O papel e as responsabilidades do auditor independente
Patrícia Bittencourt e Paulo Vítor Ângelo
A auditoria independente, na medida em que compreende o exame e a avaliação sistemática das demonstrações contábeis de determinada entidade, é ferramenta indispensável à confiabilidade do mercado de títulos e valores mobiliários.
Nos termos do Pronunciamento Técnico CPC 26 (R1) do Comitê de Pronunciamentos Contábeis, as demonstrações contábeis constituem uma “representação estruturada da posição patrimonial e financeira e do desempenho da entidade”, cujo objetivo é “proporcionar informação acerca da posição patrimonial e financeira, do desempenho e dos fluxos de caixa da entidade que seja útil a um grande número de usuários em suas avaliações e tomada de decisões econômicas”.
Conquanto se tratem de relatórios produzidos unilateralmente pela entidade auditada, é papel dos auditores independentes proceder à análise das demonstrações contábeis em conjunto com os livros, registros, procedimentos, rotinas e demais documentos vinculados à sua elaboração, objetivando mensurar a sua exatidão e fornecer aos usuários da informação contábil uma opinião imparcial sobre a sua adequação, fundamentada em normas e princípios próprios.
A finalidade precípua da auditoria, assim, é dar convicção de que os registros e as demonstrações contábeis refletem a situação patrimonial real da entidade auditada, bem como as variações sobre ela verificadas. É inegável que a auditoria independente exerce, desta feita, uma relevante função na defesa dos interesses coletivos, tanto da entidade auditada quanto do mercado. Isso porque, através dos pareceres emitidos, os auditores balizam as ações de todos os usuários da informação contábil, como acionistas e demais stakeholders (e.g. administradores, investidores, financiadores, fornecedores, trabalhadores, governo etc.) (1). Vale anotar, contudo, que embora não se destine propriamente à descoberta de fraudes, erros ou irregularidades, frequentemente tais fatos chegam a ser apurados durante o trabalho de auditoria.
No Brasil, a legislação vigente prevê a obrigatoriedade de auditoria independente às sociedades anônimas de capital aberto, assim como àquelas sociedades que exerçam determinadas atividades regulamentadas independentemente do modelo adotado para sua constituição, tais como instituições financeiras, seguradoras, administradoras de planos de previdência complementar, operadoras de serviços de telefonia e energia elétrica, dentre outras (2).
Importante discussão atual versa sobre a responsabilidade civil dos auditores independentes por eventuais prejuízos causados em razão de uma decisão de investimento fundamentada nos pareceres por eles emitidos. Relevantes questões jurídicas vêm sendo levantadas quanto à extensão da responsabilidade dos auditores, sua natureza e eventuais limites aos pedidos a eles opostos ou mesmo às eventuais teses de defesa que lhes seriam permitidas, estando a matéria em debate inclusive no âmbito internacional (3).
Um recente precedente da 43ª Vara Cível da Comarca de São Paulo, contudo, deve levar a questão da responsabilidade civil dos auditores independentes a exame pelos Tribunais brasileiros nos próximos anos (4). O fundamento legal para a responsabilização, no ordenamento jurídico brasileiro, reside, especialmente, no art. 26 da Lei nº 6.385/1976, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários (5). Em seu § 2º, o dispositivo em comento preceitua que, no exercício de suas funções, “as empresas de auditoria contábil ou auditores contábeis independentes responderão, civilmente, pelos prejuízos que causarem a terceiros em virtude de culpa ou dolo (...)”.
Importa destacar que a eventual responsabilidade civil dos auditores independentes não se presta ao ressarcimento dos investidores por eventuais prejuízos decorrentes do risco inerente às atividades de investimento em mercados financeiros e de circulação de títulos e valores mobiliários. A este respeito, destaca-se o entendimento do Juízo da 43º Vara Cível nos autos da Ação de Indenização nº 1046770-40.2014.8.26.0100: “Nesse ponto, podemos perceber que a obrigação do auditor independente é muito clara perante a comunidade de investidores. O auditor tem o dever de prestar informações autênticas, verídicas e reais e não se exime de responsabilidade pelo fato de os administradores da companhia terem inserido informações inexatas nos balanços auditados. Aliás, é exatamente para isso que as auditorias existem, para aferir a autenticidade ou a inexatidão dos dados constantes dos balanços levantados pelas companhias abertas”.
