O papel da jurisprudência na definição dos parâmetros para a utilização de medidas coercitivas atípicas em execuções de prestação pecuniária
Fernanda de Figueiredo Gomes e Eduardo Metzker Fernandes
O acesso à justiça, garantido pelo art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal (1), em interpretação sistemática, abrange não apenas o simples direito de acessar a jurisdição, mas o direito a uma tutela jurisdicional efetiva que permita ao jurisdicionado a real satisfação da sua pretensão.
Assim, é certo que compete ao direito processual a elaboração de técnicas e instrumentos designados a assegurar a efetividade dos meios executivos para que sejam observadas as garantias constitucionais.
Nesse contexto, em medida inovadora, o CPC/2015, em seu art. 139, IV (2), conferiu ao juiz o poder-dever de “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”.
Trata-se de disposição que concede ao Juiz poder geral para a adoção de medidas executivas atípicas. A inovação consiste, principalmente, na expressa extensão dessa possibilidade para as ações que tenham por objeto prestação pecuniária, uma vez que a atipicidade dos meios executivos já era admitida para as obrigações de fazer, não fazer e dar.
Embora se trate de clara tentativa do legislador de ampliar a efetividade da tutela jurisdicional, a referida previsão legal causou justificada preocupação, principalmente em razão do seu conceito demasiadamente amplo e da ausência de definição de balizas legais para a sua utilização.
A princípio, o espaço concedido à criatividade das partes e dos julgadores deu ensejo a uma diversidade de pedidos, como o bloqueio de cartões de crédito, o bloqueio do site do devedor, a intervenção judicial na sociedade devedora e, com maior frequência, a retenção da CNH e do passaporte dos executados.
Ficou, então, a cargo da jurisprudência, com amparo na doutrina, definir os limites para a utilização dos meios de execução atípicos para evitar que a sua aplicação indiscriminada pelas partes e juízos venha a lesar direitos e garantias constitucionais e processuais dos executados, como a dignidade da pessoa humana, a legalidade, a razoabilidade e a proporcionalidade.
Desde a promulgação do novo Código de Processo Civil, foi intenso o debate doutrinário acerca do tema, que também foi objeto de discussão por diversas vezes nas instâncias inferiores. Contudo, a heterogeneidade dos posicionamentos dificultava a adoção de parâmetros objetivos.
Em 16 de junho de 2020, no entanto, foi julgado o Recurso Especial 1.864.190/SP (3), de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, por intermédio do qual o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), visando consolidar a jurisprudência sobre a questão, dedicou-se a estabelecer em abstrato as balizas que orientariam a utilização das medidas executivas atípicas nas execuções pecuniárias.
As medidas executivas atípicas possuem a função precípua de compelir o executado a cumprir com a obrigação pecuniária estabelecida. Sendo assim, como bem concluiu o STJ na ocasião, não há sentido lógico em adotá-las nos casos em que restar comprovado que o executado de fato não possui patrimônio que possibilite o cumprimento da obrigação imposta e, portanto, não há qualquer medida com o condão de compeli-lo a fazê-lo.
No mesmo sentido é a lição de Eduardo Talimini (4):
Se o devedor está insolvente (i.e., tem patrimônio em valor inferior ao da dívida), sem perspectiva de que a situação se altere, cabe declarar-se judicialmente essa situação, submetendo-o à execução concursal (falência ou insolvência civil) e extinguindo-se a execução individual, sem que nessa caiba medida coercitiva.
A cominação de multa ou outra medida coercitiva, nessa hipótese, seria despropositada, dada a impossibilidade de o devedor pagar.
De fato, a aplicação de medidas restritivas a devedores insolventes teria função unicamente punitiva ou revanchista, o que não é compatível com o modelo constitucional de processo.
Ademais disso, é certo que, quanto às obrigações de pagar, o Código possui um extenso rol de medidas coercitivas típicas que visam a satisfação do crédito do exequente, amparados principalmente na penhora e na expropriação de bens.
É evidente que, ao prescrever a possibilidade de adoção de medidas atípicas, não pretendeu o legislador fazer letra-morta das medidas típicas cuidadosamente elencadas na legislação. Por consequência, o STJ, na linha do que já vinha sendo entendido por parcela significativa da doutrina, estabeleceu que as medidas coercitivas atípicas somente podem ser adotadas de forma subsidiária nos casos em que esgotadas as medidas expressamente previstas na legislação processual.
É o que já vinha defendendo o processualista Daniel Amorim Neves (5):
A adoção das medidas executivas atípicas, portanto, só deve ser admitida no caso concreto quando ficar demonstrado que não foi eficaz a adoção do procedimento típico, ou seja, o binômio penhora-expropriação não foi capaz de satisfazer o direito de crédito do exequente.38 O típico prefere o atípico, mas quando o típico se mostra ineficaz, incapaz de cumprir seu encargo legal, deve se admitir a adoção do atípico.
No que pode ser compreendido como zelo, o STJ preocupou-se, ainda, em estabelecer claramente que a decisão que fixa as medidas coercitivas atípicas deve ser precedida de contraditório substancial e conter fundamentação que abranja as especificidades do caso. Todavia, esses são requisitos que decorrem de previsão constitucional e que, portanto, devem ser observados não apenas nas decisões que versem sobre medidas coercitivas, mas em toda e qualquer decisão judicial.
Por fim, fazendo coro à melhor doutrina sobre o tema, o STJ reafirmou a importância do postulado da proporcionalidade na eleição das medidas atípicas que incidirão no caso concreto. Com efeito, somente podem ser utilizadas as medidas que se mostrarem adequadas, necessárias e razoáveis para efetivar a tutela do direito do devedor em cada caso.
Em suma, verifica-se que o STJ, amparado na produção doutrinária existente, consolidou como parâmetros para a aplicação das medidas coercitivas atípicas em execuções pecuniárias: (i) a existência de indícios de que o devedor possui patrimônio suficiente para fazer face à obrigação; (ii) o esgotamento dos meios executivos típicos; (iii) o respeito ao contraditório e ao dever de fundamentação das decisões; e (iv) a observância do postulado da proporcionalidade.
A concretização dos referidos limites permite que a utilização deste inovador e importante instrumento processual seja feita com a necessária segurança para que o exequente tenha garantido o seu direito a uma efetiva prestação jurisdicional sem que isso implique na precarização dos direitos e garantias do executado.
Fernanda de Figueiredo Gomes
Trainee da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Eduardo Metzker Fernandes
Coordenador da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) BRASIL. Constituição da República Federal do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 17 fev. 2021.
(2) BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil (CPC). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 17 fev. 2021.
(3) STJ. REsp nº 1.864.190/SP. Acórdão publicado em 19.6.2020. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1954443&num_registro=202000491396&data=20200619&formato=PDF. Acesso em: 17 fev. 2021.
(4) TALAMINI, Eduardo. Poder geral de adoção de medidas coercitivas e sub-rogatórias nas diferentes espécies de execução. Revista de Processo, v. 284, p. 139-184, out. 2018.
(5) NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Medidas executivas coercitivas atípicas na execução de obrigação de pagar quantia certa – art. 139, IV, do novo CPC. Revista de Processo, v. 265/2017, p. 107-150, mar. 2017.