Análise dos critérios adotados pelo Código de Processo Civil para a distribuição do ônus probatório
Luciana de Lourdes Marques Corrêa Netto
A legislação brasileira traz uma série de comandos, regras de conduta e hipóteses às quais se incluem os fatos ocorridos no mundo físico.
Assim, determinada situação vivenciada precisa ser adequadamente reproduzida nos autos de uma demanda judicial para que o juiz aplique o melhor direito ao caso concreto. Um dos grandes desafios das partes e dos advogados é a reconstrução desses fatos no bojo do processo, de modo a permitir que o Estado, pela decisão do magistrado, cumpra o objetivo fundamental da jurisdição, que é a justa composição da lide.
É por isso que, geralmente, cada sujeito da relação processual tem o ônus de provar aquilo que alega e defende.
Em termos gerais, o ônus da prova versa sobre a adoção de regras para determinar qual parte da relação processual – Autor ou Réu – será responsável pela produção de determinada prova e sobre qual delas recairão as consequências do não cumprimento.
Sobre o instituto, Haroldo Lourenço explica de forma clara:
O ônus de provar, como cediço, não se trata de obrigação, tampouco de dever, mas meramente de um encargo do qual deve se desincumbir o litigante que, segundo as regras de definição, tem a incumbência de convencer o juiz da veracidade das alegações afirmadas. (1)
O Código de Processo Civil (2) atualmente em vigor utiliza como regra geral o critério ope legis para imputar às partes do litígio o ônus de provar determinado fato. Em outras palavras: é a lei que estabelece qual parte sofrerá com as consequências da não produção da prova que lhe incumbe.
O critério ope legis permite que todos os sujeitos do processo, antes mesmo da formação da relação processual, conheçam quais ônus probatórios terão de assumir e, consequentemente – e mais importante –, quem sofrerá com as consequências de não se desincumbir do ônus.
Em que pese a clareza da disposição legal, a regra rígida e ortodoxa prevista no comando do art. 373 do CPC (2) trouxe consigo críticas doutrinárias albergadas pela jurisprudência, em face da injustiça dela decorrente em algumas situações específicas do dia a dia forense.
É certo que a aplicação de um sistema estático de ônus da prova não leva em consideração as dificuldades e as condições de cada parte em produzir determinada prova, observadas as características do caso.
A rigidez do comando existente no art. 373 do CPC (2) não soluciona de forma justa todas as espécies de litígio. As denominadas “provas diabólicas” são um exemplo clássico da vulnerabilidade do sistema, pois o direito da parte pode deixar de ser reconhecido judicialmente em razão da não comprovação de um fato alegado, muito embora, por vezes, essa prova se revelasse impossível.
Ao deixar de analisar as circunstâncias casuísticas para a definição do ônus probatório, abre-se um indesejado precedente às partes que, mesmo possuindo as melhores condições para a produção de certa prova, ficam inertes para se beneficiarem de um provimento judicial favorável.
Em decorrência dessa flagrante incapacidade de a regra geral da distribuição do ônus da prova resolver satisfatoriamente as mais variadas situações experimentadas na rotina forense, desenvolveu-se a teoria da distribuição dinâmica da carga probatória, também conhecida como critério ope judicis, isto é, passa a ser do juiz a obrigação de verificar e imputar o ônus à parte com maior facilidade em produzi-la.
Essa teoria encontra-se implicada no § 1° do art. 373 do CPC, que prevê a possibilidade de o juiz modificar a atribuição do ônus probatório, mediante decisão fundamentada, nos casos em que haja previsão legal ou “diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo” probatório que, em regra, caberia, “ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário”.
Está claro que o CPC não adotou a distribuição flexível do ônus da prova como regra, mas somente trouxe a previsão de uma inversão de ônus da prova com a ideia da sua carga dinâmica.
Atualmente, entende-se o ônus da prova como uma ferramenta que deve compreender melhor as particularidades do caso concreto, sobretudo em relação à capacidade das partes em produzir determinada prova.
Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), em acórdão publicado no último dia 14 de setembro de 2020 (Resp. nº 1.807.831/RO), fixou o entendimento de que a análise da distribuição do ônus da prova deve ser pontual, em relação a cada ponto controvertido, não de forma irrestrita. No voto, o eminente relator Ministro Herman Benjamin consignou o seguinte (3):
Não se trata, contudo, de prerrogativa judicial irrestrita, pois depende ora de previsão legal (direta ou indireta, p. ex., como consectário do princípio da precaução), ora, na sua falta, de peculiaridades da causa, associadas quer à impossibilidade ou a excessivo custo ou complexidade de cumprimento do encargo probante, quer à maior capacidade de obtenção da prova pela parte contrária. Naquela hipótese, em reação à natureza espinhosa da produção probatória, a inversão foca em dificuldade do beneficiário da inversão; nesta, prestigia a maior facilidade, para tanto, do detentor da prova do fato contrário. Qualquer elemento probatório, pontualmente – ou todos eles conjuntamente –, pode ser objeto da decretação de inversão, desde que haja adequada fundamentação judicial.
