Em recente decisão, o Ministro do STF Luiz Fux exige CND para homologação de plano de recuperação judicial
Eduardo Metzker Fernandes
No dia 9 de setembro de 2020, foi publicada a decisão do Ministro Luiz Fux, que causou espécie nas empresas que estão em recuperação judicial e naquelas que cogitam se valer dessa medida.
Nos autos da Reclamação 43.169, Luiz Fux deferiu a medida liminar pleiteada pela União Federal, para suspender os efeitos de um acórdão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) (1), que dispensava o devedor de apresentar Certidões Negativas de Débito (“CND’s”) – ou positiva com efeitos de negativa – para a homologação do plano de recuperação judicial.
A apresentação das CND’s está prevista nos artigos 57, da Lei nº 11.101/2005, e 191-A, do Código Tributário Nacional:
Art. 57. Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembleia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional.
Art. 191-A. A concessão de recuperação judicial depende da apresentação da prova de quitação de todos os tributos, observado o disposto nos arts. 151, 205 e 206 desta Lei.
A literalidade do texto legal, como se vê, aponta para a necessidade de o devedor apresentar as certidões negativas de débitos tributários para postularem a recuperação judicial.
No entanto, a jurisprudência sempre se inclinou em considerar a exigência inadequada, pois representaria nítido conflito com o espírito e o objetivo da lei de recuperação judicial e falência de viabilizar a superação de crise econômico-financeira do devedor.
Assim, consolidou-se nos tribunais o entendimento do Enunciado 55 da I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal: “O parcelamento do crédito tributário na recuperação judicial é um direito do contribuinte, e não uma faculdade da Fazenda Pública, e, enquanto não for editada lei específica, não é cabível a aplicação do disposto no art. 57 da Lei n. 11.101/2005 e no art.191-A do CTN”.
Como se vê, o fundamento precípuo da jurisprudência consistia na inexistência de lei específica acerca das regras de parcelamento das dívidas tributárias de empresas em recuperação judicial.
Com a promulgação da Lei nº 13.043/14, que instituiu o parcelamento desses débitos junto à União, a discussão que se estabeleceu foi no sentido de ter havido o preenchimento da lacuna legislativa, e se o artigo 10-A da Lei nº 10.522/02 (2) (inserido pela Lei nº 13.043/14) alteraria o entendimento até então não consolidado nos tribunais.
Sobre o tema, Fábio Ulhoa Coelho (3) afirma que:
Uma das questões ainda não satisfatoriamente resolvidas, no plano legal, no tocante à recuperação judicial, diz respeito ao passivo fiscal da sociedade em crise. Em função do princípio da indisponibilidade do interesse público, na lei tributária não se acomoda bem qualquer tipo de negociação do crédito fiscal. É, assim, inteiramente irreconciliável com esse princípio de direito público a previsão, no campo de recuperação apresentado pelo devedor, de parcelamento ou abatimento do valor devido ao fisco, já que somente a lei pode estabelecer qualquer remissão do crédito tributário (CTN, art. 172). Por esta razão, a LF previu, no art. 68, uma “lei específica” que disciplinará o parcelamento dos débitos fiscais do empresário e da sociedade empresária em recuperação. Esta lei, no entanto, não foi editada e a lacuna legal tem trazido sérios problemas aos processos de recuperação em curso, na medida em que boa parte do passivo das empresas em crise é representada por dívida tributária. (...) Apesar da indesculpável demora, o legislador editou a prometida lei de parcelamento (Lei n. 13.043/2014) e a regulamentou (Portaria PGFN-RFB n. 1/15). Encerrou-se, deste modo a “mora legislativa” que, durante anos, havia sido invocada pelo Poder Judiciário para suspender a incidência do art. 57.
O STJ teve a oportunidade de enfrentar a questão e manteve a orientação no sentido da dispensa da exigência das certidões de regularidade fiscal para homologação do plano de recuperação judicial, fazendo-o sob o fundamento principal de que deve preponderar o princípio da preservação da empresa, insculpido no artigo 47 da lei de recuperação judicial e falência (4).