A discussão ainda é incipiente em nosso país. No entanto, deverá despertar a atenção das grandes entidades de auditoria, provocando uma profunda reflexão quanto ao rigor dos procedimentos atualmente adotados para a emissão de pareceres sem ressalvas.
Patrícia Bittencourt
Advogada da equipe de Contencioso Empresarial do VLF Advogados.
Paulo Vítor Ângelo
Advogado da equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados.
(1) De acordo com a nota explicativa nº 9/78, referente à Instrução CVM nº 04/78, editada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM): “A figura do auditor independente é imprescindível à credibilidade do mercado, representando um instrumento de inestimável valor na proteção do investidor, na medida em que sua função é zelar pela fidedignidade e confiabilidade das demonstrações financeiras das companhias abertas. A exatidão e clareza dessas demonstrações financeiras, a divulgação em notas explicativas de informações indispensáveis a uma visualização da situação patrimonial e financeira e dos resultados da companhia, dependem de um sistema de auditoria eficaz e, principalmente, da tomada de consciência do auditor independente quanto ao seu papel”.
(2) Destaca-se que a auditoria independente em companhias abertas já estava prevista no texto original da Lei de Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404/1976), em seu art. 177: “Art. 177. A escrituração da companhia será mantida em registros permanentes, com obediência aos preceitos da legislação comercial e desta Lei e aos princípios de contabilidade geralmente aceitos, devendo observar métodos ou critérios contábeis uniformes no tempo e registrar as mutações patrimoniais segundo o regime de competência. (...) § 3º As demonstrações financeiras das companhias abertas observarão, ainda, as normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários, e serão obrigatoriamente auditadas por auditores independentes registrados na mesma comissão”.
(3) A responsabilidade dos auditores independentes foi objeto de discussão no maior procedimento falimentar já instaurado nos Estados Unidos da América, do banco de investimentos Lehman Brothers, iniciada pelo procedimento do Capítulo 11 da Legislação falimentar estadunidense em 2008. Diversos investidores do Lehman Brothers ingressaram com ação para apurar a responsabilidade civil da Ernst & Young, sociedade de auditoria independente responsável pelo exame das demonstrações do banco, pelos prejuízos causados pela decisão de investir na mencionada instituição financeira. A matéria da Ação não chegou a ter seu mérito decidido em Juízo, na medida em que a Ernst & Young chegou a um acordo com os investidores, de uma indenização estimada em US$99.000.000,00 (noventa e nove milhões de dólares americanos). Alguns links sobre o caso:
http://www.reuters.com/article/2013/10/18/us-lehmanbros-investors-idUSBRE99H12W20131018 e
http://www.bloomberg.com/news/articles/2013-11-28/ernst-young-settles-lehman-investor-suit-for-99-mln.
(4) Trata-se de Ação de Indenização ajuizada por WO Agropecuária Ltda. em desfavor da KPMG Auditores Independentes, por alegados prejuízos decorrentes de investimentos no Banco BVA S.A., autuada sob o nº 1046770-40.2014.8.26.0100, em trâmite perante a 43ª Vara Cível do Foro Central Cível da Comarca de São Paulo/SP.
(5) Art. 26. Somente as empresas de auditoria contábil ou auditores contábeis independentes, registrados na Comissão de Valores Mobiliários poderão auditar, para os efeitos desta Lei, as demonstrações financeiras de companhias abertas e das instituições, sociedades ou empresas que integram o sistema de distribuição e intermediação de valores mobiliários. § 1º - A Comissão estabelecerá as condições para o registro e o seu procedimento, e definirá os casos em que poderá ser recusado, suspenso ou cancelado. § 2º - As empresas de auditoria contábil ou auditores contábeis independentes responderão, civilmente, pelos prejuízos que causarem a terceiros em virtude de culpa ou dolo no exercício das funções previstas neste artigo. § 3º Sem prejuízo do disposto no parágrafo precedente, as empresas de auditoria contábil ou os auditores contábeis independentes responderão administrativamente, perante o Banco Central do Brasil, pelos atos praticados ou omissões em que houverem incorrido no desempenho das atividades de auditoria de instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil. § 4º Na hipótese do parágrafo anterior, o Banco Central do Brasil aplicará aos infratores as penalidades previstas no art. 11 desta Lei.