Feita essa análise, surge a seguinte indagação: redistribuído o ônus probatório, o sujeito da relação processual que recebeu a incumbência da prova está obrigado a produzi-la?
Apesar de o STJ entender que essa incumbência não é um dever, mas uma faculdade, a sua inobservância gera consequência grave, pois, caso a parte não produza a prova, os fatos afirmados pela parte contrária serão presumidos verdadeiros.
Veja o que disserta o ilustre relator no voto proferido por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.807.831/RO:
A alteração ope legis ou ope judicis da sistemática probatória ordinária leva consigo o custeio da carga invertida, não como dever, mas como simples faculdade. Logo, não equivale a compelir a parte gravada a pagar ou a antecipar pagamento pelo que remanescer de ônus do beneficiário. Modificada a atribuição, desaparece a necessidade de a parte favorecida provar aquilo que, daí em diante, integrar o âmbito da inversão.
Como visto, a redistribuição do ônus da prova, nos termos do precedente do STJ acima citado, não significa, necessariamente, que o réu esteja obrigado, por exemplo, a antecipar os honorários do perito; efetivamente não está, mas, se não o fizer, serão presumidos verdadeiros os fatos afirmados pela parte contrária, antiga titular do ônus da prova invertido.
A doutrina também entende que o ônus probatório não se trata de uma obrigação da parte, mas, sim, de uma faculdade. Confira o que diz Haroldo Lourenço a respeito:
Observe-se que quando o sujeito deixa de cumprir o seu ônus de provar submete-se às consequências previstas para a sua inobservância, que podem ou não ser contrárias ao seu interesse (ônus processual imperfeito, portanto). Há, na verdade, um aumento do risco de um julgamento contrário.
[...]
Tem-se com o ônus, a necessidade de seguir uma data conduta em benefício próprio. No ônus não há sujeição do onerado; ele escolhe entre satisfazer ou não a tutela do próprio interesse. De igual modo, não há obrigação, pois esta gera para o obrigado uma sujeição.
Por fim, e muito importante, é necessário esclarecer que há diferenças entre a teoria dinâmica do ônus da prova e a famigerada inversão do ônus da prova.
A inversão do ônus da prova, trazida pelo artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor (“CDC”), estabelece, de forma antecipada, que, nas relações de consumo, caso a parte autora seja hipossuficiente ou verossímeis as suas alegações, está isenta de provar os fatos constitutivos do direito que alega ter, sendo direcionado à parte ré o ônus probatório.
Vale aqui a transcrição dos escritos de Haroldo Lourenço:
A inversão do ônus da prova é a ‘negação da negação’, porque dá à prova a mesma conotação punitiva e vinculada ao direito material, privatista, e, o que é pior, sob o jargão da isonomia real. E concluiu: ‘Julga-se com a mesmíssima incerteza, acentuada pela surpresa na hora do julgamento, com a diferença de que o mais forte suportaria uma justiça injustiça’. (1)
Pode-se concluir que o CDC confere poderes ao juiz para inverter o ônus da prova dentro dos critérios legais de existência de verossimilhança ou hipossuficiência da parte.
Por outro lado, a teoria dinâmica do ônus da prova independe de qualquer relação de consumo. Aqui, o que ocorre é a definição de quem deve produzir determinada prova, sempre observadas as peculiaridades do caso concreto, isto é, o ônus da prova incumbirá à parte que detiver conhecimentos técnicos ou informações específicas sobre os fatos ou maior facilidade de demonstração.
Logo, ciente de que o tema é abrangente, conclui-se que a teoria dinâmica de distribuição do ônus da provas (art. 373, §1º do CPC) é benéfica ao ordenamento jurídico, já que a sua correta aplicação amplia a probabilidade de um resultado mais justo à lide e a garantia de um melhor acesso à justiça, pressupostos básicos do Direito Processual Civil moderno.
Luciana de Lourdes Marques Corrêa Netto
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) LOURENÇO, Haroldo. Teoria dinâmica do ônus da prova no novo CPC. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
(2) BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 22 out. 2020.
(3) STJ. REsp nº 1.807.831/RO. Acórdão publicado em 14.9.2020. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=%27201900969783%27.REG. Acesso em: 22 out. 2020.