Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior (livro) e Lovecraft Country (série)
Rafhael Frattari e Katryn Rocha
Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior (livro)
Neste mês, a indicação do VLF é Torto Arado, talvez o maior sucesso recente na literatura brasileira contemporânea. O livro narra a saga de uma família no sertão da Bahia, através do olhar de duas irmãs, que vivem a infância e a adolescência em Água Negra, fazenda que lhes permite ter a moradia, em troca de trabalho duro.
A obra aborda ora com doçura ora com dureza as relações familiares, mas tem como pano de fundo demonstrar a sociedade senhorial, que ainda vive nos rincões do país, onde prevalece a força da posição social, do trabalho quase escravo, do dinheiro e da violência.
As irmãs Bibiana e Belonísia levam o leitor ao longo da obra, destacando a importância da mulher nas relações familiares (e o livro conta com várias mulheres interessantíssimas), mas muitas vezes denunciando sua posição na estrutura social do momento. Também deve ser destacada a preciosa pesquisa sobre hábitos culturais que prevalecem em muitos lugares, homenageando o sincretismo religioso que nos constituiu e que parece cada vez mais ameaçado pela intolerância. Neste ponto, a reconstituição da história das mentalidades de um povo e de uma região (que, na verdade, são muitas, por esse Brasil afora) foi muito bem feita.
Um enredo incrível, coroado por um ótimo texto, sensível e duro, na medida exata, certamente fará com que Torto Arado se transforme num marco na literatura nacional. Imperdível.
Rafhael Frattari
Sócio fundador do VLF Advogados, responsável pela área tributária
Lovecraft Country (série)
2020 foi um ano marcado por diversos acontecimentos, entre eles, o fortalecimento do movimento ativista internacional Black Lives Matter, ou BLM, (Vidas Negras Importam), que teve sua origem na comunidade afro-americana em combate à violência, principalmente policial, contra as pessoas negras e esteve à frente dos protestos que tomaram as ruas após a morte chocante de George Floyd, homem negro norte-americano, que faleceu em razão dos excessos cometidos pelo policial Dereck Chauvin.
A leitura estereotipada negativa em razão da cor, da etnia, do gênero etc., persiste ainda hoje em diferentes níveis de diversas comunidades, seja de forma internalizada ou institucionalizada. O racismo, como problema histórico que é, e que acaba motivando ações como a que levou ao assassinato de George Floyd, gera infinitos debates nas ruas, nas mídias, eventos esportivos, entre outros, e, portanto, não é diferente na ficção.
Foi no contexto da intensificação do BLM que a HBO lançou a produção Lovecraft Country (Território Lovecraft), série baseada no livro homônimo do escritor Matt Ruff, que contou com mudanças significativas trazendo muito mais que o horror sobrenatural inspirado no trabalho do escritor H. P. Lovecraft (1890–1937): foi mostrado também que para diversos grupos o verdadeiro horror é o social.
A série se passa nos Estados Unidos da década de 1950, no contexto da segregação racial, acompanhando os personagens Atticus (Jonathan Majors), Letitia (Jurnee Smollett) e George (Courtney B. Vance), que embarcam em uma viagem pelo país para encontrar o pai desaparecido de Atticus, Montrose (Michael K. Williams). É importante ressaltar aqui uma das principais mudanças da série em relação ao livro: nela os protagonistas são todos negros.
A série referencia diversos elementos ficcionais da obra de H. P. Lovecraft, mas também elementos históricos. Estamos falando de um território povoado de mundos oníricos, livros com saberes proibidos, casas mal-assombradas, ocultismo e seres mágicos desconhecidos, ao mesmo tempo que utiliza em diferentes momentos o Massacre de Tulsa ou a Guerra da Coréia como cenário, ou a importância de, nesse contexto, se ter um guia de viagem atualizado no qual conste os lugares, como hotéis e restaurantes, seguros para os negros estarem.
A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte de todos os medos é o medo do desconhecido.
H. P. Lovecraft
A obra de H. P. Lovecraft revolucionou o gênero de horror, fazendo com que ele seja considerado um dos expoentes dessa literatura. Entretanto, é importante ressaltar que, embora tenhamos que reconhecer a importância de sua produção, Lovecraft possuía muitos preconceitos com pessoas diferentes e desconhecidas, fossem elas não brancas ou estrangeiras: ele era declaradamente racista e xenófobo, deixando entremear esses aspectos em sua obra.
O título é múltiplo, pois fazemos referência ao universo do horror cósmico criado por Lovecraft, mas a potência da série está muito além disso. A ideia de um território Lovecraft, pode dizer muito mais de um lugar que, tal qual o autor que “homenageia”, é caracteristicamente preconceituoso e que se sente cada vez mais confortável em expor essa faceta. Lovecraft dá o pano de fundo, mas não é o personagem principal. Sua obra, portanto, é ressignificada na série.
Por fim e não menos importante, a série é embalada por uma trilha sonora que narra os anos 1950, mas que não se furta de usar músicas de diferentes décadas, seja do início do século 20, seja do século 21, fazendo também inserções poéticas que te prendem da abertura da série aos créditos finais.
Katryn Rocha
Auxiliar de Comunicação do VLF Advogados