Requisitos para que a União conceda apoio técnico e financeiro para adaptação dos serviços à Nova Lei de Saneamento
Maria Tereza Fonseca Dias
1) Previsões da Lei nº 14.026/2007
A Lei nº 14.026/2020, que alterou a Lei nº 11.445/2007, passando a ser denominada “Nova Lei do Saneamento”, estabeleceu, em seu art. 13, as etapas necessárias para que a União possa conceder apoio técnico e financeiro aos titulares dos serviços de saneamento para adaptação dos serviços às disposições da Lei, o que afeta notadamente os Municípios.
As etapas previstas para que seja concedido o apoio técnico e financeiro são as seguintes:
I - adesão pelo titular a mecanismo de prestação regionalizada;
II - estruturação da governança de gestão da prestação regionalizada;
III - elaboração ou atualização dos planos regionais de saneamento básico, os quais devem levar em consideração os ambientes urbano e rural;
IV - modelagem da prestação dos serviços em cada bloco, urbano e rural, com base em estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental (“EVTEA”);
V - alteração dos contratos de programa vigentes, com vistas à transição para o novo modelo de prestação;
VI - licitação para concessão dos serviços ou para alienação do controle acionário da estatal prestadora, com a substituição de todos os contratos vigentes.
Quanto à etapa V, referente à alteração dos contratos de programa vigentes, estes poderão ser reduzidos ou prorrogados, de maneira a convergir a data de término com o início do contrato de concessão definitivo (art. 13, § 1º). Na hipótese de redução do prazo, o prestador deverá ser indenizado na forma do art. 37 da Lei nº 8.987/1995; e se houver prorrogação, poderá ser feita revisão extraordinária das tarifas, na forma do inciso II e do caput, do art. 38, da Lei nº 11.445/2007.
Ainda de acordo com a Lei nº 14.026/2020, o apoio da União será condicionado a que o titular do serviço firme compromisso de conclusão destas etapas, sob pena de ter que ressarcir as despesas incorridas em caso de descumprimento desse compromisso (art. 13, § 2º).
Os Municípios que obtiverem a aprovação do Poder Executivo, nos casos de concessão, e da respectiva Câmara Municipal, nos casos de privatização, terão prioridade na obtenção de recursos públicos federais para a elaboração do plano municipal de saneamento básico (art. 13, § 3º). A mesma prioridade será estabelecida aos titulares dos serviços que elegerem entidade de regulação de outro ente federativo (art. 13, § 4º).
Nota-se que a lei induz a que, para que recebam apoio técnico e financeiro da União, os titulares dos serviços encerrem o modelo de contrato de programa atualmente firmado, em muitos casos, com as companhias estaduais de saneamento.
A Lei nº 14.026/2020 também previu que seria editado decreto para regulamentar este dispositivo legal – o que deu ensejo à edição do Decreto nº 10.588, de 24 de dezembro de 2020.
2) Previsões da Lei Geral de Saneamento
A Lei Geral de Saneamento Básico (Lei nº 11.445/2007), desde sua edição, já tratava da Política Federal do setor, porém sofreu diversas alterações com o advento da Lei nº 14.026/2020. O seu art. 50 disciplinou a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da União. Em síntese, o dispositivo prevê que a alocação de recursos públicos federais a titulares do serviço de saneamento – diretamente ou por órgãos ou entidades da União – serão feitos em conformidade com as diretrizes e objetivos estabelecidos dos arts. 48 e 49 da Lei nº 11.445/2007, bem como com os planos de saneamento básico.
O financiamento federal também estará condicionado, de acordo com os incisos I a IX, do art. 50, a diversas exigências:
I - índices mínimos de desempenho, eficiência e eficácia na prestação dos serviços públicos de saneamento básico;
II - operação adequada e manutenção dos empreendimentos anteriormente financiados com recursos federais;
III - observância das normas de referência para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico expedidas pela ANA;
IV - cumprimento de índice de perda de água na distribuição, conforme definido em ato do Ministro de Estado do Desenvolvimento Regional;
V - fornecimento de informações atualizadas para o Sinisa, conforme critérios, métodos e periodicidade estabelecidos pelo Ministério do Desenvolvimento Regional;
VI - regularidade da operação a ser financiada, nos termos da Lei nº 11.445/2007 (art. 3º, inciso XIII);
VII - estruturação de prestação regionalizada;
VIII - adesão pelos titulares dos serviços públicos de saneamento básico à estrutura de governança correspondente em até 180 (cento e oitenta) dias contados de sua instituição, nos casos de unidade regional de saneamento básico, blocos de referência e gestão associada;
VIII - constituição da entidade de governança federativa também em 180 (cento e oitenta) dias.
