Recurso especial no CARF e a exigência de situações paradigmáticas idênticas
Vinícius Vasconcelos
Os advogados com atuação no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”) têm observado que levar as demandas à Câmara Superior está cada vez mais difícil. Isso porque têm se exigido rigorosa identidade fática entre os casos julgados nos acórdãos paradigmáticos e na decisão recorrida para dar seguimento às discussões via Recurso Especial, que é condicionado à demonstração da existência de interpretações divergentes da legislação tributária (art. 67, caput, do Regimento Interno do CARF) (1).
Não se nega que quanto mais semelhantes forem os casos, melhor, pois a divergência interpretativa é mais evidente. Porém, por mais parecidos que sejam dois casos, sempre haverá diferenças, o que não impede que seja configurada divergência interpretativa da legislação. Esta, inclusive, pode ser observada em casos com grau maior de diferenciação, desde que estejam presentes elementos comuns que reclamam a aplicação da mesma legislação (e de uma mesma interpretação).
A generalidade e abstração das leis servem justamente ao propósito de contemplar uma série de situações com características comuns, as quais, contudo, não precisam ser plenamente idênticas. Para conferir maior grau de abrangência, os diplomas normativos adotam categorias legais mais amplas e institutos jurídicos de maior alcance, cujos contornos são sedimentados na jurisprudência.
Na seara tributária, por exemplo, a redação do art. 138 do CTN (2), que trata de denúncia espontânea, exclui a responsabilidade pela infração se houver o pagamento do tributo e dos juros de mora. Embora a redação seja ampla e não se refira a um tributo específico, a jurisprudência excluiu do seu alcance os tributos sujeitos a homologação que tenham sido declarados (Súmula 360 do STJ) (3). De todo modo, a aplicação do dispositivo pode alcançar diferentes tributos e, mesmo se tratando de valores com natureza distinta, duas decisões podem interpretar diversamente o mesmo dispositivo legal.
A questão, portanto, é identificar quais são as características relevantes para a aplicação de uma norma. Se dois casos possuem características em comum que reclamam a aplicação da mesma legislação, mas esta foi interpretada diferentemente, o Recurso Especial deve ser admitido, independentemente da existência de outros elementos fáticos diferentes. Divergências que não influenciam em nada a aplicação e a interpretação da lei não podem ser consideradas impeditivas para dar seguimento ao Recurso Especial, sob pena de exigir do contribuinte requisito não previsto em nenhum diploma normativo.
Esse ponto é crucial, pois, além da afronta à legalidade, o direito de ampla defesa do contribuinte é diretamente afetado.
Nosso ordenamento, diferente dos outros, exige a fundamentação de todas as decisões administrativas, requisito esse que não pode ser reduzido à mera formalidade, mas deve ser materialmente atendido. Não basta, portanto, negar seguimento a um Recurso Especial sob o fundamento de que situação fática do caso recorrido possui características distintas da situação paradigmática. É necessário que se aponte se tal divergência é relevante ou não para aplicação da mesma legislação, sob pena de condicionar um meio de defesa a uma elevada discricionariedade e subjetividade do julgador.
Não parece ser esse o caminho que tem sido adotado pelo menos em parte dos juízos de admissibilidade no âmbito do CARF (e também em outros tribunais administrativos de questões tributárias), pois são comuns as decisões de inadmissão de Recursos Especiais que têm se limitado a fundamentar que não há “similitude fática”, sobretudo quando se discutem erros de preenchimento de declarações.
É verdade, entretanto, que essa tendência nada mais é do que um reflexo da postura dos Tribunais Superiores do Poder Judiciário, que têm adotado cada vez mais mecanismos para barrar recursos como remédio para o alto volume de processos, sacrificando o direito de defesa em prol de uma pretensa eficiência.
Daí não ser surpresa a notícia veiculada no Valor Econômico (4) sobre a suficiência da similitude para fins de Recurso Especial no CARF ter sido levada ao Poder Judiciário via mandado de segurança. De fato, se mesmo após a interposição do agravo em recurso especial o contribuinte julgar que a inadmissão foi indevida, a judicialização pode ser um caminho, sobretudo em casos complexos que encontram na esfera administrativa um ambiente mais propício para discussão.
Mais informações sobre o tema podem ser obtidas com a equipe de Direito Tributário do VLF Advogados.
Vinícius Vasconcelos
Advogado da Equipe Tributária do VLF Advogados
(1) Art. 67. Compete à CSRF, por suas turmas, julgar recurso especial interposto contra decisão que der à legislação tributária interpretação divergente da que lhe tenha dado outra câmara, turma de câmara, turma especial ou a própria CSRF.
(2) Art. 138. A responsabilidade é excluída pela denúncia espontânea da infração, acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos juros de mora, ou do depósito da importância arbitrada pela autoridade administrativa, quando o montante do tributo dependa de apuração.
Parágrafo único. Não se considera espontânea a denúncia apresentada após o início de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização, relacionados com a infração.
(3) Súmula 360 do STJ: A responsabilidade é excluída pela denúncia espontânea da infração, acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos juros de mora, ou do depósito da importância arbitrada pela autoridade administrativa, quando o montante do tributo dependa de apuração.
(4) AGUIAR, Adriana. Justiça entende que Carf errou na análise de recursos. Valor Econômico. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2020/11/11/justica-entende-que-carf-errou-na-analise-de-recursos.ghtml. Acesso em: 25 nov. 2020.