Prazo para reclamar abatimento proporcional do preço em contratos de venda ad mensuram decai em um ano
Mariana Cançado Cavalieri, Domirí Gonçalves e Gabrielle Aleluia
O Contrato de Compra e Venda de bem imóvel é um instrumento que faz parte do nosso cotidiano e, justamente por regular relações sociais, possui aspectos relevantes que, de tempos em tempos, são objetos de discussões no âmbito jurídico.
Regulada pelo Código Civil, a compra e venda de bem imóvel nada mais é que o compromisso firmado entre duas partes, por meio do qual uma delas se obriga a transferir o domínio de um imóvel à outra, mediante contraprestação pecuniária previamente ajustada (art. 481, CC/2002).
Por envolver obrigações recíprocas, a compra e venda é sempre bilateral, onerosa e consensual e somente se efetiva com o registro da transferência no Cartório de Registro de Imóveis competente. Basicamente, existem dois tipos de venda que merecem atenção no universo das transações imobiliárias: ad corpus (“por inteiro”) e ad mensuram.
A primeira é utilizada nos Contratos de Compra e Venda em que as medidas do imóvel têm importância secundária. Isto é, as referências à metragem do bem são meramente enunciativas, já que a área não condiciona o preço. Já nos contratos ad mensuram, o preço de venda é estipulado com base na medida exata do imóvel objeto da negociação.
Justamente por trazer consequências jurídicas distintas, é importante que haja a indicação expressa da modalidade de venda no contrato firmado entre as partes.
Sobre o tema e seus reflexos jurídicos, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) decidiu, recentemente, qual o prazo para a parte exigir o complemento da área, reclamar a resolução do contrato ou o abatimento proporcional do preço nos contratos de compra e venda ad mensuram (REsp 1.890.327/SP).
Para a Terceira Turma do STJ, em casos de venda ad mensuram em que as dimensões do imóvel adquirido não correspondem às noticiadas pelo vendedor, deve-se aplicar o prazo decadencial de um ano previsto no art. 501 do CC/2002 (1), que assim dispõe:
Art. 500. Se, na venda de um imóvel, se estipular o preço por medida de extensão, ou se determinar a respectiva área, e esta não corresponder, em qualquer dos casos, às dimensões dadas, o comprador terá o direito de exigir o complemento da área, e, não sendo isso possível, o de reclamar a resolução do contrato ou abatimento proporcional ao preço.
(...)
Art. 501. Decai do direito de propor as ações previstas no artigo antecedente o vendedor ou o comprador que não o fizer no prazo de um ano, a contar do registro do título.
No recurso, aviado contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo que acolheu a prejudicial de decadência do pedido de restituição do valor pago a maior pelo adquirente em venda realizada na modalidade ad mensuram, o recorrente (comprador) defendeu que a entrega de vaga de garagem em metragem inferior à pactuada configuraria flagrante inadimplemento contratual, razão pela qual deveria ser aplicado o prazo prescricional geral de dez anos previsto no art. 205 do Código Civil (1).
Antes de adentrar na questão processual posta sob apreciação, porém, a Ministra Relatora Nancy Andrighi relembrou o julgamento do REsp 1.488.239/PR, no qual foi firmado o entendimento de que a entrega de bem imóvel em metragem diversa da contratada não poderia ser considerada vício oculto, justamente por se tratar de vício de fácil constatação, cuja verificação dependeria de mera medição das dimensões do imóvel. O vício relativo a erro na metragem do imóvel, portanto, foi considerado vício aparente.
Também relembrou que as disposições constantes do capítulo relativo à “Compra e Venda” do Código Civil sobre os prazos decadenciais (artigos 500 e 501 do CC/02) se referem às hipóteses em que a venda do imóvel é realizada na modalidade ad mensuram, ou seja, quando, em regra, será do alienante a responsabilidade por eventual diferença encontrada entre a área estipulada no contrato e a área efetivamente existente.
