As controvérsias do teletrabalho após um ano de pandemia da COVID-19
Mariane Andrade Monteiro
O Tribunal Superior do Trabalho (“TST”) conceitua o home office como espécie de teletrabalho, utilizando este termo específico para se referir ao trabalho realizado em casa, mediante o uso de recursos tecnológicos, enquanto o teletrabalho abrange tanto o trabalho realizado em casa, como em outros locais que não seja a empresa (1). Fato é que todo o regramento aplicável ao teletrabalho também se destina ao home office.
Os dados das Varas do Trabalho demonstram que os casos de trabalhadores reclamando das condições do home office aumentaram em 270% entre março e agosto de 2020, se comparados ao mesmo período em 2019 (2). Do mesmo modo, o Ministério Público do Trabalho (“MPT”) divulgou que no período compreendido entre março de 2020 e março de 2021, a Instituição recebeu mais de 40 mil denúncias relacionadas à COVID-19 (3), dentre elas, queixas relacionadas ao cumprimento de jornadas extenuantes e condições inadequadas de trabalho daqueles que estão submetidos ao trabalho remoto.
O principal problema do sistema remoto certamente se relaciona com o pagamento ou não das horas extras. Neste ponto, o artigo 62, inciso III, da CLT, prevê que os empregados em regime de teletrabalho estão excluídos das regras relacionadas ao controle de jornada e pagamento das horas extras.
Todavia, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (“ANAMATRA”) aprovou o Enunciado 21 (4), dispondo que nos casos em que for possível o controle indireto da jornada de trabalho pelo empregador, ainda que por meios informatizados ou telemáticos, haverá incidência do princípio do contrato realidade e, portanto, pagamento das horas extras trabalhadas.
A jurisprudência trabalhista inclusive reconhece a possibilidade de controle de jornada de trabalho pelo empregador por todo tipo de meio informatizado de comando, como celular corporativo, login e logoff de sistema, dentre outros.
Na mesma linha, o MPT editou a Nota Técnica nº 17/2020, na qual recomendou às empresas a observância da jornada contratual nas atividades em home office, bem como a adoção de mecanismos de controle da jornada nesse regime. Entretanto, entende-se que o MPT extrapolou o seu papel orientador, indicando a adoção de medida que diverge do artigo 62, inciso III, da CLT, uma vez que a presunção legal é de inviabilidade do controle de jornada à distância.
É certo que as novas tecnologias possibilitam a flexibilização do trabalho, permitindo ao empregado trabalhar à distância, facilitando as comunicações em grupo. Mas elas também podem permitir o controle de jornada e contribuir para o seu elastecimento exagerado, inclusive em períodos de descanso.
Neste ponto, é importante que as empresas se atentem aos limites do “tempo virtual” em que os empregados que atuam em regime de teletrabalho estão à disposição do seu empregador, sob pena de ver violado o direito à desconexão – tanto físico ou mental – do ambiente de trabalho, que é inerente a todo empregado e reflete na sua qualidade de vida e até mesmo na produtividade (5).
Outro aspecto polêmico em relação ao home office refere-se à ausência de previsão legal sobre de quem é a obrigação de prover os equipamentos necessários à prestação dos serviços. O artigo 75-D da CLT deixa a questão em aberto, estabelecendo apenas que a responsabilidade pelo fornecimento, aquisição ou manutenção de tais equipamentos deverão ser previstas em contrato escrito, podendo ser divididos entre empregado e empregador, ou, ainda, custeados por apenas uma das partes.
Apesar de existir a referida disposição legal, há quem defenda que por se tratar de ferramenta de trabalho, os custos devem ser arcados pelo empregador em razão do princípio da alteridade. A ANAMATRA, por exemplo, prevê em seu Enunciado 70 (6), que o contrato de trabalho deve dispor sobre a estrutura e a forma de reembolso de despesas do teletrabalho, mas não pode transferir para o empregado seus custos, que devem ser suportados exclusivamente pelo empregador.
A MP 927/2020, editada para enfrentamento do estado de calamidade pública decorrente do coronavírus, previa que, caso o empregado não possuísse a infraestrutura necessária à prestação do serviço em regime de home office, o empregador deveria fornecer os equipamentos em comodato ou pagá-los. Em que pese a referida MP ter perdido a validade em 19 de julho de 2020, alguns juristas sustentam que suas disposições devem ser mantidas por analogia até que sobrevenha nova legislação específica.
