A cobrança de pedágio intermunicipal pela Concessionária independe da existência de via alternativa gratuita para o usuário
Domirí Lara, Mariana Cavalieri e Gabrielle Aleluia
De um modo geral, as concessões envolvendo a malha rodoviária abrangem a administração e exploração da infraestrutura, bem como a prestação dos serviços públicos de recuperação, operação, manutenção, monitoração, conservação, implantação de melhorias, ampliação de capacidade e manutenção do nível de serviço do Sistema Rodoviário. A contraprestação destes serviços, obrigações e investimentos é feita pela tarifa de pedágio cobrada de todos os usuários da Rodovia, de acordo com os critérios e parâmetros estipulados pelo Poder Concedente.
A receita proveniente da tarifa é, portanto, um dos elementos que pautam o equilíbrio econômico-financeiro dos Contratos de Concessão. Assim, devem existir mecanismos que assegurem a cobrança efetiva da tarifa de pedágio. A definição dos locais de implantação das praças de pedágio, por exemplo, é um desses mecanismos. Trata-se de prerrogativa exclusiva do Poder Concedente, exercida a partir da realização de estudos e simulações para verificar, entre outras questões relevantes, a estimativa do volume de tráfego, a taxa de fuga e a taxa de crescimento anual da demanda. Também é comum a realização de audiências públicas com a população, para avaliação dos impactos da instalação das praças de pedágio em cada região.
O objetivo dessas análises é garantir que o maior número de usuários possa dividir os custos de melhorias e manutenção das vias pedagiadas, garantindo-se, com isso, a modicidade das tarifas, sem prejuízo para o equilíbrio econômico-financeiro das concessões. Ou seja, para que as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade e generalidade sejam mantidas, é necessário que a Concessionária colete a tarifa (que é um preço público) de todos os usuários das Rodovias pedagiadas, independentemente da distância percorrida sob o trecho concedido e da existência, ou não, de via alternativa gratuita, sem que isso configure violação ao “direito de ir e vir”, já que a cobrança está amparada pelo art. 150, V, CR/88 (1).
Nesse sentido, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (“STF”) já decidiu que:
seria irrelevante também, para a definição da natureza jurídica do pedágio, a existência, ou não, de via alternativa gratuita para o usuário trafegar. Reconheceu que a cobrança de pedágio poderia, indiretamente, limitar o tráfego de pessoas. Observou, todavia, que essa restrição seria agravada quando, por insuficiência de recursos, o Estado não construísse rodovias ou não conservasse adequadamente as existentes. Ponderou que, diante dessa realidade, a Constituição autorizara a cobrança de pedágio em rodovias conservadas pelo Poder Público, inobstante a limitação de tráfego que essa cobrança pudesse eventualmente acarretar. Registrou, assim, que a contrapartida de oferecimento de via alternativa gratuita como condição para a cobrança de pedágio não seria uma exigência constitucional, tampouco estaria prevista em lei ordinária. (2)
Ao prezar pela cobrança de pedágio de todos os usuários, a Concessionária, como é próprio da atividade empresarial, garante o retorno previsto para os investimentos estipulados em contrato e, também, assegura o princípio da modicidade das tarifas, como visto acima, fazendo com que o ônus seja distribuído, sem discriminação de grupos ou categorias de usuários, entre todos aqueles que se utilizam da Rodovia pedagiada. Apesar dessas circunstâncias e da lisura e ampla publicidade que regem o procedimento de licitação e instalação das praças de pedágio, a cobrança do valor em trecho que perpassa um mesmo município tem sido objeto de discussão judicial, notadamente nos casos em que não existem vias alternativas de tráfego.
Sobre o tema, o STF já julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (“ADI”) n. 4382 (1), que questionava a constitucionalidade da lei do estado de Santa Catarina, que isentou o pagamento da tarifa de todos os veículos emplacados nos municípios onde estão instaladas praças de pedágio das rodovias federais BR-101 e BR-116 (Lei Estadual n. 14.824/2009). No julgamento, o Plenário reconheceu a inconstitucionalidade da isenção, sob o fundamento de que o pedágio não feriria a liberdade de locomoção, e propôs a tese segundo a qual “a cobrança de pedágio em trecho de rodovia situado em área urbana é compatível com a Constituição, inclusive quanto a aqueles domiciliados no município em que localiza a praça de cobrança e independe da disponibilização aos usuários de via alternativa gratuita.”
Atualmente, o assunto é objeto do Tema 513 da Repercussão Geral, com origem na ação popular ajuizada por moradores de Palhoça/SC, na qual defendem, em síntese, que a cobrança de pedágio pressupõe a existência de via alternativa gratuita ao usuário, sob pena de afronta ao art. 5º, XV, da CF (3). Também ponderam que a cobrança da taxa dos munícipes que utilizam a rodovia diariamente de forma intermunicipal seria desproporcional.