Esclareceu, ainda, as hipóteses de aplicação da legislação consumerista e civilista, pontuando que o CDC disciplina prazos decadenciais para a parte reclamar por vícios de qualidade ou quantidade do produto ou serviço – sendo eles aparentes ou ocultos (art. 26, CDC) –, ao passo que o Código Civil estabelece o prazo decadencial para a parte exigir o complemento da área, reclamar a resolução do contrato ou o abatimento proporcional do preço quando as dimensões do imóvel adquirido não correspondem às noticiadas pelo vendedor, nos casos de venda na modalidade ad mensuram (artigos 500 e 501 do CC/02).
Concluiu, ao final, que para definir a legislação aplicável, deveria ser aplicada a Teoria do Diálogo das Fontes, segundo a qual o ordenamento jurídico deve ser interpretado de forma sistemática e coordenada, de modo que as normas jurídicas não se excluam, mas se complementem.
Isso porque, apesar de se tratar, especificamente, de venda ad mensuram (cujo prazo decadencial de um ano é expresso no Código Civil), a relação havida entre as partes seria também de consumo, por se tratar de compra e venda firmada entre construtora e adquirente (consumidor), o que atrairia a aplicação do art. 26, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor, que prevê o prazo de noventa dias para reclamar pelos vícios aparentes em produtos duráveis (conforme já decidido pelo STJ no âmbito do REsp 1.488.239/PR).
Assim, com vistas a aplicar o prazo mais favorável ao consumidor/recorrente, a Ministra Relatora entendeu que deveria ser aplicado o prazo decadencial de um ano previsto no Código Civil, contado da data de registro da compra e venda do imóvel. A inobservância do mencionado prazo, portanto, implicaria a perda do direito potestativo de exigir a complementação da área, a resolução contratual e o abatimento do preço (2).
O entendimento adotado pela Ministra Relatora, porém, não é unânime. Para o Ministro Moura Ribeiro, a pretensão deduzida pelo recorrente – restituição de parte do valor pago pela garagem em razão da metragem inferior à que foi contratada – teria natureza eminentemente indenizatória, circunstância que atrairia a aplicação do prazo prescricional e não decadencial. Esta foi, inclusive, a tese utilizada pelo próprio recorrente.
De acordo com essa teoria, nos casos em que se pretende indenização pela inexecução (ou má-execução) do contrato, a ação é tipicamente condenatória, motivo pelo qual estaria sujeita ao prazo de prescrição. Já nas hipóteses em que a pretensão é o abatimento proporcional no preço, a complementação da área ou a resolução do contrato, a discussão estaria relacionada ao direito potestativo do consumidor, que tem natureza constitutiva (positiva ou negativa) e está sujeita ao prazo de decadência.
Em se tratando de entendimento minoritário e considerando o entendimento reafirmado pelo STJ de que a diferença na metragem da área de imóvel adquirido na modalidade ad mensuram constitui vício aparente, o que atrai para o comprador a responsabilidade pela sua conferência, é prudente que isso seja feito imediatamente, para que se possa exercer o direito de reclamar a complementação da área, o abatimento do preço ou a resolução do contrato em até noventa dias da entrega do bem, preferencialmente (3), ou no máximo, em até um ano do registro do título.
Mariana Cançado Cavalieri
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Domirí Gonçalves
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Gabrielle Aleluia
Coordenadora da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.
(2) ROSENVALD, Nelson. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.01.2002 / coord. Cezar Peluso. 8 ed. rev. e atual. São Paulo: Manole, 2014, p. 530.
(3) Há precedentes do STJ que aplicaram o prazo de 90 dias do CDC para o consumidor reclamar a diferença da área, a partir da entrega efetiva do imóvel (REsp 1.488.239/PR, 3ª Turma, DJe 07/03/2016; REsp 1.534.831/DF, 3ª Turma, DJe 02/03/2018 e REsp 1.717.160/DF, 3ª Turma, DJe 26/03/2018).