A responsabilidade objetiva do Transportador em caso de extravio de carga
Diego Murça e Gustavo Muniz
O transporte de carga é negócio jurídico constante na dinâmica da economia brasileira, devido à dimensão continental do país. Em virtude disso, ao longo dos anos, foi necessária a criação de normatização própria para regular esse tipo de serviço, com a definição de obrigações e responsabilidades.
Embora existam leis esparsas envolvendo o tema, o regramento encontra-se, sobretudo, no Código Civil de 2002, que prevê as diretrizes gerais e define, em seu art. 730, que “pelo contrato de transporte alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas”.
O transporte de coisa encontra-se disciplinado pelos artigos 743 a 756 do diploma civil, que estabelecem a responsabilidade do transportador pela carga desde o seu recebimento até a sua entrega ao destinatário, imputando a ele a adoção de todas as cautelas necessárias para mantê-la em segurança e bom estado. Repare:
Art. 749. O transportador conduzirá a coisa ao seu destino, tomando todas as cautelas necessárias para mantê-la em bom estado e entregá-la no prazo ajustado ou previsto.
Art. 750. A responsabilidade do transportador, limitada ao valor constante do conhecimento, começa no momento em que ele, ou seus prepostos, recebem a coisa; termina quando é entregue ao destinatário, ou depositada em juízo, se aquele não for encontrado.
O contrato de transporte acarreta para o transportador a assunção de obrigação de resultado, razão pela qual traz implícita a “cláusula de incolumidade”, que estabelece o dever elementar do transportador pela segurança da carga ou passageiro. Assim, considerando que os riscos do negócio são inerentes à atividade, estabeleceu-se a responsabilidade objetiva do transportador, tornando desnecessária a demonstração de sua culpa pelo extravio, subtração e/ou dano à carga transportada sob os seus cuidados.
Significa dizer que, caso a carga objeto do contrato de transporte venha a ser extraviada, subtraída ou danificada durante o percurso, o transportador será responsabilizado pelos prejuízos causados ao contratante, independentemente da existência ou não de culpa pelo ocorrido.
Cabe ao transportador, portanto, a adoção de medidas de proteção e vigilância da carga transportada, sob pena de responsabilização, como se infere da legislação citada acima e da jurisprudência pátria, evidenciada pelos precedentes colacionados a seguir:
RESPONSABILIDADE CIVIL – Ação regressiva – Transporte rodoviário de cargas – Seguro - Em razão da responsabilidade objetiva deve a transportadora responder por quaisquer danos que a mercadoria venha a sofrer durante o translado - A responsabilidade da transportadora é a de entregar a mercadoria em seu destino, no estado em que a recebeu - Inadimplemento contratual da transportadora - Apelada que tem o direito de verificar periodicamente se as medidas de segurança estão sendo adequadamente tomadas pelas empresas de transporte, mas não tem o dever de fazê-lo - Referida obrigação de atuar de acordo com o previsto na apólice é da empresa de transporte, sob risco de responder pela ocorrência do sinistro - A transportadora responde perante o cliente se não comprovar ter tomado as medidas preventivas condizentes com o serviço que presta - Roubo da carga transportada que não configura evento de força maior – Sentença mantida – Recurso não provido.* (TJSP, 21ª Câmara de Direito Privado, Apelação 1004030-39.2016.8.26.0604; Des. Maia da Rocha, 18/07/2017)
RESPONSABILIDADE CIVIL – Transporte de coisa – Ação regressiva de indenização securitária – Roubo de carga durante o trajeto – Falta de adoção de medidas preventivas – Agravamento do risco – Excludente de responsabilidade (força maior) da transportadora não caracterizada – Ressarcimento devido – Procedência decretada nesta instância ad quem - Recurso provido. [...] “É que o risco assumido, em verdade, decorre da própria atividade desenvolvida pelo transportador e enseja responsabilidade civil independentemente da prova de culpa, capaz de ser elidida somente por motivo de força maior, cuja ocorrência, in casu, não se caracterizou, por absoluta falta de adoção das medidas preventivas que a espécie reclamava. A responsabilidade do transportador começa no momento em que recebe a coisa a ser transportada e termina somente quando da entrega a seu destinatário (art. 750 do Código Civil). Na hipótese vertente a apelada tinha a obrigação de entregar a carga pertencente no endereço da segurada na cidade de Ituverava-SP (fls. 25), no entanto, inadvertidamente, fê-lo sem se cercar das cautelas necessárias ao bom cumprimento da atividade que se propôs a realizar, que é de resultado, aumentando o risco inerente ao transporte de carga de alto valor, como é o caso dos autos, facilitando, assim, o roubo da mercadoria em trajeto sabidamente perigoso (fls. 37/39).” (TJSP, 20ª Câmara de Direito Privado, Apelação 4031919-34.2013.8.26.0114, Des. Correia Lima, 21/10/2016)
