O impacto das novas regras de PLR nas cobranças em discussão
Vinícius Vasconcelos
Os programas de pagamento de participação de lucros e resultados (“PLR”) a empregados geraram um contencioso considerável nos últimos anos no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”), no qual estavam prevalecendo interpretações fazendárias excessivamente restritivas sobre dispositivos da Lei nº 10.101/2000, algumas delas em virtude do voto de qualidade. Foram chanceladas exigências fiscais não expressamente previstas em lei, o que criou barreiras à distribuição de PLR aos trabalhadores.
Dentre tais exigências, destaca-se a interpretação de que um pacto prévio de PLR baseado em programa de metas deveria ser celebrado no exercício anterior ao ano base utilizado para cálculo da PLR, de que a violação à periodicidade levaria a tributação de todos os valores e de que sempre deveria haver metas estabelecidas, embora a fixação de metas seja apenas um dos critérios possíveis de negociação estabelecidos pela Lei nº 10.101/2000. Algumas autuações discutiam até mesmo o conteúdo substantivo das regras da PLR, questionando sua clareza e completude, e, mesmo sem a definição do que seria “claro” o suficiente para o Fisco, isso também foi considerado uma irregularidade na esfera administrativa.
Como resposta a esses entendimentos, foi editada a Medida Provisória nº 937/2019 com várias regras de PLR, que foram vetadas com a conversão na Lei nº 14.020/2020 (1). Contudo, quase todos os vetos dos dispositivos sobre PLR foram derrubados pelo Congresso. Não foi o caso do art. 37 (2), que previa que as regras seriam consideradas interpretativas para efeitos da aplicação do inciso I do art. 106 do Código Tributário Nacional (“CTN”) (3).
Dentre as novidades, estão novos parâmetros para a configuração de um “acordo prévio”: as regras de PLR devem ser fixadas em instrumento celebrado com pelo menos 90 dias de antecedência ao pagamento da parcela única de PLR ou do pagamento da parcela final, caso haja antecipação de parte dos valores. Veja-se que a lei não definiu nenhum período entre a data de celebração do acordo coletivo e da data do pagamento da antecipação.
Outra novidade importante foi a determinação do alcance do desrespeito à periodicidade (mais pagamentos de PLR no período do que o permitido). Anteriormente, prevalecia o entendimento desproporcional de que qualquer violação à periocidade macularia todos os pagamentos. Com as novas regras, apenas os pagamentos feitos a maior a determinado empregado dentro do mesmo ano e em periodicidade inferior a um trimestre civil do pagamento anterior são descaracterizados e, portanto, sujeitos à tributação das contribuições previdenciárias.
Além disso, as alterações promovidas pela Lei nº 14.020/2020 afirmam expressamente a possibilidade de estabelecimento de diferentes programas de PLR e que a autonomia das partes contratantes deve prevalecer na fixação das regras frente a terceiros, o que significa que a escolha das partes não pode ser desconsiderada pelo Fisco.
Diante deste cenário, a pergunta que se põe é se há algum impacto da vigência das novas regras sobre casos em discussão administrativa e judicial, sobretudo porque foi mantido o veto ao artigo que estabelecia que essas alterações seriam consideradas interpretativas.
As adições à Lei nº 10.101/2020 de fato não poderiam ser consideradas interpretativas, pois não há normas interpretadas. O que se tem é a reafirmação de determinadas normas e o preenchimento de lacunas da legislação.
Por exemplo, a disposição incluída que afirma que as regras fixadas pelas partes devem prevalecer frente a terceiros nada mais é do que a reafirmação da autoridade das negociações coletivas. Não há nenhuma novidade.
Diferente é o caso da definição de um marco temporal específico para aferir a antecedência da fixação de um acordo prévio, pois o que a Lei nº 14.020/2020 fez foi justamente indicar um critério que não existia. Daí a impossibilidade de falar que essa norma é interpretativa, pois a regra inova.
Isso não quer dizer que o novo regramento não tenha efeito algum nas autuações em discussão.