O acórdão da 3ª Turma do STJ, suspenso pela decisão do Ministro Fux, consignou ainda que a exigência das CND’s não garante o adimplemento do crédito tributário e acaba impondo uma dificuldade ainda maior ao Fisco, pois essa categoria de crédito, na hipótese de falência, encontra-se em terceiro lugar na ordem de preferências. Para a 3ª Turma, a exigência das certidões também seria desnecessária, já que os meios de cobrança das dívidas de natureza fiscal não se suspendem com o deferimento do pedido de recuperação judicial. Veja-se:
RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CERTIDÕES NEGATIVAS DE DÉBITOS TRIBUTÁRIOS. ART. 57 DA LEI 11.101/05 E ART. 191-A DO CTN. EXIGÊNCIA INCOMPATÍVEL COM A FINALIDADE DO INSTITUTO. PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA E FUNÇÃO SOCIAL. APLICAÇÃO DO POSTULADO DA PROPORCIONALIDADE. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DA LEI 11.101/05. 1. Recuperação judicial distribuída em 18/12/2015. Recurso especial interposto em 6/12/2018. Autos conclusos à Relatora em 30/1/2020. 2. O propósito recursal é definir se a apresentação das certidões negativas de débitos tributários constitui requisito obrigatório para concessão da recuperação judicial do devedor. 3. O enunciado normativo do art. 47 da Lei 11.101/05 guia, em termos principiológicos, a operacionalidade da recuperação judicial, estatuindo como finalidade desse instituto a viabilização da superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. Precedente. 4. A realidade econômica do País revela que as sociedades empresárias em crise usualmente possuem débitos fiscais em aberto, podendo-se afirmar que as obrigações dessa natureza são as que em primeiro lugar deixam de ser adimplidas, sobretudo quando se considera a elevada carga tributária e a complexidade do sistema atual. 5. Diante desse contexto, a apresentação de certidões negativa de débitos tributários pelo devedor que busca, no Judiciário, o soerguimento de sua empresa encerra circunstância de difícil cumprimento. 6. Dada a existência de aparente antinomia entre a norma do art. 57 da LFRE e o princípio insculpido em seu art. 47 (preservação da empresa), a exigência de comprovação da regularidade fiscal do devedor para concessão do benefício recuperatório deve ser interpretada à luz do postulado da proporcionalidade. 7. Atuando como conformador da ação estatal, tal postulado exige que a medida restritiva de direitos figure como adequada para o fomento do objetivo perseguido pela norma que a veicula, além de se revelar necessária para garantia da efetividade do direito tutelado e de guardar equilíbrio no que concerne à realização dos fins almejados (proporcionalidade em sentido estrito). 8. Hipótese concreta em que a exigência legal não se mostra adequada para o fim por ela objetivado - garantir o adimplemento do crédito tributário -, tampouco se afigura necessária para o alcance dessa finalidade: (i) inadequada porque, ao impedir a concessão da recuperação judicial do devedor em situação fiscal irregular, acaba impondo uma dificuldade ainda maior ao Fisco, à vista da classificação do crédito tributário, na hipótese de falência, em terceiro lugar na ordem de preferências; (ii) desnecessária porque os meios de cobrança das dívidas de natureza fiscal não se suspendem com o deferimento do pedido de soerguimento. Doutrina. 9. Consoante já percebido pela Corte Especial do STJ, a persistir a interpretação literal do art. 57 da LFRE, inviabilizar-se-ia toda e qualquer recuperação judicial (REsp 1.187.404/MT). 10. Assim, de se concluir que os motivos que fundamentam a exigência da comprovação da regularidade fiscal do devedor (assentados no privilégio do crédito tributário), não tem peso suficiente - sobretudo em função da relevância da função social da empresa e do princípio que objetiva sua preservação - para preponderar sobre o direito do devedor de buscar no processo de soerguimento a superação da crise econômico-financeira que o acomete. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. (REsp 1864625/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/06/2020, DJe 26/06/2020)
Não satisfeita com o entendimento do STJ, a União Federal apresentou Reclamação ao Supremo Tribunal Federal (“STF”), com pedido liminar, sob a alegação de que a 3ª Turma do STJ teria afastado a aplicação dos artigos 57, da Lei nº 11.101/2005, e 191-A, do Código Tributário Nacional, sem a observância da regra da reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10) (5).
O Ministro Fux, em sua decisão, assinalou que a exigência das certidões de regularidade fiscal faz parte de um sistema em que o devedor deve regularizar a sua situação por meio de parcelamento tributário. Isso porque o deferimento do parcelamento induz à suspensão da exigibilidade dos créditos tributários (CTN, art. 151, VI), o que possibilita a expedição das CND’s, viabilizando a concessão da recuperação judicial.
