O Marco Legal das Startups e a regulamentação do empreendedorismo inovador
Fernanda Vidigal e Pedro Ernesto Rocha
Em 1º de junho de 2021, após cerca de 2 (dois) anos de discussões e trâmites legislativos, foi sancionada a Lei Complementar nº 182/2021 (“LC nº 182”) (1), já comumente chamada de “Marco Legal das Startups”. A LC nº 182 entra em vigor 90 (noventa) dias após a sua publicação e tem como objetivos apresentar medidas de fomento ao ambiente de negócios e atrair investimentos para o empreendedorismo inovador.
O crescimento exponencial do modelo de startups nas últimas décadas não é novidade. Tendo surgido no final do século passado nos Estados Unidos em virtude da alta das ações de negócios tecnológicos e do desenvolvimento da rede de internet, hoje as startups estão presentes em todo o mundo. No Brasil, de 2015 a 2020, o número de startups aumentou em mais de 200% e, atualmente, já foram mapeados pelo menos 13.400 empreendimentos que se enquadram neste modelo (2).
Os negócios inovadores representam forte tendência global, ocupando uma posição cada vez mais relevante para o crescimento do mercado e o desenvolvimento da sociedade. Entretanto, enfrentam severas dificuldades de sobrevivência, tendo em vista as peculiaridades desses modelos, tais como: o estágio inicial de desenvolvimento da atividade produtiva e os próprios riscos decorrentes de produtos inovadores; a ausência de um plano de negócios organizado; a falta de informação dos criadores do produto quanto ao funcionamento do mercado; a baixa disponibilidade de recursos para a produção e a ausência de formas alternativas de financiamento, considerando que empresas emergentes em geral não possuem meios de prestar garantias ou poder de barganha suficiente para firmar contratos financeiros ou empréstimos com as instituições financeiras tradicionais.
É inegável, portanto, que o constante desenvolvimento do setor de inovação demanda incentivos tanto do ponto de vista econômico, como jurídico. O Marco Legal das Startups se insere nesse cenário buscando regulamentar o modelo das startups, reconhecendo a sua relevância para alinhar o mercado brasileiro com o desenvolvimento global e visando a adaptar o arcabouço legislativo às evoluções tecnológicas.
Neste sentido, entre as principais novidades trazidas pela LC nº 182 estão: a definição de um conceito legal de startup e dos critérios para enquadrar uma organização empresarial a esse conceito; o estabelecimento de instrumentos facilitadores para o investimento em inovação; a criação de medidas de fomento à Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (“PD&I”); a autorização para a implementação de programas de ambiente regulatório experimental, o chamado sandbox regulatório; a possibilidade de licitação especial para a contratação de startups pelo Estado; e a simplificação da estrutura das sociedades anônimas, tornando este modelo societário mais acessível ao mercado de capitais por entidades de menor porte. Confira-se cada uma dessas mudanças a seguir.
Até a publicação do Marco Legal das Startups, o conceito desse modelo de empreendimento era extraído do art. 65-A da Lei Complementar nº 123/2006 (“Lei do Simples Nacional”), incluído pela Lei Complementar nº 167/2019 (“Lei das Empresas Simples de Crédito”) (3). O novo diploma, além de simplificar a sua definição, estabeleceu critérios objetivos para o enquadramento de atividades empresariais como startups – em síntese, ter receita bruta anual de até 16 (dezesseis) milhões de reais, ter até 10 (dez) anos de inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (“CNPJ”) e (i) declarar em seu ato constitutivo ou alterador a utilização de modelos de negócios inovadores para a geração de produtos ou serviços, ou (ii) se enquadrar no regime especial Inova Simples (4).