Assim como na disciplina do art. 13 da Lei nº 14.026/2020, as exigências explicitadas demonstram que o titular do serviço, para receber recursos financeiros federais, deve aderir à política federal do setor, o que levanta o problema da perda de autonomia e limitação das competências no exercício da titularidade dos serviços de saneamento básico.
Considerando essas previsões legais, o Decreto nº 10.588, de 24 de dezembro de 2020, regulamentou os citados dispositivos legais, tratando dos seguintes temas: a prestação regionalizada de serviços de saneamento; o apoio técnico e financeiro da União; a alocação de recursos públicos federais e dos financiamentos com recursos da União.
3) Prestação regionalizada dos serviços de saneamento
O Decreto, assim como também está previsto na Lei de Saneamento, esclarece que a adesão dos titulares dos serviços públicos de saneamento básico de interesse local às estruturas das formas de prestação regionalizada é facultativa (art. 2º, § 5º, do Decreto nº 10.588), porém condiciona o recebimento de apoio técnico e financiamento da União.
No regulamento (art. 2º), a prestação regionalizada de serviços de saneamento visa à:
I - geração de ganhos de escala;
II - garantia da universalização;
III - viabilidade técnica e econômico-financeira dos serviços;
IV - uniformização do planejamento, da regulação e da fiscalização.
Como deverá ser cumprida, pelos diferentes titulares dos serviços, a exigência de prestação regionalizada para fins de financiamento federal? A resposta está no art. 2º, § 2º, do Decreto nº 10.588/2020:
I - na hipótese de região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião (1), com a aprovação da lei complementar correspondente;
II - na hipótese de unidade regional de saneamento básico (2), com a declaração formal, firmada pelo prefeito, de adesão aos termos de governança estabelecidos na lei ordinária. De acordo com o Decreto, as unidades regionais de saneamento básico conterão, no mínimo, uma região metropolitana, facultada a sua integração pelos titulares dos serviços públicos de saneamento básico (art. 2º, § 6º);
III - na hipótese de bloco de referência (3), com a assinatura de convênio de cooperação ou com a aprovação de consórcio público pelo ente federativo;
IV - na hipótese de Região Integrada de Desenvolvimento (“Ride”) (4), a prestação regionalizada de serviço público de saneamento básico ficará condicionada à anuência dos Municípios que a integram (art. 2º, § 4º, Decreto nº 10.588/2020).
Caso as unidades regionais de saneamento básico não sejam estabelecidas pelo Estado no prazo de um ano, contado da data de publicação da Lei nº 14.026, de 2020, ato do Poder Executivo federal estabelecerá os blocos de referência para a prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento básico, a partir de deliberação do Comitê Interministerial de Saneamento Básico (“Cisb”) (art. 2º, § 7º).
Considerando a existência de diversos consórcios públicos para abastecimento de água e esgotamento sanitário, na forma prevista na Lei nº 11.107/2005, o art. 2º, § 2º, do Decreto nº 10.588/2020, prevê que este mecanismo de gestão associada poderá ser reconhecido como unidade regional ou bloco de referência, desde que não abranja Municípios integrantes de regiões metropolitanas e que não prejudique a viabilidade econômico-financeira da universalização e da regionalização da parcela residual de Municípios do Estado. Nesta situação, o Estado e a União observarão, preferencialmente, o arranjo de Municípios consorciados ao definir as unidades de prestação regionalizada, sem prejuízo da inclusão de novos Municípios (art. 2º, § 3º).
Ainda quanto à prestação regionalizada dos serviços de saneamento para o recebimento de apoio técnico e financiamento federal, o Decreto nº 10.588/2020 estabeleceu os modelos preferenciais de arranjos interfederativos, a depender do tipo de serviço.