A definição de um marco temporal para aferição de um pacto prévio põe em evidência que não existia um critério na legislação anterior. Essa incompletude na norma atrai o art. 108 do CTN (4), que elenca as técnicas que podem ser utilizadas no caso de ausência de disposição expressa: analogia (que não pode levar à cobrança de tributo), princípios gerais de direito tributário, princípios gerais de direito público e equidade (que não pode levar à dispensa do pagamento do tributo).
Ocorre que as autuações tributárias não vinham observando esses mecanismos. Por exemplo, o entendimento de que o acordo de PLR deveria ser celebrado antes do ano base de cálculo da PLR não atende a nenhum princípio tributário ou de direito público. Mais do que isso, contraria o princípio da legalidade, pois utiliza de um critério não previsto em lei, mas simplesmente escolhido pela autoridade fiscal.
Igualmente, a definição inédita do alcance das consequências da violação da periodicidade evidencia a incerteza da legislação anterior. E, no caso, de incerteza sobre a extensão dos efeitos de uma infração, a legislação que define infrações deve ser interpretada de modo mais favorável ao contribuinte, como estabelece o art. 112, inciso II, do CTN (5).
Além disso, o art. 106, inciso II, do CTN (6) impõe a aplicação retroativa a atos não definitivamente julgados que não são mais tidos como uma infração (letra a), que deixam de ser tratados como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo (letra b), e que cominem penalidade menos severa (letra c).
Ora, a celebração do acordo de PLR no curso do período em relação ao qual será definida a PLR, desde que feita 90 dias antes do pagamento da parcela única ou final, não pode ser considerada uma infração à exigência de pactuação prévia, como se entendia na esfera administrativa. Assim, qualquer intepretação que considere que essa era uma exigência não pode ser mantida. A rigor, nem mesmo o desrespeito ao prazo de 90 dias antes da vigência das novas regras poderia ser oponível, pois nenhum marco temporal existia. O que se tinha, como já destacado, era uma norma incompleta, cuja redação não era caracterizada pela melhor técnica legislativa.
Da mesma maneira, eventual desrespeito à periodicidade apenas pode implicar a tributação dos valores pagos a maior a determinado empregado, não podendo levar ao afastamento da não incidência sobre todos os valores. As consequências menos severas também devem ser aplicadas.
Assim, as empresas que possuem discussões administrativas e judiciais em curso devem analisar o impacto da nova legislação e avaliar a apresentação desses pontos ao Poder Judiciário, para buscar a redução substancial do passivo tributário, a depender do caso concreto.
Mais informações sobre as novas regras de PLR podem ser obtidas com a equipe de Direito Tributário do VLF Advogados.
Vinícius Vasconcelos
Advogado da Equipe Tributária do VLF Advogados
(1) BRASIL. Lei nº 14.020, de 6 de julho de 2020. Institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda; dispõe sobre medidas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020; altera as Leis nos 8.213, de 24 de julho de 1991, 10.101, de 19 de dezembro de 2000, 12.546, de 14 de dezembro de 2011, 10.865, de 30 de abril de 2004, e 8.177, de 1º de março de 1991; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14020.htm. Acesso em: 25 nov. 2020.
(2) Teor do dispositivo vetado: “Art. 37. Para efeito de aplicação do inciso I do caput do art. 106 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), têm caráter interpretativo as alterações promovidas pela presente Lei nos §§ 3º-A, 5º, 6º, 7º, 8º e 9º do art. 2º da Lei nº 10.101, de 19 de dezembro de 2000.”
(3) Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:
I - em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados.
(4) Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada:
I - a analogia;
II - os princípios gerais de direito tributário;
III - os princípios gerais de direito público;
IV - a eqüidade.
§ 1º O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei.
§ 2º O emprego da eqüidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido.
(5) Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:
I - à capitulação legal do fato;
II - à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos.
(6) Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: (...)
II - tratando-se de ato não definitivamente julgado:
a) quando deixe de defini-lo como infração;
b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo;
c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática.