Astreintes: pontos polêmicos e o novo CPC
Leonardo Wykrota
As astreintes, como se sabe, integram o rol dos meios de coerção pelos quais se busca exercer “pressão psicológica sobre o executado, como forma de obter o cumprimento da obrigação devida” (1). Trata-se de autorização para que o juiz fixe multa periódica pelo atraso no cumprimento de determinada obrigação (art. 461, §§ 4º e 5º, CPC) (2), inclusive em sede de antecipação dos efeitos da tutela em ação de conhecimento (art. 287, CPC) (3).
O instituto tem inspiração no Direito Francês e não deve ser confundido com a multa penal do direito civil, típica estipulação prévia para as perdas e danos, as quais a legislação processual taxativamente autoriza cumular com as astreintes (art. 461, § 2º, CPC) (4)(5). Sua aplicação, porém, traz certa polêmica em alguns temas específicos, a exemplo de: (a) a possibilidade de fixação de ofício da multa; (b) o termo inicial de incidência; (c) o termo inicial da exigibilidade; (d) a possibilidade de alteração; e (e) a limitação da multa em relação à obrigação principal.
Atualmente, esses temas são tratados pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça com as seguintes orientações: (a) é possível a fixação de ofício da multa (6); (b) a incidência opera desde a efetiva intimação para cumprimento da obrigação principal (7); (c) a exigibilidade, porém, fica condicionada, em regra, ao trânsito em julgado da decisão (8); (d) a possibilidade de alteração da multa é pacífica, caso esta se mostre insuficiente para persuadir o devedor da obrigação; a controvérsia fica por conta da alteração da multa já transcorrida, sendo majoritária a corrente que admite a alteração nos casos em que ela se mostrar excessiva (9); e, por fim, (e) a limitação à obrigação principal, conquanto sem amparo da melhor doutrina, vem sendo aceita em alguns casos (10).
O Novo Código de Processo Civil (NCPC), recentemente sancionado (Lei nº 13.105, de 16.03.15), traz alterações na redação de seu antecessor para encampar parte das construções jurisprudenciais destacadas acima.
No novo código, por exemplo, está expresso que a fixação da multa é “independente de requerimento da parte” (art. 537, NCPC) (11), em qualquer etapa processual, ou seja, tanto na fase de conhecimento (seja na tutela provisória ou na sentença) quanto na fase de execução.
Também fica expresso que o juiz poderá, de ofício ou a requerimento da parte, modificar o valor e a periodicidade da multa, ou até mesmo excluí-la, desde que se torne insuficiente ou excessiva (art. 537, §1º, NCPC).
Há, porém, casos em que a multa se torna excessiva em razão da conduta renitente do devedor. Nesta hipótese, a jurisprudência orienta que “a astreinte não deve ser reduzida se o único obstáculo ao cumprimento de determinação judicial foi o descaso do devedor.” (STJ, T3, REsp 1.151.505/SP, Min. NANCY ANDRIGHI, 7.10.10) (12).
De qualquer forma, o valor da multa deve ser capaz de implicar efetividade no comportamento do devedor, diante de sua condição econômica, capacidade de resistência, vantagens obtidas com o atraso e demais circunstâncias (13). Destarte, se o valor fixado se mostrar insuficiente para esta finalidade, poderá ser majorado para coibir o descumprimento da ordem judicial (14). Nesse sentido, é possível entender que o Novo Código não admite a limitação da multa, ao dispor que esta incidirá “enquanto não for cumprida a decisão que a tiver cominado” (art. 537, §4º, NCPC).
A questão dos termos iniciais de incidência e exigibilidade também estão tratadas no NCPC. No primeiro ponto, o novo regramento adota a mesma posição da jurisprudência, reafirmando que “[a] multa será devida desde o dia em que se configurar o descumprimento da decisão e incidirá enquanto não for cumprida a decisão que a tiver cominado” (art. 537, § 4º, NCPC). Inova, porém, em relação ao segundo ponto, ao exigir o depósito da multa em juízo desde logo, embora admitindo o levantamento pelo credor somente após o trânsito em julgado da sentença favorável à parte ou na pendência do agravo fundado nos incisos II ou III do art. 1.042 (art. 537, §3º, NCPC) (15).
A título de curiosidade, vale anotar, ainda, que a questão da titularidade da multa foi tema também discutido no âmbito do processo legislativo que culminou no Substitutivo enviado para sanção presidencial pelo Senado (16). Em vista dos relatos de exageros na fixação da multa, com possível enriquecimento sem justa causa do credor (17), chegou-se a determinar que a multa seria devida “até o valor da obrigação principal para o exequente”, destinando-se o excedente ao Estado, alinhando-se com a doutrina que entende ser a multa uma proteção à tutela judicial (18). Porém, a inicial proposta não teve êxito, mantendo-se no projeto final a titularidade da multa ao exequente (art. 537, §2º, NCPC), da mesma maneira como ocorre no Código atual (art. 601, aplicado por analogia).
Como se vê, o novo diploma processual, embora inovando no aspecto da exigibilidade da multa periódica, manteve-se, no mais, fiel à jurisprudência dominante sobre o tema. Espera-se, assim, que as astreintes sejam cada vez mais utilizadas na prática processual, tendo em vista sua evidente contribuição para a efetividade no cumprimento das obrigações e decisões, a despeito das polêmicas que sua aplicação tenha causado no passado.
Leonardo Wykrota
Sócio responsável pela equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados.
(1) CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 16ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2008, p. 240.
(2) Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. (...) § 4º - O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito. § 5º - Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial. (Código de Processo Civil).
(3) Art. 287. Se o autor pedir que seja imposta ao réu a abstenção da prática de algum ato, tolerar alguma atividade, prestar ato ou entregar coisa, poderá requerer cominação de pena pecuniária para o caso de descumprimento da sentença ou da decisão antecipatória de tutela (arts. 461, § 4º, e 461-A). (Código de Processo Civil).
(4) § 2º A indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (art. 287). (Código de Processo Civil).
(5) “A multa tem caráter coercitivo. Nem é indenizatória, nem é punitiva. Isso significa que o seu valor reverterá à parte adversária, mas não a título de perdas e danos. O seu valor pode, por isso mesmo, cumular-se às perdas e danos (art. 461, §2º, CPC). A multa tem caráter acessório: ela existe para coagir, para convencer o devedor a cumprir a prestação.” (DIDIER. Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Execução. Vol 5. P.443; Ed Podivm, 2009).
(6) “O entendimento pacífico desta Corte Superior é no sentido de ser possível ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, fixar multa diária cominatória (astreintes), ainda que seja contra a Fazenda Pública, em caso de descumprimento de obrigação de fazer.” (STJ, T2, EDcl no AgRg no REsp 1367081/RS, Min. Humberto Martins, DJe 28/05/2013).
(7) "Firmou-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em reiterados precedentes, no sentido de que tratando-se de multa em obrigação de fazer, o dies a quo da incidência da multa diária inicia com a intimação pessoal do devedor para cumprimento da obrigação." (AgRg no Ag 1.189.289/RS, Rel. Min. ALDIR PASSARINHO JUNIOR, Quarta Turma, DJe 28/4/10). No mesmo sentido: AgRg nos EDcl no AREsp 486994/RS, Min. Humberto Martins, DJe 12/06/2014; e REsp 1349790/RJ, 2ª Seção, Min. MARIA ISABEL GALLOTTI, DJe 27/02/2014. Existem, ainda, precedentes que defendem a desnecessidade de intimação pessoal do devedor, a exemplo do AgRg no AREsp 405565/RJ, Min. HERMAN BENJAMIN, DJe 28/02/2014; REsp 1098495/RS, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 27/03/2012, DJe 03/04/2012; e AgRg no Ag 1283146/RS, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, Quarta Turma, julgado em 23/11/2010, DJe 06/12/2010.
(8) “É pacífica a jurisprudência nesta Corte no sentido de que a multa prevista no § 4° do art. 461 do CPC só é exigível após o trânsito em julgado da sentença (ou acórdão) que confirmar a fixação da multa diária, que será devida, todavia, desde o dia em que se houver configurado o descumprimento.” (STJ, T3, AgRg no REsp 1241374/PR, Min. Sidnei Beneti, DJe 24/06/2013). No mesmo sentido: AgRg no REsp 1.153.033/MG, Min. Sidnei Beneti, Terceira Turma, DJe: 07/05/2010.
(9) “O artigo 461 do Código de Processo Civil permite que o magistrado altere, de ofício ou a requerimento da parte, o valor da multa quando este se tornar insuficiente ou excessivo, mesmo depois de transitada em julgado a sentença, não se observando a preclusão.” (STJ, T3, AgRg no REsp 1381624/SP, Min. SIDNEI BENETI, DJe 08/10/2013).
(10) “(...) não se pode querer aplicar às astreintes o disposto no art. 412 do Código Civil de 2002, que limita o valor da cláusula penal, estabelecendo que esta não pode exceder o valor da obrigação principal.” (CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 16ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2008, p.241). Em sentido contrário, o voto do Min. Aldir Passarinho Junior: “É possível a redução das astreintes fixadas fora dos parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade, fixada a sua limitação ao valor do bem da obrigação principal, evitando-se o enriquecimento sem causa.” (STJ-4ª Turma, REsp 947.466-PR, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. em 17.09.09, DJe 13/10/09).
