Governo Federal reduz a lista de produtos que deverão ser objeto de controle pelo Exército
Maria Tereza Fonseca Dias
1) Produtos Controlados pelo Exército (“PCE”) na legislação brasileira
A legislação brasileira sobre controle de produtos relacionados à instalação e fiscalização de fábricas e comércio de armas, munições, explosivos, produtos químicos agressivos e matérias correlatas não é recente, encontrando-se ainda em vigor o Decreto nº 24.602, de 6 de julho de 1934 (1). Este decreto possui status de lei e exige autorização para a instalação, no país, de fábricas civis destinadas à produção de armas e munições de guerra (art. 1º) e submete tais empresas, bem como seus produtos, ao controle do Exército brasileiro (art. 3º; 5º e 8º).
Com base na citada norma, foram editados sucessivos diplomas regulamentares (decretos, portarias e resoluções) tratando da fiscalização de produtos controlados, sendo vigente, nesta data, o Decreto nº 10.030, de 30 de setembro de 2019 que contém, em seu Anexo I, o Regulamento de Produtos Controlados.
Os regulamentos do setor possuíam alguma estabilidade regulatória, pois a norma anterior editada sobre a matéria era o Decreto nº 3.665, de 20 de novembro de 2000, que instituiu o Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados (R-105) e permaneceu praticamente inalterado até o ano de 2018.
Em 5 de setembro de 2018, foi editado o Decreto nº 9.493, que entraria em vigor 180 (cento e oitenta) dias depois de sua publicação, ou seja, em março de 2019. Ocorre que, antes do termo anunciado, houve a edição do Decreto nº 9.720, que, em seu art. 1º, determinou a ampliação do período de vacatio legis do decreto anterior editado, para 300 (trezentos) dias. Em seguida, foi editado o Decreto nº 9.898, de 2 de julho de 2019, ampliando esse prazo para 390 (trezentos e noventa) dias. E, antes mesmo de entrar em vigor, o Decreto nº 9.493/2018 foi revogado pelo Decreto nº 10.030, de 30 de setembro de 2019.
Observa-se, portanto, com a edição de diversas normas sobre PCEs, a partir de 2018, a instabilidade regulatória e a sucessiva desregulamentação do setor, pois, ao fim e ao cabo, cada um dos regulamentos editados reduziu os produtos relacionados a armas, munições e outras atividades sujeitas ao controle pelo Exército.
O Decreto nº 10.627/2021 é bastante extenso e altera diversos aspectos do Regulamento de Produtos Controlados. Por esta razão, será dada ênfase às questões consideradas mais relevantes e que podem vir a gerar maior impacto.
2) Principais alterações do Decreto nº 10.627/2021
2.1 Equipamentos excluídos da lista de Produtos Controlados pelo Exército
No art. 2º, do Anexo I, do Decreto nº 10.030/2019, foi incluído o § 3º, que lista uma série de equipamentos que não serão considerados PCE, a saber:
I - os projéteis de munição para armas de porte ou portáteis, até ao calibre nominal máximo com medida de 12,7 mm, exceto os químicos, perfurantes, traçantes e incendiários;
II - as máquinas e prensas, ambas não pneumáticas ou de produção industrial, para recarga de munições, seus acessórios e suas matrizes (dies), para calibres permitidos e restritos, para armas de porte ou portáteis;
III - as armas de fogo obsoletas (2), de antecarga e de retrocarga, cujos projetos sejam anteriores a 1900 e que utilizem pólvora negra;
IV - os carregadores destacáveis tipo cofre ou tipo tubular, metálicos ou plásticos, com qualquer capacidade de munição, cuja ausência não impeça o disparo da arma de fogo;
V - os quebra-chamas;
VI - as miras optrônicas, holográficas ou reflexivas; e
VII - as miras telescópicas, independentemente de aumento.
2.2 Dispensa de registro junto ao Comando do Exército para atividades com PCE
De acordo com o art. 6º, do Regulamento de Produtos Controlados (Anexo I, do Decreto nº 10.030/2019), compete ao Comando do Exército, regulamentar, autorizar e fiscalizar o exercício, por pessoas físicas ou jurídicas, das atividades relacionadas com PCE, a saber: fabricação, comércio, importação, exportação, utilização, prestação de serviços, colecionamento, tiro desportivo ou caça.
O § 1º, do art. 7º, deste Regulamento já dispensava algumas pessoas físicas ou jurídicas do registro junto ao Comando do Exército para o exercício, próprio ou terceirizado, das atividades com PCE. O Decreto nº 10.627/2021 (art. 7º, § 1º, incisos VI e VII) também dispensou do registro:
a) as pessoas jurídicas que exercem atividades de comércio, utilização ou prestação de serviços com PCE de arma de pressão; e
b) as pessoas físicas que utilizam PCE do tipo arma de fogo e munição para a prática de tiro recreativo não desportivo nas instalações de entidades, clubes ou escolas de tiro, sob certas condições e responsabilidade de instrutores e das referidas entidades.
