A responsabilidade civil do intermediador digital de serviços e produtos por fraudes praticadas por terceiros
Fernanda de Figueiredo Gomes e Henrique Coelho da Rocha Gobbi
A evolução tecnológica que possibilitou a criação e a popularização da Rede Mundial de Computadores acabou por alterar, de maneira significativa e permanente, o modelo de consumo na sociedade contemporânea, que foi potencializado pelas restrições decorrentes da pandemia da COVID-19, com um aumento de 75% nas vendas (1), sendo certo que as alterações por ele proporcionadas ainda não foram contempladas na legislação.
O Código de Defesa do Consumidor (“CDC”) (2) foi publicado em 11 de setembro de 1990, isto é, alguns anos antes da popularização da internet e da instalação dos precursores do e-commerce no país. Nesse sentido, é certo que o diploma legal não contempla as inúmeras peculiaridades do modelo, cabendo à legislação extravagante, principalmente ao Marco Civil da Internet, Lei Geral de Proteção de Dados, doutrina e à jurisprudência a difícil tarefa de compatibilizá-lo com as características da comercialização no meio virtual.
Uma das principais alterações proporcionadas pelo e-commerce é a introdução da figura do intermediador, que modifica por completo as estruturas da relação jurídica tradicional. Em que pese existir empresas que promovam a comercialização de seus produtos e serviços em plataformas próprias, muitos ofertantes se utilizam de plataformas operadas por intermediadores para aproximá-los dos potenciais adquirentes.
Atualmente a tarefa de identificar os sites intermediadores se tornou complexa, pois não apenas as plataformas clássicas de intermediação de compras ostentam essa posição, uma vez que temos os marketplaces inseridos em outras plataformas, como, por exemplo nas redes sociais.
Definir os contornos jurídicos da relação do intermediador com o adquirente e com o ofertante, bem como os limites de sua responsabilidade quanto a cada um deles é questão de enorme complexidade, que tem sido objeto de frequente debate doutrinário e jurisprudencial.
Em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) debruçou-se sobre alguns aspectos da questão controvertida e trouxe entendimentos com potencial para contribuir com o debate e influenciar os Tribunais de segunda instância na análise de demandas do gênero.
Trata-se do Recurso Especial nº 1.880.344/SP, de Relatoria da Ministra Nancy Andrighi (3). A ação que originou o recurso foi ajuizada por um ofertante que anunciou no Mercado Livre um celular usado e foi vítima de um golpe perpetrado por um terceiro que lhe enviou um e-mail fazendo-se passar pelo Mercado Livre e o convenceu a enviar o produto antes de receber a devida contraprestação.
Logo, na ocasião, o STJ foi chamado a se manifestar sobre a natureza e o regime de responsabilidade da relação entre o ofertante e o intermediador, em específico.
Em primeiro lugar, na linha do que já vinha sendo defendido pela doutrina majoritária, tal como a Professora Cláudia Lima Marques (4), o acórdão entendeu pela adequação do intermediador à condição de fornecedor. Isto porque, a disponibilização do espaço virtual para facilitação de vendas e contratação de serviços se enquadra perfeitamente no conceito de serviço e acontece mediante remuneração, ainda que indireta.
Quanto à possibilidade de caracterização do ofertante como consumidor, questão mais controversa na doutrina, a resposta do STJ foi um sonoro “depende”. É que, uma vez que a plataforma é utilizada tanto por empresários habituais (B2C) quanto por ofertantes ocasionais (C2C) é impossível fornecer uma resposta objetiva, sendo imprescindível que se analise a condição do ofertante envolvido no litígio. No caso em questão, tendo em vista tratar-se de um ofertante eventual que pretendia negociar pontualmente um celular usado, a condição de consumidor foi reconhecida e o CDC foi aplicado.
Por consequência, em que pese a atipicidade contratual das plataformas de e-commerce, o regime de responsabilidade aplicável é o de responsabilidade objetiva, cabendo analisar tão somente a presença do dano, da falha na prestação dos serviços e do nexo de causalidade entre o prejuízo e o vício do serviço.
O STJ entendeu que, nesse caso, em que a fraude é perpetrada exclusivamente por meio de e-mail, sem que o terceiro se utilize das ferramentas disponibilizadas e controladas pelo intermediador, não restaria caracterizados o vazamento de dados, a falha de segurança ou o nexo de causalidade.
Conforme se depreende do acórdão, a fraude, quando praticada em aplicativos externos, não guarda conexidade com a atividade de intermediação e, por esse motivo, caracteriza-se como fortuito externo, suficiente para romper o nexo causal entre o dano e o fornecedor.
A decisão é paradigmática, especialmente no que concerne à definição do parâmetro para se avaliar a natureza da relação jurídica havida entre o intermediador e o ofertante, qual seja, a verificação da profissionalidade daquele ofertante.
No entanto, a limitação de responsabilidade, que prevaleceu nesse caso específico, não pode ser generalizada. A condição que fez com que fosse reconhecido o rompimento do nexo causal foi justamente a ausência de utilização das ferramentas da plataforma para a prática da fraude.
Assim, é certo que essa decisão não pode ser estendida para os casos em que o terceiro se utiliza da plataforma para a prática da fraude ou para os casos em que o adquirente tenha sido lesado pelo ofertante. Esta última questão, inclusive, é extremamente controversa e ainda aguarda definição pelos Tribunais Superiores.
Diante disso, é evidente que se trata de acórdão relevante que começa a desvendar a complexidade da questão da responsabilidade dos intermediadores no e-commerce. Contudo, aplica-se a uma hipótese limitada, de forma que ainda resta muito a ser esclarecido sobre esse assunto.
Fernanda de Figueiredo Gomes
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Henrique Coelho da Rocha Gobbi
Coordenador da Equipe de Direito Consumerista do VLF Advogados
(1) E-COMMERCE: o setor que cresceu 75% em meio à pandemia. Disponível em: https://www.consumidormoderno.com.br/2021/02/19/e-commerce-setor-cresceu-75-crise-coronavirus/. Acesso em: 22 abr. 2021.
(2) BRASIL. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 22 abr. 2021.
(3) STJ. REsp nº 1.880.344/SP. Acórdão publicado em 11.3.2021. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202001493261&dt_publicacao=11/03/2021. Acesso em: 15 abr. 2021.
(4) MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 8. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.