(11) Art. 537. A multa independe de requerimento da parte e poderá ser aplicada na fase de conhecimento, em tutela provisória ou na sentença, ou na fase de execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para cumprimento do preceito. (Novo Código de Processo Civil).
(12) No mesmo sentido, Daniel Roberto Hertel: "somente em situações excepcionais, nas quais não haja culpa do executado quanto ao cumprimento extemporâneo da obrigação, deverá o magistrado reduzir o valor total da multa." (Daniel Roberto Hertel. Sistematização das Astreintes à luz do Processo Civil Brasileiro. Revista Dialética de Direito Processual. 2007, p.50).
(13) “(...) a eventual revisão deve ser pensada de acordo com as condições enfrentadas no momento em que a multa incidia e com o grau de resistência do devedor.” (STJ, T3, AgRg no REsp 1.026.191/RS, Min. Nancy Andrighi, DJe 23/11/2009).
(14) TJES, AG 024059006395, 4ª C. Cív., Relª Desª Catharina Maria Novaes Barcellos, J. 01/11/2005.
(15) § 3º A decisão que fixa a multa é passível de cumprimento provisório, devendo ser depositada em juízo, permitido o levantamento do valor após o trânsito em julgado da sentença favorável à parte ou na pendência do agravo fundado nos incisos II ou III do art. 1.042. (Novo Código de Processo Civil).
(16) Alguns doutrinadores creem que o caráter da astreinte é puramente coercitivo, sendo seu intuito forçar o destinatário ao cumprimento da decisão. Desta forma, ela não se restringe em assegurar o direito a quem solicitou a medida, mas a assegurar a autoridade das decisões judiciais. Em contrapartida, para o STJ, sua natureza é híbrida, como demonstrado no REsp 949.509-RS. Para o Min. Marcos Buzzi, além de resguardar a eficácia das decisões judiciais, a multa também tem função de compensar o autor pelo tempo que permaneceu sem o direito que lhe foi concedido. Diante do exposto, observa-se que a discussão sobre a titularidade da multa não é consolidada. Neste contexto, Sérgio Cruz Arenhart defende que deve ser destinado ao Estado, pois se trata de uma “ofensa à sua autoridade, que instabiliza o poder que deve o Estado exercer.” (ARENHART, Sérgio Cruz. A doutrina brasileira da multa coercitiva – três questões ainda polêmicas. [200_?]. Disponível em: http://www.unifafibe.com.br/revistasonline/arquivos/revistajuridicafafibe/sumario/5/14 042010171201.pdf. Acesso em 02 de setembro de 2012). Em sentido contrário, Eduardo Talamini defende que a titularidade deve permanecer com a parte contrária, pois desta forma, aumenta-se o caráter coercitivo da mesma, sendo rapidamente executada. (TALAMINI, Eduardo, Tutela Relativa aos Deveres de Fazer e de Não Fazer. 2ª Ed.).
(17) Há casos em que se deixa de perseguir o objetivo principal da demanda para aguardar a incidência do valor acumulado da multa. É o que constatou a operação Astringere, promovida pela Polícia Federal em abril de 2013, em João Pessoa/PB. A investigação apurou a existência de organizações criminosas que, com o apoio de advogados, funcionários públicos e magistrados, falsificavam documentos e manipulavam processos para se apropriarem de astreintes milionárias.
(18) “(...) na realidade, é a autoridade estatal que é tutelada por meio das técnicas coercitivas e não, diretamente, a pretensão material exposta pelo autor da demanda. De fato, é essa proteção autônoma devida à autoridade do Estado que justifica, por exemplo, a proteção penal dada às ordens judiciais – o crime de desobediência, como se sabe, independe do conteúdo daquele comando, importando apenas a origem pública da determinação. (…) Realmente, se o valor da multa fosse de titularidade do autor, porque ligado à obrigação que protege, como seria possível autorizar ao magistrado dispor desse valor, reduzindo-o (v.g., art. 645, parágrafo único, do CPC)? Como seria viável que impusesse de ofício essa medida (art. 461, § 4º, do CPC)? Poderiam as partes excluir previamente a multa coercitiva em negócio jurídico? As respostas a estas indagações conduzem, inevitavelmente, à separação entre a proteção derivada do direito material e a tutela da autoridade do Estado (...)”. (ARENHAART, Sérgio Cruz. A doutrina brasileira da multa coercitiva – Três questões ainda polêmicas. Disponível em: http://www.academia.edu/214439/A_DOUTRINA_BRASILEIRA_DA_MULTA_COERCITIVA_-_TRES_QUESTOES_AINDA_POLEMICAS. Acesso em 11 de março de 2015).