A parte que deixar de comparecer à audiência inaugural de conciliação (art. 334 do CPC) não deve ser punida por ato atentatório à dignidade da justiça, desde que representada por advogado com poderes
Luciana Corrêa Netto
Desde a entrada em vigor do atual Código de Processo Civil, as partes litigantes têm a oportunidade de reunirem-se para uma tentativa de composição amigável antes de se deflagrar o prazo de defesa do réu. É isso o que dispõe a norma do art. 334, caput, do referido diploma processual:
Art. 334. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.
A audiência de conciliação prévia não é novidade no ordenamento jurídico. Na Lei 9.099/1995, que rege os Juizados Especiais Cíveis (“JESP”), a designação desse ato processual é obrigatória, veja-se:
Art. 16. Registrado o pedido, independentemente de distribuição e autuação, a Secretaria do Juizado designará a sessão de conciliação, a realizar-se no prazo de quinze dias.
Como se vê, diferente da Justiça Comum, na qual a audiência de conciliação é designada apenas quando da prolação do despacho inicial pelo Juiz (art. 334 do CPC), no JESP a sua designação é automática e concomitante à distribuição da ação. Além disso, a Lei 9.099/1995 não admite que nenhuma das partes seja representada por outrem na audiência, sob pena de lhe serem aplicados os efeitos da contumácia (se for autor) ou revelia (se for réu).
Na justiça comum, por sua vez, o legislador apresentou outra forma de coibir a ausência das partes litigantes na audiência de conciliação do art. 334 do CPC.
De acordo com o §8º do art. 334 do CPC, o não comparecimento injustificado, seja do autor ou do réu, caracteriza-se como ato atentatório à dignidade da justiça e, por isso, punido com multa de até 2% (dois por cento) da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa. Esse valor é revertido em favor da União ou do Estado:
Art. 334.
[...]
§8º O não comparecimento injustificado do autor ou do réu à audiência de conciliação é considerado ato atentatório à dignidade da justiça e será sancionado com multa de até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, revertida em favor da União ou do Estado.
A sanção, a priori, parece razoável, já que a parte tem o dever de informar ao Juiz que não tem interesse em compor, seja na petição inicial (quando for o autor da ação), seja em petição específica (quando for o réu). O §4º do art. 334 dispõe que, se ambas as partes litigantes manifestarem desinteresse na conciliação, a audiência não será realizada.
A sanção prevista no Código de Processo Civil certamente irá “doer no bolso” da parte que deixar de comparecer à audiência; porém, diversamente do que ocorre no JESP, nenhuma das partes deve sofrer “sanções processuais”. Ou seja, o processo não será extinto sem resolução do mérito caso a parte autora deixe de se apresentar na audiência; tampouco o réu sofrerá os efeitos da revelia se não se fizer presente neste ato.
Com a vigência do CPC de 2015 e a incidência da norma do artigo 334, surgiu o seguinte questionamento: na Justiça Comum, assim como nos Juizados Especiais Cíveis, é obrigatório o comparecimento pessoal das partes à audiência de conciliação do art. 334 do CPC?
A dúvida é compreensível e se justifica na medida em que há inegável similitude entre a audiência de conciliação do art. 16 da Lei 9.099/1995 e a audiência de conciliação do art. 334 do CPC, atos previstos para prestigiar a composição amigável na fase inicial do processo, antes da abertura do prazo de defesa do réu.
Em 8 de junho de 2021, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), por ocasião do julgamento do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 56442, de relatoria do Ministro Raul Araújo, fixou o entendimento de que o não comparecimento pessoal da parte à audiência de conciliação do art. 334 do CPC não é passível de sanção de multa, desde que representada por advogado com poderes para transigir (1).
No caso em comento, o Mandado de Segurança foi impetrado contra decisão do d. Juízo da 1ª Vara Cível de Chapadão do Sul/MS, que, nos autos da Ação Indenizatória nº 0801411- 38.2016.8.12.0046, havia condenado a parte Impetrante ao pagamento de multa no valor de 2% (dois por cento) do valor da causa, totalizando R$29.400,00 (vinte e nove mil e quatrocentos reais), devido ao não comparecimento pessoal em audiência de conciliação.
De acordo com o voto do Ministro Relator, “o §10 do mesmo dispositivo legal abre a possibilidade de a parte se fazer representar por meio da outorga de procuração com poderes específicos para negociar e transigir”.
O Ministro foi além e acrescentou que a doutrina considera suficiente, para afastar a penalidade, a presença do representante legal da parte, que pode ou não ser o seu advogado. Confira:
A parte poderá constituir representante, por meio de procuração específica, com poderes para negociar e transigir (art. 334, §10º, CPC). Observe que qualquer parte pode fazer isso: pessoa natural, pessoa jurídica, condomínio, espólio etc. O uso do termo “representante” em vez de “preposto” (utilizado no art. 331, caput, do CPC/73) teve o nítido propósito de desvincular esta representação voluntária da atividade empresarial: qualquer sujeito de direito, empresário ou não empresário, tem o direito de fazer-se representar nesta audiência. (...). Constituído o representante com poder para negociar e transigir, a parte não precisa comparecer pessoalmente à audiência preliminar. (DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao do direito processual civil, Parte geral e processo de conhecimento – 18ª Ed. – Salvador; Ed. JusPodivm, 2016, p. 635).
Portanto, se restar comprovado nos autos que foi outorgado mandato com poderes expressos para transigir, as partes não podem sofrer sanção por sua ausência à audiência inaugural de conciliação do art. 334 do CPC.
Os fundamentos do voto são claros e afastam as dúvidas que pairavam sobre o tema. Para a Quarta Turma do STJ, não deve ser aplicada multa por ato atentatório à dignidade da justiça à parte que, na audiência de conciliação, se faz representar por advogado com poderes específicos para conciliar.
Luciana Corrêa Netto
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) STJ – RMS 56442. Quarta Turma, Relator Ministro Raul Araújo. Julgado em 08/06/2021. Publicado em 16/06/2021. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.2&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=201800126785.