Marco Legal das Startups e a dispensa de publicações legais em jornais impressos
Gabriella Gati Ferreira e Pedro Ernesto Rocha
A discussão sobre a necessidade de realização das publicações obrigatórias instituídas pela Lei 6.404/76 (“Lei das S.A.”) em jornais impressos tem sido matéria recorrente de debates no mercado. Como é sabido, a Lei das S.A. determina atualmente, em seu artigo 289, que as publicações por ela ordenadas devem ser realizadas no órgão oficial da União, do Estado ou do Distrito Federal, conforme o lugar em que esteja situada a sede da companhia, e em outro jornal de grande circulação editado na localidade da sede da companhia.
Ocorre que os valores pagos pelo espaço utilizado nas publicações são elevados e oneram a atividade empresarial. A isso, soma-se o fato da inegável obsolescência e desuso do jornal impresso frente à internet. Neste cenário, de um lado, figuram os empresários defendendo seus interesses pela simplificação dos processos e redução dos custos, para quem a publicação eletrônica de atos societários é interessante. De outro, os jornais, que defendem a publicação impressa visando a manutenção de suas receitas.
Algumas medidas legislativas e normativas vêm sendo adotadas no sentido de otimizar os processos e balancear a necessidade de publicação e o impacto financeiro percebido pelos empresários.
Em abril de 2019, a Lei 13.818/19 alterou a Lei das S.A. para tratar a forma de publicação dos atos das Sociedades Anônimas e o regime simplificado de publicação dos atos societários. A partir da entrada em vigor da referida lei, o que se dará em 1º de janeiro de 2022, a redação do artigo 289 da Lei das S.A. deixará de prever as publicações na imprensa oficial, bastando que ocorram no jornal de maior circulação na sede da companhia, e que sejam ainda feitas on-line, no site do mesmo jornal na internet (1).
No mesmo sentido, veio o Marco Legal das Startups (a Lei Complementar nº 182/2021, a seguir “LC 182”) que, como visto em nosso Informativo nº 81 de 29/06/2021, além de apresentar medidas de fomento ao ambiente de negócios e atrair investimentos para o empreendedorismo inovador, trouxe normas para a simplificação da estrutura das sociedades anônimas, tornando o modelo societário mais acessível por entidades de menor porte (2). Dentre as alterações promovidas pela LC 182, está a nova redação dada ao art. 294 da Lei das S.A., a qual, quando entrar em vigor (3), possibilitará a realização das publicações exigidas pela Lei das S.A. de forma eletrônica pelas companhias fechadas com receita bruta anual de até R$78.000.000,00, em exceção à regra geral do artigo 289 da mesma lei (4).
A dispensa da publicação das sociedades anônimas nos jornais impressos trazida pela LC 182 retoma, em parte, a Medida Provisória nº 892/2019 (“MP 892/2019”), que alterava a Lei das S.A. de forma a permitir que as sociedades anônimas abertas ou fechadas publicassem os balanços contábeis e demais documentos obrigatórios apenas no site da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”), no site da bolsa de valores onde os valores mobiliários das companhias estivessem admitidos à negociação, e, no caso das companhias fechadas, no site da Central de Balanços do Sistema Público de Escrituração Digital, ficando dispensada a publicação no Diário Oficial e jornais de grande circulação. No entanto, a MP 892/2019 não foi convertida em lei e perdeu sua validade em 3 de dezembro de 2019 (5).
Do ponto de vista teórico, a Lei das S.A. é orientada pelo princípio da publicidade, que originalmente pressupõe a publicação dos atos societários em dois aspectos que se complementam, a saber: (i) aspecto oficial, pelo qual as publicações devem ser realizadas no Diário Oficial, que visa a conferir o atributo da oficialidade à publicação, o qual traz consigo a ideia de presunção do conhecimento do ato (ou seja, a publicação oficial faz com que surja a presunção de que terceiros têm conhecimento do ato); e o (ii) aspecto da publicidade efetiva, pelo qual as publicações devem ser realizadas em jornal de grande circulação editado no lugar onde se localiza a sede da companhia, que visa a divulgar efetivamente os atos societários (6).