2.3 Ampliação dos órgãos que poderão importar e adquirir produtos controlados
Conforme a inclusão feita nos incisos X a XII, do art. 23, do Regulamento de Produtos Controlados, novos órgãos, instituições e corporações poderão importar armas de fogo, munições e demais produtos controlados, mediante comunicação prévia e autorização do Comando do Exército, a saber:
a) corpos de bombeiros militares dos Estados e do Distrito Federal;
b) guardas municipais; e
c) Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia.
Quanto à aquisição de produtos controlados, foram incluídos nos incisos X a XVI, do art. 75, Parágrafo Único, do Regulamento, os seguintes órgãos, instituições e corporações, que poderão adquirir armas de fogo, munições e demais produtos controlados, mediante comunicação prévia e autorização do Comando do Exército:
a) corpos de bombeiros militares dos Estados e do Distrito Federal;
b) guardas municipais;
c) Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia;
d) Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama;
e) Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio;
f) tribunais do Poder Judiciário; e
g) Ministério Público.
2.4 Ampliação do poder normativo do Comando do Exército
Conforme inclusão feita no art. 40 do Regulamento de Produtos Controlados, foi ampliada a competência do Comando do Exército para editar normas relativas:
I - à segurança do armazenamento de PCE;
II - ao apostilamento da atividade de instrutor de tiro desportivo ao certificado de registro de pessoa física; e
III - à atividade de escola de tiro e outras normas relativas à capacitação para utilização de PCE.
Antes da edição do Decreto nº 10.627/2021, a competência normativa do Comando do Exército referia-se apenas à segurança do armazenamento de PCE. A alteração indica delegação de competência e ampliação das atribuições do Exército em detrimento dos poderes do Chefe do Poder Executivo, em matéria de produtos controlados.
2.5 Transporte de PCE para competições, por atirador registrado no Comando do Exército
No Regulamento de Produtos Controlados foi incluído o art. 52-A, que passou a permitir que o atirador registrado junto ao Comando do Exército possa transportar armas de fogo desmuniciadas, munições, equipamentos e acessórios considerados PCE, para fins de competição e atividades correlatas no território nacional ou para outro país, mediante a apresentação do certificado de registro de pessoa física ou do certificado de registro de arma de fogo válido.
2.6 Registro de pessoa física passa a permitir aquisição de PCE
Com a alteração promovida no caput do art. 63 do Regulamento de Produtos Controlados, a concessão de registro atrelado a um CPF é o processo que atesta o atendimento aos requisitos para o exercício de atividades com PCE e a sua possibilidade de aquisição.
2.7 Alterações promovidas por meio da revogação de normas do Regulamento de Produtos Controlados
O art. 3º, do Decreto nº 10.627/2021, revogou 10 (dez) regras do Regulamento de Produtos Controlados, que promoverão as seguintes alterações normativas:
I – Deixam de se classificar como produtos controlados de uso restrito (3) os produtos menos-letais (4) (revogação do inciso VIII, do § 2º, do art. 15). São produtos menos-letais: arma, munição e equipamento (Anexo II do Decreto nº 10.030/2019).
II – Os parâmetros de raridade, originalidade, singularidade e pertinência de PCE de valor histórico deixam de ser definidos no Decreto, ampliando a discricionariedade na sua configuração (revogação do art. 44, Parágrafo Único).
III – Passa a ser permitido colecionar arma de fogo, de uso restrito, não portátil ou portátil semiautomática, cuja data de projeto do modelo original tenha menos de trinta anos (revogação do item 2, alínea “b”, inciso I, do caput, do art. 45).
IV – O Comando do Exército deixa de ter competência para edição de norma para definir os critérios de habitualidade da prática do tiro desportivo (revogação do Parágrafo Único, do art. 52). Ao permanecer vigente o inciso II, do art. 52, segundo o qual a “habitualidade é a prática frequente do tiro desportivo realizada em local autorizado, em treinamentos ou em competições”, sem regulamentação, essa definição passa a ser discricionária.
V - As entidades de tiro desportivo deixarão de ter como atribuição, a manutenção, atualizada, do ranking dos atiradores desportivos filiados (revogação do inciso IV, caput, do art. 53). Também deixará de viger a autorização para que as entidades de tiro desportivo possam fornecer munições recarregadas, em suas instalações para utilização das práticas permitidas no Regulamento (revogação do Parágrafo Único, do art. 53).