A destinação ambientalmente adequada dos resíduos sólidos urbanos consistirá em critério orientador para a definição das unidades de prestação regionalizada (art. 2º, § 10).
O abastecimento de água potável e de esgotamento sanitário constarão, preferencialmente, do mesmo mecanismo de regionalização (art. 2º, § 8º).
Quanto aos serviços de limpeza pública, de manejo de resíduos sólidos urbanos ou de drenagem e manejo de águas pluviais, duas questões foram disciplinadas:
I - poderão ser prestados na mesma unidade de prestação regionalizada de água e esgotamento sanitário ou em unidades de dimensões distintas para cada serviço (art. 2º, § 9º);
II - a exigência de prestação regionalizada poderá ser atendida por meio de consórcios públicos (Lei nº 11.107/2005), ou por meio de gestão associada decorrente de acordo de cooperação, desde que, nessas hipóteses, haja geração de ganhos de escala, garantia da universalização e viabilidade técnica e econômico-financeira dos serviços (art. 2º, § 11).
É a prestação regionalizada que definirá o acesso aos recursos federais, pois, conforme previsto no art. 4º, § 11, do Decreto nº 10.588/2020, quando o município ou o conjunto de Municípios beneficiários não estiver inserido em estrutura de prestação regionalizada instituída pelo Estado ou pela União, estará proibido de receber tais recursos.
4) Apoio técnico e financeiro da União
O apoio técnico e financeiro da União, conforme o art. 3º, do Decreto nº 10.588/2020, condicionado à existência de disponibilidade orçamentária e financeira, será dado para a adaptação dos serviços públicos de saneamento básico às disposições da Lei nº 14.026/ 2020, nos termos do disposto do art. 13 e para a realização das atividades enumeradas no decreto, entre as quais destacam-se as seguintes:
a) definição das unidades regionais de saneamento básico; adesão do titular do serviço público de saneamento básico a mecanismo de prestação regionalizada e estruturação da forma de exercício da titularidade e da governança em cada mecanismo de prestação regionalizada (art. 3º, incisos I, II, III e V).
b) elaboração ou atualização dos planos municipais ou regionais de saneamento básico, considerados os ambientes urbano e rural e metas de aprimoramento dos serviços (art. 3º, inciso IV);
c) definição da entidade de regulação e de fiscalização dos serviços públicos de saneamento básico, incluído o apoio à delegação, quando necessário, elaboração ou atualização das normas de regulação e fiscalização (art. 3º, incisos VI e VII);
d) licitação (elaboração de edital, audiências e consulta públicas), contratação e alteração dos contratos existentes ou preparação de novos contratos, quando couber, e ainda aplicadas as metas definidas no plano regional de saneamento básico (art. 3º, incisos VIII e IX);
e) apuração do valor de indenização dos investimentos vinculados a bens reversíveis não amortizados ou depreciados, bem como estruturação de política de recuperação de custos, pela cobrança dos serviços e definição da estrutura tarifária e da tarifa social (art. 3º, incisos X e XI);
f) contratação de serviços especializados, capacitação de técnicos e gestores e outras medidas acessórias necessárias, com vistas à universalização do acesso ao saneamento básico (art. 3º, incisos XII, XIII e XIV).
O apoio técnico da União aplica-se aos serviços de abastecimento de água potável, de esgotamento sanitário, de limpeza e manejo de resíduos sólidos e de drenagem e manejo das águas pluviais urbanas (art. 3º, § 7º).
5) Alocação de recursos públicos federais e dos financiamentos com recursos da União
A seção sobre a alocação de recursos públicos federais e dos financiamentos com recursos da União reproduz as previsões do art. 50, da Lei nº 11.445/2007, dando maior operacionalidade e concretude a sua aplicação. Para todas as condições descritas nos incisos I a IX, do art. 50, da Lei – conforme item 50, supra, o Decreto nº 10.588/2020 especifica a documentação comprobatória.
As inovações incluídas na norma regulamentar podem ser sintetizadas nas seguintes previsões do art. 4º do Decreto.
Enquanto o Sinisa não estiver em funcionamento, a exigência de envio de informações para o fomento federal, deverá ser comprovada por meio de certidão emitida pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (“SNIS”) (art. 4º, § 6º).
