As Intermitências da Morte, de José Saramago (livro) e Druk, de Thomas Vinterberg (filme)
Bruno Fontenelle e Rafhael Frattari
As Intermitências da Morte, de José Saramago (livro)
No dia seguinte ninguém morreu. O facto por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenômeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e noturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda morta, um suicídio levado ao bom fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles acidentes de automóvel tão frequentes em ocasiões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar.(1)
As intermitências da morte, de José Saramago, pode ser considerado um dos livros contemporâneos mais importantes da língua portuguesa. O enredo aborda o desaparecimento súbito da morte: a partir de 1º de janeiro, ninguém mais morre em um determinado país.
Primeiramente entendido como ponto positivo, a falta de falecimentos acaba se tornando um problema maior na vivência em sociedade: além dos hospitais abarrotados de pessoas em estado crítico, o país começa a vivenciar outras questões inimagináveis até então. O caos de superpopulação, a realidade de guerras, revoluções, crescimento de tráfico de pessoas e o hedonismo nacional fazem parte do novo cotidiano da sociedade, que agora duvida da existência de algum deus. Tal concepção fica clara nas palavras de um dos cardeais da capital: “Sem morte não há ressureição, e sem ressureição não há igreja.”
O próprio governo, encabeçado pelo seu Primeiro-Ministro, busca a todo tempo manter a harmonia do país, quando considera que a falta de óbitos se tornou inimiga nacional. Tal situação chega ao seu limite no momento em que tem acesso a uma carta, cuja remente é a própria morte amargurada.
O livro, cercado de discussões comparáveis às conversas entre os irmãos Karamazov, debate a própria existência do ser humano e suas ações em sociedade, em um contexto da falta da maior certeza que temos: morrer como algo inevitável.
Saramago, portanto, pretende discutir a vida, em um romance cujo personagem principal é a própria morte.
Bruno Fontenelle
Advogado da Equipe de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
(1) SARAMAGO, José. As Intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p. 11 .
Druk, de Thomas Vinterberg (filme)
Não deixa de ser curioso como um filme sobre uma bebedeira incentivada pode ter sido indicado ao Oscar nestes tempos politicamente corretos. De todo modo, o filme dinamarquês narra a vida de quatro professores de uma escola do ensino médio vivendo de modos diferentes, mas também semelhantes, as angústias e as crises dos quarenta anos.
Os amigos descobrem uma peculiar teoria de um pensador norueguês de que há um pequeno déficit de álcool no corpo humano e que eles deveriam compensar esse problema simplesmente bebendo. Embora haja um fôlego novo na vida deles, logo, essas mudanças voltam a ser efêmeras e pequenas bebedeiras transformam-se em grandes e demoradas jornadas etílicas, muitas vezes agravando problemas familiares, especialmente do personagem principal Martin, em excelente interpretação de Mads Mikkelsen.
Druk expõe tanto problemas familiares e sociais normais, quanto o consumo exagerado de álcool em muitas sociedades, como a dinamarquesa, mas sem tons moralistas. O que ele deseja mostrar é que o álcool ou outras substâncias alteram a nossa percepção da vida, em maior ou menor grau, para o bem e para o mal. A fotografia do filme é muito bem feita e a câmera, em vários momentos, parece ser dirigida por um diretor bebum, o que não é o caso diante das entrevistas dadas por um dos representantes do movimento Dogma.
Druk está disponível no NOW.
*Agradeço a indicação da obra, ao grande cinéfilo e amigo Leonardo Gandara.
Rafhael Frattari
Sócio fundador do VLF Advogados, responsável pela área tributária