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL. CONTRATO DE TRANSPORTE. ACIDENTE. 1. AUTOR QUE SE DESINCUMBIU DO SEU ÔNUS PROBATÓRIO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. 2. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO TRANSPORTADOR CONFIGURADA. ALEGAÇÃO DE CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA OU CULPA CORRENTE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. 3. REDUÇÃO DO VALOR ARBITRADO A TÍTULO DE DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. QUANTUM FIXADO COM OBSERVÂNCIA AOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. 4. MULTA DO ART. 1.021, § 4º, DO CPC/2015. NÃO INCIDÊNCIA, NA ESPÉCIE. 5. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. [...] 2. Observa-se que o Tribunal estadual, ao dirimir a controvérsia, concluiu pela existência de nexo causal entre o acidente descrito e o dano causado, pela ausência de comprovação de culpa exclusiva ou concorrente da vítima, bem como pela configuração da responsabilidade civil da recorrente. Sendo assim, a Corte local decidiu em conformidade com a orientação jurisprudencial pacífica desta Corte, segundo a qual, em se tratando de danos decorrentes do desempenho de atividade de transporte, a responsabilidade civil deve ser aferida pela teoria objetiva, configurando-se independentemente de culpa. [...]. (STJ, [...]. (STJ, T3, AgInt no AREsp 1583683/RJ, Min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE, DJe 06/04/2020).
A responsabilidade é objetiva da transportadora de pagar a respectiva indenização, natureza ínsita nos contratos de transporte em geral, por encerrar obrigação de resultado, ou seja, de transportar e entregar as mercadorias incólumes no destino. No caso presente, em cuidando de extravio de mercadorias transportadas, emerge elemento configurador de culpa, modalidade de responsabilidade civil, presumida, na causa de pedir. E dúvida não paira de que os prepostos da transportadora aérea agiram com manifesta falta de cautela no manuseio e trato das mercadorias em transporte. Provada conduta culposa e o nexo de causalidade emerge responsabilidade civil da ré (teoria do risco puro). (STJ, AREsp 1664769 – SP, Min Maria Isabel Galloti, 01/09/2020)
Como se vê, na hipótese de subtração, extravio e/ou qualquer dano à carga, a responsabilidade pelo ressarcimento de seu valor é exclusivamente do transportador, independentemente da existência de culpa, sendo vedada a estipulação de cláusulas que importem na exclusão dessa responsabilidade, salvo nas hipóteses de força maior, como se infere do art. 734 do Código Civil, abaixo transcrito:
Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.
A “força maior” citada no texto legal se refere a eventos da natureza ou outros que fogem ao contrato de transporte ou que não podem ser administradas pelo transportador. Mesmo assim, há distinção entre o fortuito interno e externo.
O fortuito interno refere-se a um fato imprevisível e inevitável, mas que não exclui a responsabilidade do transportador, por se tratar de risco inerente à atividade, ou seja, que faz parte dos riscos do empreendimento. Já o fortuito externo se refere a fato inevitável e imprevisível alheio à organização do negócio e, por isso, capaz de afastar a responsabilidade objetiva daquele que foi contratado para a prestação do serviço de transporte.
Nesse sentido, o extravio da mercadoria transportada não constitui causa de exclusão de responsabilidade da transportadora, pois, trata-se de fato inerente à atividade de transporte. Os roubos e furtos de caminhões, ônibus e carros nas vias terrestres brasileiras é fato corriqueiro, comum e, em verdade, previsível.
Daí a razão pela qual o transportador deve se resguardar de todas as ocorrências possíveis e capazes de causar dano, subtração ou extravio da mercadoria, contratando, por exemplo, seguro que garanta indenização por qualquer prejuízo que eventualmente possa sofrer e adotando outras medidas que possam evitar à submissão a este tipo de situação, tais como evitar o deslocamento em determinados horários e rotas de transporte.
Assim, em caso de dano, subtração ou extravio de carga durante seu transporte, basta a comprovação da contratação da prestação de serviço e do prejuízo sofrido para que seja configurado o inadimplemento contratual e, consequentemente, o dever de indenizar.
Mais informações sobre o tema e o entendimento adotado pelos tribunais quanto ao assunto podem ser obtidas com a Equipe de Contencioso Cível do VLF.
Diego Murça
Advogado da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Gustavo Muniz
Advogado da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 28 dez. 2020.
(2) CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
(3) VENOSA, Silvio de S. Direito Civil: responsabilidade civil. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2008.