A exigência de observância das normas de referência para regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico emitidas pela ANA não se aplica às ações de saneamento básico em áreas rurais, comunidades tradicionais, incluídas as áreas quilombolas, e terras indígenas (art. 4º, § 7º).
A União poderá instituir e orientar a execução de programas de incentivo à execução de projetos de interesse social na área de saneamento básico com participação de investidores privados, por meio de operações estruturadas de financiamentos realizados com recursos de fundos privados de investimento, de capitalização ou de previdência complementar, em condições compatíveis com a natureza essencial dos serviços públicos de saneamento básico (art. 4º, § 7º).
Justamente pelo que foi previsto anteriormente, não constituem serviço público de saneamento básico (art. 4º, § 9º):
I - as ações de saneamento básico executadas por meio de soluções individuais, desde que o usuário não dependa de terceiros para operar os serviços, incluída a prestação de serviços realizados por associações comunitárias criadas para esse fim e que possuam competência na gestão do saneamento rural, desde que delegadas ou autorizadas pelo respectivo titular, na forma prevista na legislação;
II - as ações e os serviços de saneamento básico de responsabilidade privada, incluído o manejo de resíduos de responsabilidade do gerador; e
III - as ações e os serviços de saneamento básico operados pelos próprios usuários, por meio de associações comunitárias ou multicomunitárias.
6) Disposições finais
Registra-se, por fim, que o Decreto nº 10.588/2020 disciplinou as situações transitórias acerca do financiamento federal, após o advento da Lei nº 14.026/2020.
O art. 6º do Decreto registra que financiamentos ou instrumentos firmados com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da União anteriormente à data de sua publicação, não serão descontinuados em razão do disposto na Lei nº 14.026, de 2020, exceto por iniciativa das partes, respeitados os dispositivos legais aplicáveis.
As exigências de regionalização dos serviços, que consiste na estruturação de prestação regionalizada, e à constituição da entidade de governança federativa no prazo estabelecido em lei (art. 50, incisos VII, VIII e IX, da Lei nº 11.445/2007), não se aplicam, de acordo com o art. 7º I e II do Decreto nº 10.588/2020:
I - aos recursos alocados por emendas parlamentares por meio da transferência especial prevista no inciso I do caput do art. 166-A da Constituição; e
II - à alocação de recursos públicos federais e financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da União em Municípios onde a prestação do serviço público de saneamento básico não esteja regionalizada até 31 de março de 2022 (Cf. § 1º, do art. 11-B, da Lei nº 11.445/2007).
Tais exigências, entretanto, aplicam-se aos contratos de concessão e de parcerias público-privadas precedidos de licitação, nos termos do disposto no art. 175 da Constituição, firmados posteriormente à data de publicação do Decreto nº 10.588/2020, exceto se tiverem sido licitados ou submetidos à consulta pública anteriormente à data de publicação do Decreto; e sejam objeto de estudos já contratados pelas instituições financeiras federais anteriormente à data de publicação do mencionado Decreto (art. 8º, incisos I e II).
Maria Tereza Fonseca Dias
Sócia e Coordenadora da Equipe de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
(1) Unidade instituída pelos Estados mediante lei complementar, de acordo com o § 3º do art. 25 da Constituição Federal, composta de agrupamento de Municípios limítrofes e instituída nos termos da Lei nº 13.089, de 12 de janeiro de 2015 (Estatuto da Metrópole). (art. 3º, VI, a, da Lei nº 11.445/2007).
(2) Unidade instituída pelos Estados mediante lei ordinária, constituída pelo agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes, para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, ou para dar viabilidade econômica e técnica aos Municípios menos favorecidos (art. 3º, VI, b, da Lei nº 11.445/2007).
(3) Agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes, estabelecido pela União nos termos do § 3º, do art. 52, da Lei 11.445/2007 e formalmente criado por meio de gestão associada voluntária dos titulares (art. 3º, VI, c, da Lei nº 11.445/2007).
(4) Ride é uma área análoga às regiões metropolitanas brasileiras, porém, situada em mais de uma unidade federativa e são criadas por legislação federal específica, que delimita os Municípios integrantes e fixa as competências assumidas pelo colegiado dos mesmos.