O sigilo dos procedimentos arbitrais: conflitos e limites
Marina Leal e Aline Piteres
Apesar de não constar expressamente na Lei 9.307/96 (“Lei de Arbitragem”), a confidencialidade dos procedimentos arbitrais é amplamente difundida e reconhecida por aqueles que atuam na área. Tanto é assim que, recorrentemente, é mencionada como uma das principais vantagens da arbitragem (1), junto de outras das suas características, como a celeridade, a flexibilidade e a possibilidade de escolha dos julgadores do litígio, os árbitros.
E, não obstante a ausência de menção ao sigilo dos procedimentos arbitrais na Lei de Arbitragem, os Regulamentos de Arbitragem de algumas das principais câmaras de arbitragem do Brasil preveem, expressamente, que os procedimentos por elas administrados são confidenciais. É o caso, por exemplo, da CAMARB (2), do CAM-CCBC (3), da FGV (4) e de várias outras (5). Com isso, as partes, ao definirem nas cláusulas compromissórias que determinado conflito será dirimido por arbitragem de acordo com as regras de uma dessas câmaras, acabam também por optar pelo sigilo do procedimento (sem contar os casos em que as partes, já nas próprias cláusulas compromissórias, pactuam expressamente pela confidencialidade).
Diante dessa realidade, a Lei de Arbitragem, ao tratar da Carta Arbitral – que permite a cooperação com o juízo estatal –, prevê que “no cumprimento da carta arbitral será observado o segredo de justiça, desde que comprovada a confidencialidade estipulada na arbitragem” (6). Similarmente, o Código de Processo Civil de 2015 (“CPC/15”) traz que tramitam em segredo na justiça os processos “que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo” (7).
Contudo, ao lado da preocupação com a confidencialidade dos procedimentos arbitrais, acima destacada, há também de se levar em conta, em determinados casos, certas regras de publicidade. É o caso, por exemplo, de arbitragens envolvendo a administração pública que, por dispositivo expresso da Lei de Arbitragem, deverá respeitar o princípio da publicidade (8) ou de procedimentos envolvendo companhias abertas que possam afetar sua situação econômico-financeira, configurando assim fato potencialmente relevante que deve ser divulgado ao mercado (9). Também no âmbito das companhias abertas, foi tema recorrente de debate a confidencialidade de arbitragens coletivas envolvendo seus acionistas, considerando a sua relevância e o grande número de envolvidos (10).
Mas, para além dessas hipóteses, aplicáveis a casos específicos, se observa também a existência de entendimento no sentido de que o sigilo da arbitragem seria contrário ao princípio da publicidade dos atos processuais. De acordo com esse entendimento, mesmo que haja a previsão de confidencialidade do procedimento arbitral, os processos judiciais (por exemplo, versando sobre uma tutela de urgência pré-arbitral ou uma ação anulatória de sentença arbitral) não precisariam tramitar sob segredo de justiça (ao contrário do que expressamente prevê o art. 189 do CPC/15). Isso, pois a regra prevista em referido dispositivo deveria ser interpretada de maneira restritiva, uma vez que limitaria direito fundamental previsto constitucionalmente: “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem” (11).
Esse entendimento foi recentemente esposado em alguns julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo (“TJSP”):
Indo a ela, ao que disse antes acrescento que a regra dos feitos no Foro é a publicidade (Constituição Federal, art. 5º, LX). (...) Por tal razão, qualquer norma infraconstitucional que limite a aplicabilidade da regra geral de publicidade, como o faz o art. 189 do CPC, deve ser interpretada restritivamente.
Há que se prestigiar e enaltecer, a cada momento, a publicidade, fazendo-se os julgamentos à vista dos cidadãos no Fórum, isto é, em praça pública. Deste modo os jurisdicionados conhecerão a jurisprudência. E os empresários, de sua parte, poderão antever, pela coerência que sempre se espera dos Tribunais, o provável resultado dos veredictos, levando-o em consideração ao celebrar seus negócios mercantis. (12)
Nota-se, entretanto, que a matéria não é pacífica (longe disso). Vê-se entendimentos divergentes dentro do próprio TJSP, havendo decisões que expressamente reconhecem a necessidade de segredo de justiça quando os processos envolvam procedimentos arbitrais sigilosos (13).
Tendo em vista o exposto acima sobre o tema, percebe-se que ele é mais complexo e requer maior atenção do que se poderia imaginar em um primeiro momento. Apesar de a confidencialidade dos procedimentos arbitrais ser frequentemente citada e reconhecida, seus contornos e limites precisam ser avaliados por aqueles que atuam no meio. Diante da relevância do sigilo da arbitragem para vários de nossos clientes, principalmente quando esta envolve informações sensíveis sobre seus negócios, o VLF está atento aos desdobramentos e controvérsias sobre o tema.
A Equipe de Arbitragem do VLF fica à disposição para mais informações ou esclarecimentos acerca da matéria.