Todavia, em plena era digital, a aplicação do princípio da publicidade merece ser atualizada.
Foi neste sentido que, no que se refere ao aspecto oficial, a Lei 13.818/19 inovou ao permitir que as publicações ocorram apenas em jornal de grande circulação impresso, de forma reduzida, e no site deste jornal, de forma completa, devendo o jornal garantir a certificação digital – por autoridade certificadora credenciada no âmbito da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileiras (ICP-Brasil) – dos documentos divulgados (7).
E, no que se refere à publicidade efetiva, tanto a Lei 13.818/19 quanto a LC 182 – e a MP 892/2019 – caminharam no mesmo rumo: permitir a publicação digital, reduzindo custos e ampliando o acesso às informações (8).
É necessário acompanhar a questão com atenção, pois, apesar dos avanços trazidos pela Lei 13.818/19 e pela LC 182, ainda há espaço para ajustes na Lei das S.A. objetivando facilitar e baratear ainda mais as formas legais de divulgação de atos societários.
Gabriella Gati Ferreira
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Pedro Ernesto Rocha
Coordenador da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) Nova redação, em vigor a partir de 1º de janeiro de 2022: “Art. 289. As publicações ordenadas por esta Lei obedecerão às seguintes condições: – deverão ser efetuadas em jornal de grande circulação editado na localidade em que esteja situada a sede da companhia, de forma resumida e com divulgação simultânea da íntegra dos documentos na página do mesmo jornal na internet, que deverá providenciar certificação digital da autenticidade dos documentos mantidos na página própria emitida por autoridade certificadora credenciada no âmbito da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileiras (ICP-Brasil)”.
(2) Conforme discorrido em nosso último Informativo, a Edição nº 81 de 29/06/2021, que tratou da análise do Marco Legal das Startups e a regulamentação do empreendedorismo inovador. Disponível em: http://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=908.
(3) 90 dias contados da publicação da Lei, o que se deu em 1º de junho de 2021.
(4) Nova redação: “Art. 294. A companhia fechada que tiver receita bruta anual de até R$ 78.000.000,00 (setenta e oito milhões de reais) poderá: I - (revogado); II - (revogado); III - realizar as publicações ordenadas por esta Lei de forma eletrônica, em exceção ao disposto no art. 289 desta Lei.”
(5) À época, o Partido Rede Sustentabilidade ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6215, para questionar a MP 892/2019. O Partido sustentou que a Lei 13.818/2019, estabelece que somente a partir de janeiro de 2022 as empresas passariam a publicar seus balanços de modo resumido em veículos impressos e na integralidade nas versões digitais dos jornais e, por esta razão, alegou que não haveria qualquer urgência constitucional para justificar a edição de MP sobre o tema. Além disso, manifestaram-se no sentido de que o presidente da República utilizou da edição da norma como forma de represália a setores da imprensa, o que estaria caracterizando o desvio de finalidade da MP.
(6) CARVALHOSA, Modesto. v. 4, tomo II, Comentários à lei de sociedades anônimas, arts. 243 a 300: Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976, com as modificações da Lei n. 11.941, de 27 de maio de 2009, e da Lei n. 12.810, de 15 de maio de 2013 / Modesto Carvalhosa. – 5. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2014. Comentários ao artigo 289.
(7) Um outro caminho seria definir que a publicação seria feita em uma entidade pública específica, como fez a MP 892, que atribuiu isso à “Central de Balanços do Sistema Público de Escrituração Digital”. Essa central funcionou eficiente e gratuita para publicações durante a vigência da referida MP. Atualmente, ela pode ser acessada no link: https://www.gov.br/centraldebalancos/#/demonstracoes.
(8) A população brasileira está cada vez mais conectada à internet, conforme dados disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE que, através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019, demonstrou que 82,7% dos domicílios nacionais possuíam acesso à internet em 2019.