio da reserva legal da União, Estados e Distrito Federal para legislar concorrentemente sobre procedimentos em matéria processual (art. 24, inciso XI, CF/88).
Outro aspecto relacionado ao pacto federativo diz respeito às formas de prestação dos serviços públicos de saneamento básico de “interesse comum”, estabelecidas pelo novo marco legal do saneamento. Alega a ADI nº 6536 que o requisito trazido pelo art. 3º, inciso XIV, da Lei nº 11.445/07 (art. 7º, Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020) é inconstitucional, uma vez que extrapola os limites de conformação legislativa ao criar novo requisito para a estruturação das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões (art. 25, § 3º, CF/88).
Na ADI nº 6492, alegou-se que a discricionariedade da ANA para compor os blocos de Municípios que irão prestar os serviços de “interesse comum”, pode fazer com que as empresas deixem de atender de forma realmente satisfatória as unidades federativas deficitárias e que a existência de subsídio cruzado perca o sentido.
Alega, ainda, que o dispositivo legal citado invade a competência constitucional (agora dos entes federativos estaduais) ao limitar a competência de instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, na forma do art. 25, § 3º, CF/88. A inconstitucionalidade, neste caso, estaria no fato de que não há obrigatoriedade constitucional das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões de ter que compartilhar, no todo ou em parte, instalações operacionais de infraestrutura de abastecimento de água e/ou de esgotamento sanitário (v. ADI 1.842/RJ, Rel. p/ Acórdão Min. Gilmar Mendes).
Além disso, o § 8º, do art. 13, da Lei nº 11.107/05 (art. 9º da Lei nº 14.026/2020) também viola a autonomia federativa dos Municípios, uma vez que eles não poderão escolher a forma de gestão dos serviços de saneamento básico, quer de forma direta, quer indireta, ou ainda, de forma associada.
Quanto à violação ao art. 241 da CR/1988, a ADI nº 6492 alega que a Lei 14.026/2020, em seus arts. 13, 14 e 18, encerra a possibilidade de contratos de programa serem firmados para prestação de serviço de saneamento básico, instituindo o contrato de concessão como único possível. Ademais, o art. 7º da Lei nº 14.026/2020 altera dispositivos da Lei nº 11.445/07, estabelecendo, em seu art. 10, a obrigatoriedade do uso de contrato de concessão quando da prestação de serviços concernentes ao saneamento básico, por entidade que não integre a administração do titular. Desta forma, a vedação do uso de contrato programa, convênio, termo de parceria, entre outros, também limita o exercício da autonomia municipal.
2) Restrições ao exercício do direito fundamental à saúde e ao acesso à água e violação aos preceitos de redução da pobreza e desigualdades regionais
As ADIs propostas argumentam que o novo marco legal do saneamento restringe ou inviabiliza o exercício do direito fundamental à saúde e ao acesso à água e viola os preceitos constitucionais que determinam a redução da pobreza e das desigualdades regionais.
As normas constitucionais que estariam sendo violadas são o art. 3º, III e IV, que estabelece os objetivos fundamentais da República Federativa (tais como a erradicação da pobreza, a marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais), e o art. 170, VII, segundo o qual é fundamento da ordem econômica reduzir as desigualdades regionais e sociais.
Essas violações, segundo a ADI nº 6536 encontram-se na possibilidade prevista em lei dos serviços deixarem de ser prestados por companhias estaduais e passarem a ser prestados por delegação ao particular, pois transfere o serviço para o campo das atividades econômicas. A premissa tomada na citada ADI é a de que o objetivo prestacional do saneamento básico não pode ser o lucro dos particulares, mas a satisfação do interesse público. Os diversos incentivos criados pela lei para que ocorra a delegação dos serviços ao setor privado, afetará a universalidade da prestação do serviço público, violando a igualdade dos usuários consumidores e a modicidade tarifária.
Nesse contexto, a ADI nº 6492 requer nos pedidos da inicial, que o art. 22, IV, da Lei nº 14.026/2020 deva receber interpretação conforme à Constituição, para que as tarifas subam de acordo com o salário mínimo, com o intuito de que a universalização do serviço de saneamento básico não repouse apenas na seara retórica, de modo a garantir que os cidadãos não sejam onerados com a intensificação da venda de água.
A ADI nº 6492, por sua vez, levanta a questão da água como direito fundamental, razão pela qual, caso não seja garantida a ampla fruição dos serviços pelos usuários em razão dos elevados valores da tarifa (inobservância do princípio da modicidade das tarifas), o Estado não pode delegar a prestação de serviço, sob pena de desvio de finalidade.
Além disso, alegam que a universalização do serviço público de saneamento básico pode ficar comprometida pela dilapidação do patrimônio público, in casu, com a privatização das CESB. Para o autor da ADI nº 6492, a nova legislação editada enfraquecerá as empresas estaduais de saneamento, na medida em que colocará em risco o sistema de subsídio cruzado, em que os municípios superavitários compensam os deficitários. Não bastasse o problema do financiamento dos serviços, a ADI nº 6492 alega, ainda, que a Lei 14.026/2020, ao impossibilitar a renovação dos contratos de programa vigentes, retira as condições econômicas de sobrevivência das companhias de saneamento.
Outro argumento levantado na ADI nº 6492, quanto ao acesso aos serviços, é o risco de a legislação criar um monopólio do setor privado nos serviços essenciais de acesso à água e ao esgotamento sanitário – não contribuindo para a universalização do acesso aos serviços.