Marina Leal
Advogada das Equipes de Consultoria e Arbitragem do VLF Advogados
Aline Piteres
Advogada das Equipes de Consultoria e Arbitragem do VLF Advogados
(1) “A arbitragem possui várias conhecidas qualidades, como a flexibilidade procedimental, a possibilidade de escolha dos julgadores, a especialidade dos árbitros, a neutralidade da arbitragem, a celeridade processual e a facilidade do reconhecimento das decisões em outras jurisdições. Dentre elas, adicione-se a confidencialidade, tema deste trabalho”. FICHTNER, José Antonio; MONTEIRO, André Luís. A confidencialidade na reforma da Lei de Arbitragem. In: ROCHA, Caio Cesar Vieira; SALOMÃO, Luis Felipe (coord.). Arbitragem e Mediação: a reforma da legislação brasileira. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2017. p. 159-190, p. 161.
(2) 13.1. O procedimento arbitral será rigorosamente sigiloso, sendo vedado à CAMARB, aos árbitros, demais profissionais que atuarem no caso e às próprias partes, divulgar quaisquer informações a que tenham acesso em decorrência de seu ofício ou de sua participação no processo, sem o consentimento de todas as partes, ressalvados os casos em que haja obrigação legal de publicidade e o disposto no presente regulamento. (Regulamento de 2019).
(3) ARTIGO 14 – SIGILO
14.1. O procedimento arbitral é sigiloso, ressalvadas as hipóteses previstas em lei ou por acordo expresso das partes ou diante da necessidade de proteção de direito de parte envolvida na arbitragem.
14.1.1. Para fins de pesquisa e levantamentos estatísticos, o CAM-CCBC se reserva o direito de publicar excertos da sentença, sem mencionar as partes ou permitir sua identificação. (Regulamento de 2012).
(4) Art. 46 - Os processos de arbitragem deverão transcorrer em absoluto sigilo, sendo vedado aos membros da Câmara FGV, aos árbitros, às partes e aos demais participantes do processo divulgar qualquer informação a que tenham tido acesso em decorrência de sua participação no procedimento, salvo se expressamente autorizado por todas as partes ou em caso de ordem judicial.
(5) Como da CBMA (Artigo 17), do CAM (Artigo 9.1) ou da CIESP-FIESP (Artigo 20.4 e ss.).
(6) Art. 22-C. O árbitro ou o tribunal arbitral poderá expedir carta arbitral para que o órgão jurisdicional nacional pratique ou determine o cumprimento, na área de sua competência territorial, de ato solicitado pelo árbitro.
Parágrafo único. No cumprimento da carta arbitral será observado o segredo de justiça, desde que comprovada a confidencialidade estipulada na arbitragem.
(7) Art. 189. Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos:
(...)
IV - que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo.
(8) Art. 2º A arbitragem poderá ser de direito ou de eqüidade, a critério das partes.
(...)
§ 3o A arbitragem que envolva a administração pública será sempre de direito e respeitará o princípio da publicidade.
(9) Instrução CVM 358.
Art. 2º Considera-se relevante, para os efeitos desta Instrução, qualquer decisão de acionista controlador, deliberação da assembleia geral ou dos órgãos de administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou fato de caráter político-administrativo, técnico, negocial ou econômico-financeiro ocorrido ou relacionado aos seus negócios que possa influir de modo ponderável: (...)
Parágrafo único. Observada a definição do caput, são exemplos de ato ou fato potencialmente relevante, dentre outros, os seguintes: (...)
XXII – pedido de recuperação judicial ou extrajudicial, requerimento de falência ou propositura de ação judicial, de procedimento administrativo ou arbitral que possa vir a afetar a situação econômico-financeira da companhia.
(10) É até mesmo objeto da Audiência Pública SDM 01/2021 da Comissão de Valores Mobiliários, encerrada há pouco mais de dois meses, alterações na Instrução CVM 358 visando novo dever de divulgação referente a demandas societárias em que a companhia, seus acionistas controladores ou seus administradores figurem como partes e: (i) que envolvam direitos ou interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos; ou (ii) nas quais possa ser proferida decisão cujos efeitos possam atingir a esfera jurídica do emissor ou de outros titulares de valores mobiliários de emissão do emissor que não sejam partes do processo. Para mais informações sobre o tema, que ainda está em fase de análise: http://conteudo.cvm.gov.br/audiencias_publicas/ap_sdm/2021/sdm0121.html. Acesso em: 18 de junho de 2021.
(11) Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem.
(12) TJSP; Agravo de Instrumento 2263639-76.2020.8.26.0000; Relator (a): Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 1ª VARA EMPRESARIAL E CONFLITOS DE ARBITRAGEM; Data do Julgamento: 02/03/2021; Data de Registro: 02/03/2021. No mesmo sentido: TJSP; Agravo de Instrumento 2008533-16.2020.8.26.0000; Relator (a): Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 1ª VARA EMPRESARIAL E CONFLITOS DE ARBITRAGEM; Data do Julgamento: 31/03/2020; Data de Registro: 31/03/2020.
(13) TJSP; Agravo de Instrumento 2025056-45.2016.8.26.0000; Relator (a): Hamid Bdine; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 15/06/2016; Data de Registro: 17/06/2016; TJSP; Agravo de Instrumento 2131353-42.2017.8.26.0000; Relator (a): Afonso Bráz; Órgão Julgador: 17ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 44ª Vara Cível; Data do Julgamento: 29/09/2017; Data de Registro: 29/09/2017.