VI - Os clubes de tiro e as escolas de tiro não mais estarão sujeitas às mesmas regras e condicionantes aplicáveis às entidades de tiro desportivo do Regulamento de Produtos Controlados (revogação do Parágrafo Único, art. 54).
VII – Entidades de caça não terão mais obrigação de efetuar controle de armas e notificar órgãos de segurança pública (revogação dos incisos III e IV, caput, art. 57). Após a revogação deste dispositivo, as entidades de caça deixarão de manter o controle de armas, calibres e quantidade de munição utilizada e se responsabilizar pela salvaguarda desses dados. Tais entidades, ao revés, poderão permitir o uso de arma não autorizada para a caça em suas dependências, por seus associados ou terceiros, não devendo notificar imediatamente os órgãos de segurança pública caso ocorra esta prática.
VIII – Em caso de cancelamento de registro, de pessoa física ou jurídica, para PCE, os produtos controlados não mais poderão ser transferidos para pessoa física ou jurídica autorizada ou destruídos (revogação do Parágrafo Único, art. 68).
IX – O Comando do Exército não poderá autorizar outras pessoas físicas ou jurídicas que necessitem utilizar PCE, a adquiri-los (revogação do Parágrafo único, do art. 76).
X – Retira a obrigatoriedade de guia de tráfego para acobertar o trânsito aduaneiro de PCE entre a unidade da Receita Federal do Brasil de entrada e a de despacho (revogação do Parágrafo Único, do art. 82).
3) Considerações finais
Diante da descrição das alterações promovidas no Regulamento dos Produtos Controlados pelo Exército, nos últimos anos, evidencia-se a tendência de redução do controle desses produtos.
Do ponto de vista jurídico, o processo de desregulamentação crescente pode ser questionado quanto à sua constitucionalidade e legalidade. No primeiro caso, a competência regulamentar é irrenunciável, razão pela qual, nos termos do art. 84, IV, da Constituição, ao Chefe do Poder Executivo compete expedir decretos e regulamentos para fiel execução das leis. Assim, havendo legislação que determina a fiscalização de fabricação e comércio de armas, munições, explosivos, produtos químicos agressivos e matérias correlatas, a competência regulamentar dever ser exercida em alguma medida.
Conectada à constitucionalidade está a discussão da legalidade das alterações promovidas, pois o processo de desregulamentação não pode deixar de disciplinar as condutas das pessoas físicas e jurídicas relacionadas a produtos controlados que, segundo o próprio art. 2º, inciso I, alíneas “a” a “c” e inciso II, do Decreto nº 10.030/2019, apresentam: a) poder destrutivo; b) propriedade que possa causar danos às pessoas ou ao patrimônio; e c) indicação de necessidade de restrição de uso por motivo de incolumidade pública; e, ainda, são de interesse militar.
Além da desregulamentação encontra-se em debate e certamente será objeto de análise do Poder Judiciário, se as mudanças promovidas no Regulamento de Produtos Controlados, estão aquém ou extrapolam as previsões legais sobre o assunto.
Maria Tereza Fonseca Dias
Sócia e Coordenadora da Equipe de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
(1) BRASIL. Decreto nº 24.602, de 6 de julho de 1934. Dispondo sobre instalação e fiscalização de fábricas e comércio de armas, munições, explosivos, produtos químicos agressivos e matérias correlatas. Decreto disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Atos/decretos/1934/D24602.html. Acesso em: 24 fev. 2021.
(2) A arma de fogo obsoleta foi definida como aquela que não se presta ao uso efetivo em caráter permanente, em razão de: a) sua munição e seus elementos de munição não serem mais produzidos; b) sua produção ou seu modelo ser muito antigo e estar fora de uso, caracterizada como relíquia ou peça de coleção inerte; ou c) ser arma de antecarga ou de retrocarga que utiliza a pólvora negra como carga propulsora e suas réplicas atuais (Art. 3º, VI, alíneas “a” a “c” do Decreto nº 10.030/2019).
(3) PCE de uso restrito é o produto controlado que devido as suas particularidades técnicas e/ou táticas deve ter seu acesso e utilização restringidos na forma estabelecida pelo Comando do Exército (Anexo III – Glossário, do Decreto nº 10.030/2019).
(4) Menos-letais: produtos que causam fortes incômodos em pessoas, com a finalidade de interromper comportamentos agressivos e, em condições normais de utilização, não causam risco de morte, incluídos os instrumentos de menor potencial ofensivo ou não letais, nos termos da Lei nº 13.060 de 22 de dezembro de 2014 (Anexo III – Glossário, do Decreto nº 10.030/2019).