Corrupção em meio à COVID-19: mais um efeito global da pandemia
Arthur Batista e Fernanda Galvão
Há mais de um ano que a sociedade mundial vem sofrendo os impactos da pandemia da COVID-19, que são mais evidentes pelo prisma da saúde ou economia. Entretanto, os efeitos da pandemia também já são sentidos no âmbito da corrupção, mais especificamente, em como o mundo percebe essa mazela.
No início deste ano, a organização não governamental Transparência Internacional, que se denomina “uma coalizão global contra a corrupção”, apresentou seu último relatório do Índice de Percepção da Corrupção (“IPC”) com análises dos dados de 2020 sobre a percepção da corrupção no âmbito público no mundo sob o ponto de vista de especialistas e empresários.
O IPC é o mais importante índice sobre corrupção e avalia 180 países, atribuindo a cada um deles uma nota de 0 (zero) a 100 (cem), no qual 0 (zero) significa altamente corrupto e 100 (cem) muito íntegro.
Segundo o relatório do IPC, o ano de 2020 se apresentou como um dos, senão o pior da história recente, especialmente pelo surgimento da pandemia causada pela COVID-19 e suas consequências devastadoras. Além da catástrofe nas áreas da saúde e economia, a corrupção também foi responsável pela perda de vidas, ainda que de forma indireta, considerando que sua existência e aumento prejudicaram os esforços para combater a pandemia e conseguir dar uma resposta mais igualitária à sociedade mundial.
Com relação ao Brasil, o resultado no IPC de 2020 infelizmente não apresentou muita evolução. Nosso país obteve 3 (três) pontos a mais que no último levantamento, chegando aos 38, saindo da posição 106 e passando à posição 94 do ranking, ao lado de países como Etiópia, Cazaquistão, Suriname, Tanzânia, entre outros e atrás de países como Timor-Leste, Bahamas e Uruguai.
Embora o ganho de posições e aumento no índice possam parecer uma melhora, talvez até significativa, isso não ocorreu, pois a variação do resultado brasileiro está dentro da margem de erro do levantamento, que é de 4,1 pontos percentuais para mais ou para menos. A média global, entretanto, é de 45 pontos, ou seja, o Brasil permanece abaixo desse patamar.
Especialistas apontam que dentre os possíveis motivos para a estagnação do país no IPC está o fato de o Brasil não ter avançado nas reformas estruturantes necessárias, como por exemplo o pacote de novas medidas de combate à corrupção (1). As punições ainda são pouco efetivas, em especial quanto aos chamados crimes do colarinho branco. Infelizmente, o Brasil pouco avançou na correção de temas que levam à impunidade. Há muitas questões em aberto que há anos são discutidas no Congresso e no Poder Judiciário, como a prisão em segunda instância, e outras tantas medidas já sugeridas por setores da sociedade, tais como a criação do crime de corrupção privada; a ampliação do rol de setores sujeitos aos mecanismos de lavagem de dinheiro, incluindo os partidos políticos; e a exigência de programas de integridade para contratação com a administração pública em obras de grande vulto.
Paralelamente a essa situação, observa-se que os crimes de lavagem de dinheiro vêm sendo combatidos com mais veemência em todas as esferas da sociedade brasileira. Corrupção e lavagem de dinheiro, de bens, são companheiros que andam juntos e dificilmente se separam. Nos últimos 2 (dois) anos houve o fortalecimento do combate à lavagem de dinheiro, especialmente com a atualização de normas que possuem o intuito de respaldar, com mais robustez, a prevenção à lavagem de dinheiro (PLD).
Como exemplo desse novo cenário, a Instrução 617/19 (2) da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”), vigente desde outubro de 2020, trouxe novas regras que reforçam: a abordagem baseada no risco para programa de prevenção à lavagem de dinheiro juntamente com a necessidade de avaliação periódica dos riscos de lavagem de dinheiro; a padronização do conceito de Pessoas Politicamente Expostas (“PEP”) (3) de acordo com o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (“COAF”) (4), Banco Central (“BACEN”) e outros órgãos reguladores; a utilização da tecnologia no âmbito de assinaturas digitais, digitalização de documentos, verificação de bancos digitais de informações para comprovação da veracidade de informações; dentre outras relevantes modificações.
O BACEN é outra entidade que busca o enrijecimento do combate à lavagem de dinheiro. Em 24 de janeiro de 2020, foi publicada a Circular nº 3.978 (5), que entrou em vigor em outubro de 2020 e dispõe sobre políticas, procedimentos e controles internos das instituições financeiras com o intuito de prevenir a utilização do sistema financeiro nacional para a prática de crimes de lavagem de dinheiro ou ocultação de bem, direitos ou valores. A referida Circular traz vários dispositivos que convergem para maior especificação dos dados das pessoas envolvidas em transações de valores e vão além, buscando ainda que sejam informados de forma pormenorizada, também, produtos, parceiros, prestadores de serviços, entre outros envolvidos em atividades financeiras. Com as alterações realizadas, acredita-se que o controle mais rígido sobre as operações que envolvam valores, possam coibir cada vez mais as práticas criminosas.
