Código de Defesa do Consumidor comemora seu 30º aniversário em meio à pandemia que alterou grande parte da relação consumerista
Guilherme Henrique Vieira Calais Rezende
Considerada uma das contribuições legislativas mais importantes dos últimos tempos, o Código de Defesa do Consumidor (“CDC”) (1) acaba de comemorar 30 anos destinados, notadamente, a equilibrar as relações de consumo, as quais sempre foram objeto de crítica pela imponente prevalência cognitiva dos fornecedores em detrimento dos consumidores.
Por meio da legislação citada, o Poder Judiciário pode, enfim, analisar as relações consumeristas sob a ótica da equidade processual, fazendo com que as partes pudessem ser encaradas como tecnicamente iguais na defesa de seus respectivos direitos, seja na constituição ou no impedimento do provimento jurisdicional.
Todavia, há de se considerar que durante todo este tempo, em que a defesa do consumidor se demonstrou de grande contribuição no mundo jurídico, nenhuma situação trouxe tantas relativizações ao universo jurídico quanto a pandemia do Coronavírus.
Diante de um cenário agonizante para diversos setores do comércio, em que se viu a estagnação de atividades intimamente atreladas ao ato negocial presencial, o Governo Federal se viu compelido a contingenciar direitos consumeristas e adotar estratégias que deem fôlego à economia.
Dentre elas, a mudança mais significativa se fez mediante a promulgação da Lei nº 14.010 (2), que dispôs sobre o chamado Regime Jurídico Emergencial e Transitório (“RJET”). A referida legislação determina a relativização de algumas situações jurídicas que, em detrimento do momento pandêmico, causariam o desequilíbrio da relação imposta para alguma das partes, como entendeu-se ser o caso do art. 49 do CDC (3).
O RJET impôs a suspensão da aplicação do chamado “direito de arrependimento” para entregas em domicílio (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos, determinando ainda que a suspensão fosse mantida, a priori, até 31 de outubro do ano corrente.
Não foi, entretanto, só isso. Dois dos mercados mais afetados durante o surto pandêmico ganharam uma sobrevida do Governo Federal: o setor da aviação civil e o setor de eventos.
Mediante a promulgação da Lei nº 14.034 (4), que passou a vigorar no mês de agosto, a malha aérea brasileira ganhou prazo dilatado de até 12 (doze) meses para que proceda ao reembolso dos valores tidos com a aquisição de passagens aéreas até o último dia do ano corrente.
Já a Lei nº 14.046 (5), também em vigor desde o fim do mês de agosto, possibilitou ao prestador de serviços a isenção de reembolso ao consumidor em relação a eventos culturais entre os meses de março/2020 e setembro/2021, desde que assegurada a remarcação do serviço e a disponibilização do crédito para uso em compra da mesma empresa.
À frente de todas as legislações supracitadas, parte da doutrina argumenta que o CDC deveria ser detidamente analisado e aplicado, porquanto possui previsão expressa de revisão de cláusulas contratuais em detrimento de situações supervenientes que tornem a relação demasiadamente onerosa (6).
Contudo, é importante salientar que o exercício de relativização de algumas normas é medida necessária em meio a uma das maiores crises sofridas pelo país, a fim de que se preserve, de maneira excepcional, a possibilidade de giro do capital mediante uma relação consumerista sadia, ainda que, para isto, esteja ocorrendo uma excepcional alteração na dinâmica jurídica.
Decerto, em toda a sua história, o CDC nunca enfrentou tantos desafios para demonstrar a sua força no mundo jurídico, cabendo ao legislador e ao operador do direito uma análise aprofundada do regime jurídico emergencial à luz das normas protetivas ao consumidor, tornando ambos em institutos complementares, e não, excludentes entre si.
Guilherme Henrique Vieira Calais Rezende
Advogado da Equipe de Direito Consumerista do VLF Advogados
(1) BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 20 out. 2020.
(2) BRASIL. Lei nº 14.020, de 6 de julho de 2020. Institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda; dispõe sobre medidas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020; altera as Leis nos 8.213, de 24 de julho de 1991, 10.101, de 19 de dezembro de 2000, 12.546, de 14 de dezembro de 2011, 10.865, de 30 de abril de 2004, e 8.177, de 1º de março de 1991; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14020.htm. Acesso em: 20 out. 2020.
(3) “Art. 49 do CDC - O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.”
(4) BRASIL. Lei nº 14.034, de 5 de agosto de 2020. Dispõe sobre medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da Covid-19; e altera as Leis nos 7.565, de 19 de dezembro de 1986, 6.009, de 26 de dezembro de 1973, 12.462, de 4 de agosto de 2011, 13.319, de 25 de julho de 2016, 13.499, de 26 de outubro de 2017, e 9.825, de 23 de agosto de 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L14034.htm. Acesso em: 20 out. 2020.
(5) BRASIL. Lei nº 14.046, de 24 de agosto de 2020. Dispõe sobre o adiamento e o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e de cultura em razão do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia da Covid-19. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L14046.htm. Acesso em: 20 out. 2020.
(6) “Art. 6º do CDC - São direitos básicos do consumidor: (...) V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.”