Acrescentou ainda que “os dispositivos afastados na decisão reclamada impõem é que para além da negociação com credores privados, o devedor efetive a sua regularização, por meio do parcelamento, de seus débitos junto ao Fisco” e que “a não efetivação desta medida possibilita a continuidade dos executivos fiscais movidos pela Fazenda (art. 6º, § 7º da Lei 11.101/05), o que, em última instância, pode resultar na constrição de bens que tenham sido objeto do Plano de Recuperação Judicial, situação que não se afigura desejável”.
Para Fux, os fundamentos da jurisprudência e do acórdão do STJ não mais subsistem, na medida em que já existe legislação própria cuidando dos meios de regularização fiscal das empresas em recuperação judicial (Lei nº 13.043/14, que trata do parcelamento tributário das empresas em recuperação judicial, e Lei nº 13.988/2020, que dispõe sobre a transação na cobrança de créditos tributários).
Em sentido oposto, Kiyoshi Harada (6) diz que:
A interpretação literal do art. 57 não se harmoniza com os demais dispositivos legais e constitucionais, nem com a situação conjuntural reinante em que a crise econômico-financeira das empresas em geral é ocasionada pelo nível da pressão tributária já saturada, agravada pela exigência de tributos por instrumentos normativos não conformados com os princípios constitucionais tributários, uma das razões do elevado estoque da dívida ativa dos três entes políticos tributantes.
O contribuinte brasileiro convive com um sistema tributário complexo, dúbio e nebuloso, recheado de normas de diferentes espécies despejadas diariamente com inusitado sadismo burocráticos que consome do empresário o mínimo de 2600 horas de trabalho ao ano só para dar cumprimento às obrigações tributárias acessórias e principais, o que afasta os nossos produtos e serviços do mercado internacional globalizado.
Dentro desse contexto, exigir certidões negativas como condição para conceder a recuperação judicial é o mesmo que sepultar de vez o novel instrumento normativo que veio à luz para substituir a antiga lei de falência e concordatas, a fim de se adequar à nova realidade econômica do País.
Não se pode esquecer que o instituto da recuperação judicial foi criado para garantir meios de sobrevivência às empresas com dificuldade econômico-financeira. Desta forma, ainda que o artigo 57 da Lei nº 11.101/05 determine a apresentação das certidões de regularidade fiscal, tal exigência não deve ser considerada de modo absoluto.
Parece bastante razoável o entendimento de que o artigo 47 da Lei nº 11.101/05 e 170 da Constituição da República (7) permitem a mitigação da exigência da apresentação de CND para homologação de plano de recuperação judicial.
É certo que a decisão do Ministro Fux se limita a analisar um caso específico e ainda precisa ser confirmada pelo colegiado do STF, mas ainda assim indica que a existência de parcelamentos próprios pode ser capaz de alterar o rumo da jurisprudência sobre o tema. De todo modo, o ideal seria que o Fisco passasse a contribuir de modo mais assertivo para a recuperação de empresas em situação financeira delicada, esforçando-se para a manutenção das atividades do contribuinte, aproximando-se das concessões realizadas pelos credores privados envolvidos na recuperação.
Eduardo Metzker Fernandes
Advogado Coordenador da Equipe de Contencioso Cível Estratégico do VLF Advogados
(1) REsp 1864625/SP.
(2) Art. 10-A. O empresário ou a sociedade empresária que pleitear ou tiver deferido o processamento da recuperação judicial, nos termos dos arts. 51, 52 e 70 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, poderão parcelar seus débitos com a Fazenda Nacional, em 84 (oitenta e quatro) parcelas mensais e consecutivas, calculadas observando-se os seguintes percentuais mínimos, aplicados sobre o valor da dívida consolidada:
I - da 1a à 12a prestação: 0,666% (seiscentos e sessenta e seis milésimos por cento);
II - da 13a à 24a prestação: 1% (um por cento);
III - da 25a à 83a prestação: 1,333% (um inteiro e trezentos e trinta e três milésimos por cento); e
IV - 84a prestação: saldo devedor remanescente.
(3) COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à lei de falências e de recuperação de empresas. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 239.
(4) Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
(5) Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte.
(6) HARADA, Kiyoshi. Os aspectos tributários e as questões controvertidas na lei de recuperação e falência. In: ANDRIGHI, Fática Nancy; BENETI, Sidnei; ABRÃO, Carlos Henrique (coord.). 10 anos de vigência da lei de recuperação e falência (Lei n. 11.101/2005): retrospectiva geral contemplando a Lei n. 13.043/2014 e a Lei Complementar n. 147/2014. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 455.
(7) Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte.
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.