A utilização da inteligência artificial pelo Poder Judiciário como instrumento de celeridade e efetividade
Fernanda de Figueiredo Gomes
Nos últimos anos foi identificada na sociedade brasileira uma marcante tendência à litigiosidade. De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (“CNJ”) (1), em 2019, havia impressionantes 77,1 milhões de processos em tramitação em todos os tribunais nacionais, o que corresponde a um acervo médio de 6.962 processos sob a responsabilidade de cada magistrado no país.
Por outro lado, é certo que o acesso à justiça representa uma garantia constitucional, prevista pelo art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal (2) e, em interpretação sistemática, deve abranger não apenas o simples direito de acessar a jurisdição, mas o direito a uma tutela jurisdicional célere e efetiva.
Nesse cenário, uma das grandes questões a serem solucionadas em matéria de contencioso é a compatibilização dos deveres de celeridade e efetividade com o enorme volume de processos que sobrecarrega os órgãos do Poder Judiciário.
A solução para essa questão está longe de ser simples, contudo, não há dúvidas de que ela deve passar pelo aproveitamento de tecnologias com potencial para desburocratizar e agilizar a tramitação processual. Dentre elas encontra-se a inteligência artificial.
O conceito de inteligência artificial ainda está em desenvolvimento e é objeto de debate entre os especialistas. No entanto, geralmente, considera-se como inteligência artificial as máquinas com capacidade para aprender, raciocinar e agir de forma autônoma quando colocadas diante de situações novas com padrões semelhantes a situações anteriores (3).
Essa tecnologia possui potencial para automatizar funções repetitivas e pouco criativas relacionadas à tramitação do processo, diminuindo o tempo em que elas tradicionalmente são executadas. Trata-se, portanto, de mecanismo que visa agregar eficiência na tramitação dos processos judiciais, especialmente nos litígios de massa, para proporcionar a redução de custos e um melhor aproveitamento do tempo dos servidores e magistrados (4).
Boa parte dos órgãos do Poder Judiciário já se apercebeu da utilidade dessas máquinas inteligentes. Em pesquisa de abrangência nacional, coordenada pelo Ministro Luis Felipe Salomão (5), a FGV concluiu que dezoito das vinte e sete unidades federativas nacionais já contam com projetos de inteligência artificial. No total, são mais de sessenta projetos em elaboração no país, sendo que a maior parte deles foi desenvolvida nos anos de 2019 e 2020.
Os projetos de inteligência artificial já existentes nos tribunais apresentam diversas funcionalidades tais como agrupamento por similaridade, classificação dos processos por assunto, tratamento de demandas de massa, indicação de prescrição, transcrição de audiências e até mesmo sugestão de minutas.
Nota-se, portanto, que, embora ainda esteja em fase inicial, a inteligência artificial já é uma realidade no Judiciário brasileiro. Nesse sentido, a tendência é que haja uma automação progressiva do procedimento de tramitação e gestão processual, o que certamente trará ganhos de eficiência e celeridade.
No entanto, não se pode ignorar que há importantes limitações para os atos que podem ser realizados por intermédio da inteligência artificial. A expansão desses mecanismos não pode se dar mediante o sacrifício de valores igualmente caros ao ordenamento jurídico pátrio como o dever de fundamentação, o contraditório e o juiz natural.
A inteligência artificial possui função analítica e não jurídica e, por esse motivo, em nenhuma hipótese pode substituir a tarefa do julgador, ou seja, funcionar como instrumento decisório. Embora se admita a possibilidade de programas que sugiram minutas visando agilizar o processo de redação, a elaboração do raciocínio jurídico, a partir dos dados do caso concreto, é função exclusiva do magistrado.
Efetivamente, a função da inteligência artificial é de natureza acessória. Ela se presta a agilizar e automatizar procedimentos burocráticos e recorrentes justamente para que os magistrados e servidores tenham mais tempo para se dedicar ao raciocínio jurídico e ao procedimento decisório, que deve observar o dever de fundamentação e o direito das partes de influenciar no julgamento por meio do contraditório.
Ante o exposto, conclui-se que a inteligência artificial promove a automação de procedimentos repetitivos e burocráticos, aumentando a eficiência e a celeridade da tramitação processual. E a sua implementação deve estar sempre em sintonia com as garantias constitucionais do contraditório e da fundamentação das decisões, não podendo ser utilizada com função decisória, que se trata de atribuição privativa do julgador.
Fernanda de Figueiredo Gomes
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) CNJ. Justiça em Números 2020: ano-base 2019. Brasília, 2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf. Acesso em: 17 mai. 2021.
(2) BRASIL. Constituição da República Federal do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 17 mai. 2021.
(3) MARQUES, Ricardo Dalmaso. Inteligência artificial e direito: o uso da tecnologia na gestão de processos no sistema brasileiro de precedentes. Revista de Direito e Novas Tecnologias, v. 3, abr-jun. 2019.
(4) MARTINS, Patrícia Helena Marta; KILMAR, Sofia Galvão; SIMÕES, Vitória Nishikawa. Inteligência Artificial (I.A.) aplicada no Poder Judiciário. Revista de Direito e Novas Tecnologias, v. 9, out-dez. 2020.
(5) FGV. Tecnologia aplicada à gestão dos conflitos no âmbito do Poder Judiciário brasileiro com ênfase em inteligência artificial. Coordenação: Luis Felipe Salomão. Disponível em: https://ciapj.fgv.br/sites/ciapj.fgv.br/files/estudos_e_pesquisas_ia_1afase.pdf. Acesso em: 17 mai. 2021.