Por fim, destaca-se a Circular nº 612/20 (6) emitida pela Superintendência de Seguros Privados (“SUSEP”), especificamente sobre programas de prevenção à lavagem de dinheiro e combate ao financiamento do terrorismo. O documento, entre outras previsões, apresenta (i) atualização do conceito de PEP, incluindo autoridades do executivo e do legislativo no âmbito municipal, além de dedicar atenção também aos familiares, representantes e outras pessoas físicas e jurídicas vinculadas ao PEP; (ii) tratamento diferenciado e mais rígido para resseguradoras e corretores com faturamento inferior a R$12 milhões, compatíveis com o tamanho e volume das operações, entre outras medidas.
Apesar do fortalecimento do combate à lavagem de dinheiro, o cenário de pandemia favorece consideravelmente os riscos dessa atividade ilícita. O COAF recentemente informou que até agosto do último ano, algumas situações de risco foram identificadas, especialmente: (i) dispensa de licitação para contratação de serviços por entes públicos, com possível superfaturamento de preços; (ii) recebimento de recursos públicos destinados à compra de equipamentos ou insumos para o combate à pandemia com imediata transferência a terceiros sem relacionamento financeiro aparente; (iii) transferência de recursos para servidores públicos por empresas que receberam pagamentos decorrentes de contratos administrativos; e (iv) realização de saques de dinheiro em espécie imediatamente após o recebimento de repasses de recursos públicos (7).
Além disso, mais de 100 (cem) comunicações foram emitidas ao COAF ligadas a operações suspeitas praticadas nos setores obrigados (8) e, ainda, comunicações advindas de autoridades competentes pelo Sistema de Intercâmbio de Informações (“SEI-C”) relacionadas a investigações associadas a fraudes na contratação de produtos e serviços para o combate à COVID-19.
Dessa forma, conclui-se que por mais que instituições estejam focadas no combate à lavagem de dinheiro, o cenário de pandemia é extremamente favorável a práticas ilícitas de toda ordem. Isso dificulta a obtenção dos efeitos pretendidos por todas as novas regras emitidas ao longo de 2020 para combate à lavagem de dinheiro e ocultação de bens. Logo, acredita-se que essa situação, possivelmente, refletiu no resultado de 2020 do IPC do Brasil.
Nesse sentido, nota-se a importância da adoção de políticas de compliance, qualquer seja a área de atuação, a fim de mitigar os riscos de práticas ilícitas e criminosas, como corrupção e lavagem de dinheiro.
O VLF Advogados possui uma equipe especializada no atendimento de compliance. Caso queira saber mais sobre esse assunto ou precise do apoio e atuação, entre em contato conosco.
Arthur Batista
Advogado da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Fernanda Galvão
Sócia-executiva e Coordenadora da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
(1) Daniel Lança, mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e Sócio da SG Compliance, em seu artigo ‘O Brasil vai mal no Índice de Percepção da Corrupção’, publicado recentemente na Revista Veja.
(2) BRASIL. Diário Oficial da União. Instrução nº 619, de 6 de fevereiro de 2020. Altera e revoga dispositivos da Instrução CVM nº 592, de 17 de novembro de 2017. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-n-619-de-6-de-fevereiro-de-2020-242074461. Acesso em: 24 mar. 2021.
(3) Segundo o site do Governo Federal, PEP são os ocupantes de cargos e funções públicas listadas nas normas de PLD (Prevenção à Lavagem de Dinheiro) / FTP (Financiamento do terrorismo) editadas pelos órgãos reguladores e fiscalizadores.
(4) Conselho de Controle de Atividades Financeiras ou COAF, é um órgão governamental, cuja finalidade é disciplinar, receber, examinar e identificar ocorrências suspeitas de atividades ilícitas no âmbito da lavagem de dinheiro e ainda, aplicar, se necessário, sanções administrativas.
(5) BRASIL. Diário Oficial da União. Circular nº 3.978, de 23 de janeiro de 2020. Dispõe sobre a política, os procedimentos e os controles internos a serem adotados pelas instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil visando à prevenção da utilização do sistema financeiro para a prática dos crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores, de que trata a Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, e de financiamento do terrorismo, previsto na Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/circular-n-3.978-de-23-de-janeiro-de-2020-239631175. Acesso em: 24 mar. 2021.
(6) BRASIL. Diário Oficial da União. Circular SUSEP nº 612, de 18 de agosto de 2020. Dispõe sobre a política, os procedimentos e os controles internos destinados especificamente à prevenção e combate aos crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores, ou aos crimes que com eles possam relacionar-se, bem como à prevenção e coibição do financiamento do terrorismo. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/circular-susep-n-612-de-18-de-agosto-de-2020-275409238. Acesso em: 24 mar. 2021.
(7) COAF identifica e compartilha novos sinais de alerta para mitigar riscos de fraudes durante a pandemia. Disponível em: https://www.gov.br/coaf/pt-br/assuntos/noticias/noticias-anteriores/coaf-identifica-e-compartilha-novos-sinais-de-alerta-para-mitigar-riscos-de-fraudes-durante-a-pandemia. Acesso em: 24 mar. 2021.
(8) Conforme artigo 9º da Lei de Lavagem de Dinheiro n° 9613/1998, há setores, que pela atividade que exercem, tem obrigação de adotar mecanismos para o combate à lavagem de dinheiro.