Em síntese, a violação da modicidade da tarifa e a não universalidade do serviço poderão resultar na violação dos direitos fundamentais dos usuários.
3) Afronta a normas de finanças públicas
As normas constitucionais que estariam sendo violadas pela nova lei do saneamento seriam: a 165, § 7º, que delimita o dever da legislação orçamentária de reduzir desigualdades inter-regionais, segundo critério populacional; art. 167, II, que veda a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais; bem como o art. 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (“ADCT”), segundo o qual a proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.
Nesse contexto, a ADI nº 6536 alegou que a nova lei de saneamento gerou despesas aos Municípios sem indicar a fonte de custeio próprio para estas novas despesas, nem sequer estimou o seu impacto orçamentário e financeiro.
A ADI nº 6492, por sua vez, alegou que o art. 5º da Lei nº 14.026/2020 cria onerações vultosas sem as devidas estimativas de impacto fiscal e financeiro, haja vista que amplia as atribuições da ANA, que necessitara? de largo quadro de pessoal, estimado em 239 (duzentos e trinta e nove) cargos de Especialista em Recursos Hídricos e Saneamento Básico. A nova lei de saneamento tambe?m cria o Comite? Interministerial de Saneamento Ba?sico (“Sisb”), sem a indicação dos impactos orc?amenta?rios para tanto, conforme determina a Constituic?a?o Federal de 1988.
4) Violação a normas de gestão pública
De acordo com as ADIs nº 6492 e 6536, o novo marco legal do saneamento também violou o art. 37, caput, incisos II e XXI e § 6º, que tratam do princípio da legalidade; da regra do concurso público, das normas gerais de licitações e contratos administrativos; e da responsabilidade civil do Estado, que determina a responsabilidade civil objetiva do Estado e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos pelos danos causados a usuários e terceiros usuários de serviços públicos.
A regra do concurso público foi violada, segundo a ADI nº 6536, pelo desvio de finalidade dos servidores titulares do cargo público de Especialista em Regulação de Recursos Hídricos na estrutura originária da ANA, pois a lei ordinária não pode subordinar o servidor de cargo efetivo ao exercício de novas atribuições inexistentes no momento de sua investidura, e, atualmente, há vedação legal à realização de concurso público até 31 de dezembro de 2021 (art. 8º, inciso V, Lei Complementar n. 173, de 27 de maio de 2020).
Acerca das normas gerais de licitações e contratos, a ADI nº 6492 argumenta que é inconstitucional o art. 7º, da Lei 14.026, pois obriga que os contratos de saneamento contenham as cláusulas essenciais do contrato de concessão, sob pena de nulidade.
Por fim, segundo a ADI nº 6536, não se mostra razoável a imposição de responsabilidades administrativa, civil e penal exclusivamente aos Municípios – titulares dos serviços públicos – excluindo os Estados e a União, conforme se pretende o art. 8º-B da nova lei do saneamento.
5) Primeiros encaminhamentos e tramitação da ADI
Em que pese ambas as ADIs terem requerido medida liminar – seja para a declaração de inconstitucionalidade para suspender a integralidade do texto da Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020 (ADI nº 6536), seja para a declaração imediata da inconstitucionalidade de dispositivos específicos da lei (4) (ADI nº 6492) – o pedido liminar da ADI nº 6492 foi indeferido e o da ADI nº 6536 não foi apreciado pelo Min. Luiz Fux.
O relator, em despachos proferidos nessas ADIs, determinou o apensamento das ações, de forma que irão tramitar conjuntamente. No pedido liminar da ADI nº 6536 foi determinado que as autoridades competentes prestem informações e/ou manifestem-se no processo.
Ao apreciar esta liminar, o Ministro Luiz Fux considerou que, por se tratar de matéria que se reveste de grande relevância e apresenta especial significado para a ordem social e a segurança jurídica, a decisão a ser tomada deve ser feita em caráter definitivo, mediante a adoção do rito abreviado previsto no art. 12 da Lei Federal 9.868/1999. Segundo este dispositivo, ouvidas as autoridades competentes, o relator pode submeter o processo diretamente ao Tribunal, que terá a faculdade de julgar definitivamente a ação. Há possibilidade, portanto, de que o pedido liminar seja apreciado, mas o caso seja julgado diretamente pelo plenário do STF.
A consulta à integralidade das ADIs ora descritas podem ser feitas aqui e aqui.
Mais informações podem ser obtidas com a equipe de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados.
Maria Tereza Fonseca Dias
Sócia e Coordenadora da Equipe de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
(1) Conforme relatado na ADI 6492, a ADI 2340, julgada pelo STF, decidiu que a competência para legislar sobre as obras e serviços para fornecimento de água potável e eliminação de detritos sanitários domiciliares, incluindo a captação, condução, tratamento e despejo adequado, é do ente municipal.
(2) Conforme relatado na ADI 6492, o STF firmou entendimento, na ADI 1.842 que a concentração do poder decisório sobre serviços de interesse comum nas mãos de um único ente federado não respeita a autonomia dos municípios.
(3) Conforme relatado na ADI 6536, o Supremo entendeu pela inconstitucionalidade de norma que desloca a competência municipal de prestação de serviço público de saneamento básico para o Estado, haja vista se tratar de serviço de interesse predominantemente local.
(4) Artigos 3º, 5º, 7º, 11º e 13º dentre outros por arrastamento.