A expressiva alta do IGP-M e seus reflexos nos contratos empresariais
Isabella Nogueira
O avanço da pandemia da COVID-19 afetou, de diversas formas, a execução de contratos em geral. Dentre as controvérsias surgidas, destaca-se o reajuste dos valores contratuais com base na expressiva variação do Índice Geral de Preços – Mercado (“IGP-M”) ocorrida nos últimos meses.
O IGP-M, atualmente um dos principais indexadores de contratos, é calculado e divulgado, mensalmente, pela Fundação Getúlio Vargas, e registra a variação dos preços de bens e serviços, além das matérias-primas utilizadas na produção agrícola e industrial e na construção civil.
Para evidenciar a aceleração do IGP-M durante a pandemia, é importante mencionar que, em junho de 2020, o IGP-M acumulava alta de 7,31% nos 12 meses anteriores. Em junho de 2021, a variação acumulada do índice em 12 meses foi cerca de 5 vezes maior, atingindo 35,75% (1). Ou seja, em um contrato de locação, por exemplo, com valor mensal do aluguel fixado em R$10.000,00, a prestação locatícia mensal passaria para R$13.575,00 se o IGP-M fosse utilizado para o reajuste na data-base de junho de 2021.
Diante dessa forte aceleração do IGP-M durante a pandemia, ainda não está pacificado o entendimento jurisprudencial sobre a possibilidade de substituição desse índice previsto em contrato. Em pesquisa recente, foi identificada a concessão de liminares em processos em trâmite em alguns tribunais, como o de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Nessas decisões, foram determinadas, dentre outras medidas, a substituição do índice contratualmente pactuado (IGP-M) pelo Índice de Preços do Consumidor Amplo (“IPCA”), divulgado pelo Instituto Brasileiro Geografia e Estatística (“IBGE”), que mede a inflação de um conjunto de produtos e serviços comercializados no varejo, referentes ao consumo pessoal das famílias no Brasil, considerado o índice oficial pelo governo federal. Ainda, vale destacar que, em verificação no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, não foram encontradas ações sobre o tema.
No contexto deste artigo, serão destacadas duas decisões de processos judiciais em curso no Tribunal de Justiça de São Paulo (“TJSP”). O objetivo é identificar se as disposições pertinentes da Lei Federal nº 13.874, Lei da Liberdade Econômica (2), têm sido aplicadas como fundamento dos atos decisórios relacionados à possibilidade de substituição do IGP-M, notadamente os artigos 421 e 421-A da Lei Federal nº 10.406 (“Código Civil”), modificados pela citada lei.
Antes de examinar as decisões judiciais, cabe esclarecer que as disposições trazidas pela Lei da Liberdade Econômica estabelecem garantias de livre mercado relacionadas com o cumprimento do princípio constitucional da livre concorrência (3), na medida em que intensificam a ideia de que “as atividades econômicas devem ser exercidas sob o primado da liberdade e da autonomia da vontade” (4). Nessa linha de entendimento, o parágrafo único do artigo 421 do Código Civil de 2002, alterado pela referida lei, prevê que as relações contratuais privadas terão como prevalência o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.
Seguindo esse mesmo raciocínio, a Lei da Liberdade Econômica alterou o Artigo 421-A do Código Civil para prever que os contratos civis e empresariais são presumidamente paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção. O texto legal prevê, ainda, que (i) as partes possam estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação, revisão ou resolução contratual; (ii) a alocação de riscos definida pelas partes seja respeitada e observada; e (iii) a revisão contratual somente ocorra de maneira excepcional e limitada.
Vale destacar que as modificações trazidas pela Lei da Liberdade Econômica têm como escopo a orientação de que os contratos civis e empresariais devem ser cumpridos da maneira que as partes pactuaram, por expressão da sua autonomia privada (5).
Com relação às decisões judiciais, na ação revisional n°1111455-46.2020.8.26.0100, em trâmite na 1ª Vara Cível da Comarca de São Paulo e proposta em face de Condomínio Comercial de Shopping, a parte autora, Biabella Comércio de Roupas, requereu, dentre outras medidas, a substituição do IGP-M pelo IPCA, alegando que a utilização daquele índice como indexador contratual é excessiva e incapaz de refletir a realidade atual da inflação.
O pedido de tutela de urgência nesse sentido foi indeferido pelo juízo de primeira instância, que entendeu não terem sido verificados os requisitos legais para sua concessão e, ainda, que “a medida pretendida pela autora implicaria em alteração da contratação, dos seus efeitos, em manifesta afronta ao princípio da obrigatoriedade dos contratos, o que não se justifica”.
Diante disso, a Requerente interpôs agravo de instrumento, a fim de reverter o entendimento adotado pelo juízo de origem. O agravo foi parcialmente provido pelo TJSP e, no que diz respeito ao indexador do contrato, o tribunal determinou a adoção do IPCA em substituição ao IGPM, mediante o argumento de que aquele é “mais condizente com a situação atual no Brasil, como forma de composição do poder de compra da moeda” e que a medida seria razoável “em prol do princípio do equilíbrio contratual e da viabilidade da manutenção do contrato”.
