A caracterização das criptomoedas como bens incorpóreos para fins de integralização de capital social: garantia dos credores e a operacionalização da integralização
Pedro Ernesto Rocha e Gabriella Gati
A definição da natureza das criptomoedas é tarefa árdua, objetivo de trabalhos acadêmicos e manifestações de entes regulatórios no Brasil e no exterior. As discussões em geral giram em torno da identificação das criptomoedas como moeda, valor mobiliário, ativo financeiro e commodity (1).
No Brasil, existem manifestações emitidas pelo Banco Central do Brasil (“BCB”), pela Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) e pela Receita Federal (“RFB”), as quais não se configuram como definições irrefutáveis para a questão.
O BCB limitou-se a explicar que as “moedas virtuais não são emitidas nem garantidas por qualquer autoridade monetária, por isso não têm garantia de conversão para moedas soberanas, e tampouco são lastreadas em ativo real de qualquer espécie, […] e nem se confundem com a definição de moeda eletrônica de que trata a Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013” (2).
A CVM, por sua vez, informou que as criptomoedas, “a depender do contexto econômico de sua emissão e dos direitos conferidos aos investidores, podem representar valores mobiliários, nos termos do art. 2º da Lei 6.385/76” (3).
E a RFB definiu criptoativo, categoria que abrange as criptomoedas, como sendo “a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal” (4).
Especificamente para fins de declaração de imposto de renda, a RFB também se posicionou, orientando (5) que as moedas virtuais sejam declaradas como “outros bens”.
A Junta Comercial do Estado de São Paulo consultou o Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (“DREI”) no âmbito do Processo Administrativo nº 19974.101874/2020-56 sobre (i) a natureza jurídica das criptomoedas; (ii) a existência de vedação para integralização de capital com criptomoedas; e (iii) quais as formalidades a serem observadas pelas Juntas Comerciais para operacionalizar o registro.
O DREI, se fiando nas manifestações da RFB, entendeu que as criptomoedas são “bens incorpóreos”, que, nessa condição (6), podem ser utilizados para integralização de capital social, não havendo vedação para tanto, devendo ser cumpridas, em relação a cada tipo societário, as formalidades exigidas pela legislação para integralização de capital com bens móveis.
O capital social é tradicionalmente compreendido como uma garantia dos credores de uma sociedade. Neste sentido, os credores estariam mais ou menos protegidos quanto maior ou menor fosse o capital social, e quanto mais ou menos qualificados e líquidos fossem os recursos utilizados na sua composição (dinheiro ou bens).
Nessa perspectiva clássica, visando refutar a possibilidade de integralização de capital com criptomoedas, seria possível argumentar que essa operação aumentaria o risco dos credores da sociedade, porque as incertezas e riscos (técnicos, regulatórios etc.) inerentes às criptomoedas gerariam dúvidas sobre sua liquidez e valoração (7).
Todavia, a concepção do capital social como garantia dos credores deve ser vista com ressalvas. Na realidade, o que serve de garantia aos credores de determinada sociedade é o seu patrimônio, o qual, no momento de sua constituição, é igual ao capital social. No entanto, no decorrer das atividades sociais, o patrimônio oscila, enquanto o capital social se mantém intacto, como cifra fixa e referencial (8).
Além disso, quaisquer bens integralizados ao capital social terão sua parcela de risco, ainda que eventualmente esses riscos sejam mais previsíveis e/ou mensuráveis do que os riscos atinentes às criptomoedas. Exemplificando, se uma sociedade tem o seu capital social totalmente integralizado com máquinas e veículos, após determinado período esses bens poderão se deteriorar e perder valor. Em eventual liquidação de ativos para quitação de dívidas, os credores teriam como garantia não o exato valor referente ao capital social, mas sim o valor de mercado dos bens (integrantes do patrimônio social) que serão liquidados. No mesmo sentido, as criptomoedas, quando integralizadas, podem valer X, e, no momento de sua liquidação, podem valer mais ou menos.
Assim, a integralização de capital social com criptomoedas não deve ser compreendida como uma operação que por si só reduz garantias de credores sociais (9).
No que se refere à operacionalização dessa integralização, e tomando por base as sociedades limitadas e sociedades anônimas, tem-se duas situações distintas.
Nas sociedades limitadas, a integralização com criptomoedas deverá ser feita por meio de alteração ao contrato social, não sendo exigível laudo ou documento comprobatório dos valores atribuídos pelos sócios aos bens, conforme item 4.3.4 do Capítulo II do Anexo IV da Instrução Normativa DREI 81/2020. Nessa hipótese, a avaliação das criptomoedas é feita a critério dos sócios, por meio de qualquer parâmetro (custo de aquisição, valor de mercado em determinada data etc.).