Na primeira instância, o Juiz Federal Carlos Alberto da Costa Dias julgou improcedentes os pedidos iniciais, sob o fundamento de que a alegação de lesão à moralidade administrativa “não pode ser invocada como fundamento para modificar os critérios de conveniência e oportunidade adotados pelo Administrador, sob pena de violação ao princípio da separação dos poderes. Para que não haja usurpação de competência, é necessário que o ato que se pretende anular seja ilegal e lesivo à moralidade administrativa.” Concluiu, ao final, que não haveria nenhuma ilegalidade no ato administrativo, por força do permissivo constitucional do art. 150, V, da CF. Esclareceu, ainda, que a instalação da praça de pedágio “invariavelmente afetará de forma mais intensa os moradores das localidades mais próximas, que, por outro lado, serão mais beneficiados pelas melhorias nas estradas que utilizam regularmente” (4).
Com a manutenção da sentença pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, os Autores aviaram o Recurso Extraordinário n. 645.181, leading case do Tema 513 da Repercussão Geral (Cobrança de pedágio intermunicipal sem disponibilização de via alternativa), com apoio no art. 102, III, 'a', da Constituição Federal.
Em contrarrazões, a União pontuou que a cobrança de pedágio é autorizada pela própria Constituição Federal e tem por objetivo a melhoria das rodovias federais. Explicou, ainda, que os critérios para a instalação da praça de pedágio foram norteados por estudos técnicos da Concessionária, sendo vedado ao Poder Judiciário imiscuir-se nesta esfera.
A Concessionária Recorrida, a Autopista Litoral Sul S.A., defendeu que a instituição do pedágio constitui a forma mais razoável e, por isso, mais justa, para a consecução dos serviços de manutenção e conservação das rodovias. Também considerou que o pedido de isenção formulado pelos munícipes feriria o princípio da igualdade, na medida em que beneficiaria moradores de determinado Município em detrimento de todos os demais usuários.
A Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (“ABCR”) foi admitida como amicus curiae e pugnou pelo desprovimento dos recursos. A Procuradoria Geral da República também apresentou seu parecer, pugnando pelo parcial provimento dos Recursos Extraordinários, para que o julgamento fosse retomado na instância de origem, com o exame da matéria de fato, “para se determinar se há via capaz de, em padrões de normalidade, permitir o tráfego normal demandado pelo funcionamento urbano em causa. Excluem-se desse campo, naturalmente, vias que importem desvios e percalços de tal monta que nulificariam, na prática, o transcurso trivial do município.”
O Recurso Extraordinário foi incluído na pauta de julgamento do dia 11 de abril de 2019 e, após o voto do Ministro Relator Alexandre de Moraes, que negou provimento aos recursos, o Ministro Roberto Barroso pediu vista dos autos.
A jurisprudência tem se posicionado no sentido de ser possível a cobrança de pedágio em área interna de município, até mesmo por não ser função do Estado-Juiz a promoção da justiça social, ainda que sob o pretexto de corrigir determinadas distorções. Caso contrário, o Poder Judiciário estaria imiscuindo-se no mérito do ato administrativo que deliberou sobre a localização das praças de pedágio e, em última instância, no contrato de concessão firmado entre o Poder Concedente e a Concessionária.
Ademais, a existência de via alternativa gratuita como condição para a cobrança de pedágio não constitui uma exigência constitucional, tampouco está prevista em lei ordinária (REsp n. 417.804/PR; REsp n. 617.002/PR; AgRg na SL n. 34/PR). Pelo contrário, além de não conter qualquer dispositivo que imponha tal condição ao concessionário, a Lei nº 8.987/95 (“Lei de Concessões”) estabelece que:
Art. 9º A tarifa do serviço público concedido será fixada pelo preço da proposta vencedora da licitação e preservada pelas regras de revisão previstas nesta Lei, no edital e no contrato.
§ 1º A tarifa não será subordinada à legislação específica anterior e somente nos casos expressamente previstos em lei, sua cobrança poderá ser condicionada à existência de serviço público alternativo e gratuito para o usuário.
Além disso, em geral, os contratos de concessão estabelecem a obrigação de fechamento de vias vicinais e acessos irregulares que possibilitem “rotas de fuga” e evasão ao pedágio e/ou que comprometam a segurança dos usuários da Rodovia. Isso porque, além de outros impactos, a criação de “rotas de fuga” faria com que um número cada vez menor de usuários contribuísse com os custos de melhoria e manutenção das rodovias pedagiadas, o que afetaria o equilíbrio econômico-financeiro das concessões e inviabilizaria a execução dos respectivos contratos.
Nesta perspectiva, em que pese a pendência de julgamento pelo STF, a tendência é a de que, fazendo coro aos precedentes sobre o tema, o julgamento do RE n. 645.181 reafirme o entendimento de que a cobrança do pedágio não está sujeita à existência de via alternativa gratuita para o usuário trafegar.
Domirí Lara
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Mariana Cavalieri
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Gabrielle Aleluia
Coordenadora da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
V - estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público.
(2) ADI 800, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 11/06/2014, publicado em 01-07-2014.
(3) Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens.
(4) Ação Popular n. 2008.72.00.005653-9, em trâmite perante a 2ª Vara Federal de Florianópolis/SC.