Ato contínuo, em sentença proferida em 11 de junho de 2021, o requerimento de modificação do IGP-M pelo IPCA foi julgado improcedente, tendo sido argumentado, pelo juízo, que “se foi esse segmento que foi utilizado pelas partes como parâmetro para apurar a desvalorização da moeda, e ele teve inflação acima dos outros, isso não o torna ilegítimo ou ilegal”. Os embargos de declaração opostos pela autora contra a sentença foram rejeitados e, até o presente momento, não houve interposição de outro recurso contra o referido ato decisório.
No mesmo escopo, a Smartfit propôs ação revisional de contrato, distribuída sob o nº 1000532-15.2021.8.26.0068 e em curso na 3ª Vara Cível da Comarca de Barueri-SP, também com o objetivo de substituir o IGP-M, indexador contratualmente ajustado, pelo IPCA, além de outras medidas.
O juízo de primeiro grau deferiu o pedido para conceder tutela antecipada e determinou, no que diz respeito à alteração do indexador, que fosse aplicado o IPCA, por considerar que “por levar em conta o custo de vida das famílias com renda entre um e quarenta salários mínimos, em regiões metropolitanas, além de itens como transporte, educação... tem maior compatibilidade com a realidade fática”.
Em razão disso, a ré interpôs agravo de instrumento que, julgado, determinou ser mantida a substituição do IGP-M pelo IPCA, sendo a avaliação do TJSP que “nas circunstâncias atuais, o critério de reajuste contratado pelas partes se tornou injusto, por não refletir a realidade econômica em virtude das condições do mercado atual, propiciando desequilíbrio entre as partes”.
Atualmente, o processo encontra-se concluso, não tendo sido, ainda, proferida a sentença.
Como se vê, a possibilidade de alteração dos indexadores contratualmente pactuados revela-se um tema complexo no contexto da pandemia da COVID-19 e dos seus reflexos nas relações contratuais à luz do princípio da segurança jurídica.
Tal complexidade evidencia-se com a análise das ações judiciais acima descritas, visto que, em julgamento dos Agravos de Instrumento interpostos, o TJSP deferiu a substituição dos índices contratualmente pactuados. Em contrapartida, apesar de as modificações trazidas pela Lei da Liberdade Econômica (artigos 421 e 421-A do Código Civil) não terem sido expressamente referidas na sentença da ação revisional nº 1111455-46.2020.8.26.0100, foi possível identificar entendimentos no sentido de privilegiar a alocação de riscos feita pelas partes e impedir a substituição do IGP-M.
Por fim, após a realização das pesquisas, foi possível verificar a existência de considerável número de processos ainda em trâmite, com solicitações de substituição dos índices de reajuste estabelecidos nos contratos (IGP-M), e cujas decisões apresentam entendimentos diferentes. Para promover maior segurança jurídica aos jurisdicionados e aumentar a celeridade na resolução dos litígios, é necessária e adequada a orientação das instâncias superiores e uniformização do entendimento jurisprudencial pertinente a esse tema, especialmente pelo Superior Tribunal de Justiça (“STJ”).
O VLF Advogados, sempre atento às necessidades de seus clientes e diante da relevância do tema ora tratado, possui equipe especializada em consultoria em contratos, que vem acompanhando suas discussões e desdobramentos. Caso queira saber mais sobre esse assunto, basta entrar em contato conosco.
Isabella Nogueira
Advogada da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
(1) Disponível em: https://portal.fgv.br/noticias/igp-m-resultados-2021. Acesso em: 17 jul. 2021.
(2) BRASIL. Diário Oficial da União. Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica; estabelece garantias de livre mercado; altera as Leis nos 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), 6.404, de 15 de dezembro de 1976, 11.598, de 3 de dezembro de 2007, 12.682, de 9 de julho de 2012, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 10.522, de 19 de julho de 2002, 8.934, de 18 de novembro 1994, o Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946 e a Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943; revoga a Lei Delegada nº 4, de 26 de setembro de 1962, a Lei nº 11.887, de 24 de dezembro de 2008, e dispositivos do Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm. Acesso em: 17 jul. 2021.
(3) A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 dispõe no seu Artigo 170: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[...]
IV - livre concorrência.
(4) GIBRAN, Sandro Mansur; DA SILVA, Marcos Alves; BONSERE, Silvana Fátima Mezaroba. Mais liberdade contratual, menos revisão: A função econômica dos contratos e as provocações ao Direito Civil contemporâneo. Revista Juridica, v. 4, n. 57, p. 584-613, 2020.
(5) MOTA, Marcel Moraes. Os contratos civis e empresariais e a Lei de Liberdade Econômica. Diálogo Jurídico, v. 18, n. 2, p. 69-93, 2019.