Já no caso das sociedades anônimas, em regra (10), o aumento do capital social deverá ocorrer por deliberação da assembleia geral extraordinária, e os bens objeto de integralização deverão ser avaliados por 3 (três) peritos ou por empresa especializada, a teor do artigo 8º da Lei 6.404/1976 (Lei das Sociedades Anônimas) e do item 5 do Capítulo II do Anexo V da Instrução Normativa DREI 81/2020. Nesse cenário, a integralização torna-se um pouco mais difícil de se operacionalizar, já que os sócios poderão enfrentar dificuldades para encontrar um profissional apto a avaliar as criptomoedas e se depararão com os mais diferentes parâmetros de avaliação.
Pelo exposto, apesar das arestas ainda a aparar em alguns pontos, pode-se afirmar que o posicionamento do DREI é um avanço regulatório que, ao menos sob a perspectiva societária, esclarece a forma em que as autoridades de registro mercantil deverão interpretar as criptomoedas. É um sinal de que o Estado reconhece que cada vez mais as criptomoedas influenciam e sustentam relações econômicas e que, por isso, merecem ser observadas para acompanhamento do aparecimento de riscos sistêmicos e consequentemente criação de eventuais regulações mais incisivas.
Pedro Ernesto Rocha
Coordenador da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Gabriella Gati
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) Não é objeto deste texto explicar as nuances de cada enquadramento cogitado, porém, é possível informar que o entendimento que parece juridicamente mais acertado é o de que criptomoedas são “moedas privadas paralelas, sem curso forçado e com poder liberatório limitado àqueles que voluntariamente a contratam como meio de pagamento e liquidação de obrigações”. (MAIA, Felipe Fernandes Ribeiro Maia; ROCHA, Pedro Ernesto Gomes. Perspectivas jurídicas das criptomoedas: desafios regulatórios no Brasil. In: PARENTONI, Leonardo. Direito, Tecnologia e Inovação. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 760).
(2) BANCO Central do Brasil. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Comunicado&numero=31379 e https://www.gov.br/cvm/pt-br/assuntos/noticias/initial-coin-offerings--icos--88b47653f11b4a78a276877f6d877c04. Acesso em: 27 jan. 2021.
(3) Nesse caso, seriam valores mobiliários por se enquadrarem nos parâmetros do artigo 2º da Lei nº 6.385/1976.
COMISSÃO de Valores Mobiliários. Disponível em: https://www.gov.br/cvm/pt-br/assuntos/noticias/initial-coin-offering--ico--a0e4b1d10e5a47aa907191d5b6ce5714. Acesso em: 27 jan. 2021.
(4) Item 3, “Das Definições”, Instrução Normativa 1.888/2019.
(5) Disponível em: https://receita.economia.gov.br/interface/cidadao/irpf/2020/perguntao/p-r-irpf-2020-v-1-3-2020-10-27.pdf, pergunta 445.
(6) O DREI usa como argumentos os artigos 997 do CC/02 e 7º da Lei das S.A., os quais autorizam a integralização de capital com bens suscetíveis de avaliação em dinheiro.
(7) Neste sentido, Felipe Melo Fonte e Pedro Henrique Costa argumentaram no artigo “Integralização com criptoativos e higidez do capital social - Breves comentários sobre o recente pronunciamento do DREI”, disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/integralizacao-com-criptoativos-e-higidez-do-capital-social-26122020. Acesso em: 27 jan. 2021.
(8) Alfredo de Assis Gonçalves Neto explica: “A doutrina costuma insistir em uma função exclusivamente externa do capital social, por muitos autores indicada como a mais importante, que seria a de garantia aos credores. […] Entretanto, é preciso cautela quando se lê que o capital social representa uma garantia dos credores, porque, se tomada a garantia no seu sentido próprio, de assegurar o pagamento, é no patrimônio da sociedade que eles a encontram.” (GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de Empresa – Comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 379).
(9) É possível cogitar sim maiores dificuldades de identificação de criptomoedas dentro da esfera patrimonial de um devedor, e isso pode acabar prejudicando uma eventual medida judicial constritiva visando uma criptomoeda, frustrando uma execução, por exemplo. É que não há um “registro público” de criptomoedas (como há no caso de vários outros de bens, a exemplo de imóveis, veículos, participações societárias etc.) ou um controle de sua circulação por uma entidade, e, exatamente por isso, a sociedade pode negociá-las livremente e sem lastro. Essa realidade, porém, existe pelo simples fato do devedor titularizar criptomoedas, independentemente da forma em que as adquiriu (seja por integralização de capital ou por qualquer outro meio).
(10) Diz-se “em regra” porque pode haver aumento de capital social por meio de deliberação do Conselho de Administração, nas hipóteses de capital autorizado do artigo 168 da Lei 6.404/1976.