Diante dos impasses citados acima e da ausência de regulamentação específica para disciplinar essa “nova” modalidade de trabalho à distância, existem vários projetos de lei que se propuseram a regulamentar o tema e seguem listados abaixo.
PL 3.915/20: obriga o empregador a disponibilizar equipamentos de tecnologia e os serviços de dados e de telefonia necessários ao teletrabalho;
PL 2.251/20: passa para a empresa a responsabilidade pelo acidente de trabalho;
PL 4.931/20: detalha regras para regime misto de trabalho;
PL 4.831/20: prevê que a jornada no teletrabalho atenderá as mesmas normas do trabalho presencial;
PL 1.247/20: reduz impostos para compras de equipamentos eletrônicos por quem comprovar trabalhar em casa;
PL 5581/20: dispõe que os empregados em home office não terão direito a horas extras, desde que não haja estabelecimento de jornada no contrato de trabalho. Para os casos de determinação expressa de horário, a empresa deverá realizar controle de horas por qualquer meio idôneo.
Outros temas que margeiam o teletrabalho permanecem controvertidos, como os que se relacionam ao reconhecimento do acidente de trabalho ou doença ocupacional no âmbito da residência e a obrigatoriedade da vacinação contra COVID-19 como condição para o empregado retornar ou iniciar o trabalho presencial.
Quanto aos benefícios previstos em normas coletivas, a questão não gera tantas dúvidas de que todos devem ser mantidos, independente do empregado trabalhar sob o regime remoto ou presencial. Isso inclui o vale-refeição e o vale-alimentação. Apenas o vale-transporte, que possui lei própria, não deve ser garantido, já que ele pressupõe o deslocamento casa-trabalho.
Enquanto não sobrevir regulamentação específica que resolva os impasses ora tratados, vale lembrar que o artigo 8º da CLT evidencia a preponderância do interesse público sobre o privado. Nestes termos:
Art. 8º - As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. (7)
E neste sentido também deve ser entendido que a flexibilização dos direitos trabalhistas por meio de acordos entre empregado e empregador podem servir como mecanismo para manutenção dos empregos e atenuação dos reflexos econômicos e sociais decorrentes da pandemia do coronavírus, possibilitando a preservação do interesse público e a continuidade da atividade empresarial.
Como visto, ao se falar em home office, um dos poucos consensos que persiste na Justiça do Trabalho é de que a modalidade remota de trabalho necessita com urgência de regulamentação específica, moderna, que se conecte com os avanços tecnológicos e a crescente adesão ao teletrabalho.
Mais informações sobre o tema podem ser obtidas com a equipe trabalhista do VLF Advogados.
Mariane Andrade Monteiro
Advogada da Equipe Trabalhista do VLF Advogados
(1) TST. Teletrabalho: o trabalho de onde você estiver. Disponível em: https://www.tst.jus.br/documents/10157/2374827/Manual+Teletrabalho.pdf/e5486dfc-d39e-a7ea-5995-213e79e15947?t=1608041183815. Acesso em: 19 abr. 2021.
(2) RODRIGUES, Eduardo. Ações envolvendo teletrabalho sobem 270% na pandemia e parlamentares propõem novas regras. Economia. O Estado de São Paulo. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,acoes-envolvendo-teletrabalho-sobem-270-na-pandemia-e-parlamentares-apresentam-projetos-de-lei,70003480480. Acesso em: 19 abr. 2021.
(3) MPT. Instituição ajuizou 468 ações civis públicas, firmou 443 termos de ajuste de conduta e expediu 14.084 recomendações. Disponível em: https://mpt.mp.br/pgt/noticias/em-1-ano-mpt-recebe-40-mil-denuncias-ligadas-a-covid-19. Acesso em: 19 abr. 2021.
(4) ANAMATRA. Enunciado 21. p. 66. Disponível em: https://www.anamatra.org.br/attachments/article/27175/livreto_RT_Jornada_19_Conamat_site.pdf. Acesso em: 19 abr. 2021.
(5) MELO, Sandro. Teletrabalho, Controle De Jornada E Direito À Desconexão. 2019. Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/123429/2019_melo_sandro_teletrabalho_controle.pdf?sequence=6&isAllowed=y. Acesso em: 19 abr. 2021.
(6) ANAMATRA. Enunciado 70. p. 42. Disponível em: https://www.anamatra.org.br/attachments/article/27175/livreto_RT_Jornada_19_Conamat_site.pdf. Acesso em: 19 abr. 2021.
(7) CONSOLIDAÇÃO das Leis Trabalhistas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em: 19 abr. 2021.