Além disso, ao regular os instrumentos de investimentos em inovação, o Marco Legal das Startups reconheceu expressamente formas de aporte de capital que não resultam em participação societária (5), diferenciando a figura do sócio da pessoa do investidor e aprimorando o conceito de investidor-anjo, também consagrado na Lei do Simples Nacional (6). Tal distinção tem como objetivo facilitar e atrair investimentos para as startups, uma vez que garante uma separação absoluta entre o investidor e a sociedade investida, impedindo que o patrimônio pessoal daquele seja atingido por dívidas desta, ainda que venha a ser determinada a desconsideração da personalidade jurídica.
No que diz respeito ao fomento aos projetos de PD&I, a LC nº 182 passou a permitir que as empresas que possuam obrigações de investimento nesses setores (pesquisa, desenvolvimento e inovação) cumpram seus compromissos por meio do aporte de recursos em startups (7). O aporte poderá ser realizado por meio de fundos patrimoniais destinados à inovação, Fundos de Investimento em Participações (“FIP”), bem como investimentos em programas, editais e concursos públicos voltados à aceleração de startups.
Outra novidade implementada pelo Marco Legal das Startups se refere à autorização concedida aos órgãos e entidades públicas com competência de regulamentação setorial para a implementação de programas de ambiente regulatório experimental. Com isso, a administração pública poderá flexibilizar regras e procedimentos burocráticos, estabelecendo condições especiais para que as pessoas jurídicas participantes do sandbox regulatório desenvolvam modelos de negócios inovadores e testem técnicas e tecnologias experimentais (8). Ressalta-se que os sandboxes já foram realizados por entidades brasileiras como o Banco Central (“BACEN”) e a Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) (9), por exemplo, para o incentivo de empreendimentos inovadores. Agora, o Marco Legal das Startups regulamenta esses programas, estimulando a sua adoção nos demais setores da administração pública.
Aproximando o Estado do ambiente econômico de inovação, a LC nº 182 ainda instituiu um regime especial de contratação de soluções tecnológicas pela administração pública, que facilita o acesso das startups a procedimentos licitatórios. Desse modo, ao mesmo tempo em que oferece uma alternativa de financiamento para as startups, impulsionando o seu crescimento e ganho de escala, a nova lei permite ao Estado buscar por modelos inovadores e tecnológicos para resolver demandas públicas.
Por fim, a LC nº 182 promoveu alterações na Lei nº 6.404/1976 (“Lei das S.A.”) a fim de facilitar a criação de sociedades anônimas de menor porte, simplificando a estrutura deste tipo societário e tornando-o mais atrativo às startups. Dentre essas alterações, podem ser destacadas: (i) a possibilidade de composição da Diretoria das companhias por apenas um membro; (ii) a realização das publicações exigidas pela Lei das S.A. de forma eletrônica pelas companhias fechadas com receita bruta anual de até 78 (setenta e oito) milhões de reais; e (iii) a substituição dos livros societários por registros mecanizados ou eletrônicos também pelas companhias fechadas com receita bruta anual de até 78 (setenta e oito) milhões de reais.
Adicionalmente a essas mudanças na própria estrutura das companhias de menor porte, a LC nº 182 estabelece que a CVM regulamente condições menos burocráticas para o seu acesso ao mercado de capitais. Assim, a opção pela forma de sociedade anônima e o alcance às distribuições públicas de valores mobiliários tende a, ao menos em tese, ampliar as possibilidades de as startups captarem investimentos.
As novidades trazidas conferem maior segurança para os empreendimentos inovadores e os tornam mais atrativos para os investidores.
No entanto, algumas críticas podem ser levantadas, especialmente no sentido de ter o legislador se omitido quanto à flexibilização de regras tributárias para incentivar a consolidação das startups. A título de exemplo, caso uma startup opte por adotar a forma de sociedade anônima, não poderá se valer do regime do Simples Nacional, que reduz e simplifica a tributação das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte. Isto é, é bem provável que os ganhos de governança e mesmo em relação ao acesso ao mercado de capitais decorrentes do modelo das companhias não compensem as respectivas onerações tributárias.
Além disso, também se observa a falta de atribuição de outros benefícios fiscais, como as alíquotas diferenciadas e a compensação dos tributos de ganho de capital para os investidores de startups. Da mesma forma, questiona-se a retirada do projeto de lei inicial da LC nº 182 de normas de cunho trabalhista que previam, por exemplo, a regulação da opção de compra de ações (stock options) pelos empregados de startups.
Assim, o Marco Legal das Startups representa um avanço para o reconhecimento da importância do modelo das startups para o mercado e o desenvolvimento socioeconômico do país, regulamentando situações que muitas vezes já vinham sendo verificadas na prática. Entretanto, ainda há caminhos a se percorrer, inclusive a fim de garantir que as novas previsões da LC nº 182 cumpram seus objetivos com efetividade, estimulando a consolidação das startups e facilitando a sua captação de investimentos.
Fernanda Vidigal
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Pedro Ernesto Rocha
Coordenador da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) BRASIL. Lei Complementar nº 182, de 1º de junho de 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp182.htm. Acesso em: 16 jun. 2021.
(2) Tais números foram retirados das pesquisas realizadas pela Associação Brasileira de Startups (“Abstartups”), disponíveis em: https://abstartups.com.br/crescimento-das-startups/ e https://abstartups.com.br/evolucao-do-ecossistema/. Acesso em: 19 jun. 2021.
(3) Tal dispositivo foi revogado pela LC nº 182, que passou a conceituar as startups nos seguintes termos: “Art. 4º São enquadradas como startups as organizações empresariais ou societárias, nascentes ou em operação recente, cuja atuação caracteriza-se pela inovação aplicada a modelo de negócios ou a produtos ou serviços ofertados”.
(4) Conforme o §1º do art. 4º da LC nº 182.
(5) “Art. 5º, §1º Não será considerado como integrante do capital social da empresa o aporte realizado na startup por meio dos seguintes instrumentos: I - contrato de opção de subscrição de ações ou de quotas celebrado entre o investidor e a empresa; II - contrato de opção de compra de ações ou de quotas celebrado entre o investidor e os acionistas ou sócios da empresa; III - debênture conversível emitida pela empresa nos termos da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976; IV - contrato de mútuo conversível em participação societária celebrado entre o investidor e a empresa; V - estruturação de sociedade em conta de participação celebrada entre o investidor e a empresa; VI - contrato de investimento-anjo na forma da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro 2006; VII - outros instrumentos de aporte de capital em que o investidor, pessoa física ou jurídica, não integre formalmente o quadro de sócios da startup e/ou não tenha subscrito qualquer participação representativa do capital social da empresa”.
(6) A LC nº 182 definiu o conceito de investidor-anjo em seu art. 2º, I, bem como alterou a redação do art. 61-A, §4º, da Lei do Simples Nacional, que já tratava desta figura, passando a prever, especialmente, a possibilidade de o investidor-anjo (i) participar nas deliberações sociais em caráter consultivo; (ii) exigir dos administradores as contas de sua administração, bem como o inventário, o balanço patrimonial e o balanço de resultado econômico; e (iii) examinar, a qualquer momento, os livros, os documentos e o estado do caixa e da carteira da sociedade, exceto se houver pactuação contratual que determine época própria para isso.
(7) A obrigatoriedade de investimentos em PD&I está presente em inciativas como a Lei nº 11.196/2005 (“Lei do Bem”), Lei nº 10.973/2004 (“Lei da Inovação”) e o Programa de P&D da Agência Nacional de Energia Elétrica (“ANEEL”).
(8) Conforme o art. 11, §3º, da LC nº 182, a cada órgão ou entidade caberá, nesse caso, a definição do funcionamento do programa de ambiente regulatório experimental, determinando os critérios de seleção das participantes, bem como as normas abrangidas pela flexibilização e o período de duração do sandbox.
(9) Para saber mais sobre o sandbox regulatório da CVM, confira o artigo da Newsletter do VLF sobre o assunto, disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=786. Acesso em: 21 jun. 2021.