A nova Lei de proteção ao superendividamento do consumidor como instituto guardião dos direitos consumeristas frente ao atual cenário socioeconômico brasileiro
Luiz Octávio Santos Jerônimo
No dia 2 de julho de 2021, entrou em vigor a Lei n° 14.181/21, denominada Lei de Combate ao Superendividamento, que altera o Código de Defesa do Consumidor no sentido de incluir diretrizes de prevenção ao superendividamento dos consumidores, bem como prevê a criação de procedimentos específicos e de núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento.
O texto aprovado possui como objetivo reforçar as medidas de informação e prevenção ao superendividamento, inserir a cultura de concessão responsável de crédito, assim como ampliar a cultura de conscientização do pagamento das dívidas, criando estímulos aos consumidores para melhor organização de suas finanças.
O termo “superendividamento” é tido pela lei como “impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial” (1).
Diante do atual cenário socioeconômico, aliado à pandemia decorrente do novo coronavírus (COVID-19), o Brasil atingiu o maior nível de endividamento em 11 (onze) anos, conforme aponta a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (“CNC”), atingindo o assustador percentual de 69,7% de famílias endividadas em junho de 2021 (2). Com este cenário posto, os consumidores poderão contar com as seguintes inovações:
1) Repactuação da dívida
A requerimento do consumidor endividado, o Juízo poderá instaurar o processo de repactuação de dívidas, com o comparecimento obrigatório de todos os credores. Caso haja o não comparecimento injustificado de qualquer credor, ou de seu respectivo procurador, haverá a suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora. Caso não obtida a conciliação, o Juízo poderá nomear um administrador para fazer o planejamento compulsório da repactuação das dívidas, que poderão ser pagas em até 5 (cinco) anos. Este procedimento assemelha-se a uma espécie de recuperação judicial, entretanto, em prol dos consumidores, o que lhe garante uma renegociação das dívidas com todos os credores ao mesmo tempo.
2) Conceito de mínimo existencial
A inclusão do inciso XI ao art. 6º do Código de Defesa do Consumidor reforçou o conceito de mínimo existencial, atribuindo assim maior relevância à quantia mínima da renda do consumidor destinada ao pagamento de suas despesas básicas, não podendo esta ser usada para quitação de dívidas. Ou seja, impede a contração de novas dívidas para quitar despesas essenciais como água e energia.
3) Crédito consignado
O art. 54-D estabelece que, em casos de oferta de crédito consignado, as instituições financeiras deverão informar o custo efetivo total, a taxa efetiva mensal de juros, eventuais encargos por atraso, o montante de prestações e a previsão de antecipar o pagamento da dívida ou o parcelamento sem novos encargos. O regramento ainda prevê que as instituições, antes de conceder o crédito, deverão consultar bancos de dados de proteção ao crédito. Caso haja o descumprimento de quaisquer destes deveres, o fornecedor estará sujeito às sanções previstas no parágrafo único do artigo mencionado (3).
4) Bloqueio da compra
Outra inovação foi a vedação ao fornecedor de que, em caso de golpe aplicado por terceiro quanto à utilização do cartão de crédito do consumidor, este poderá se valer do imediato bloqueio do pagamento, caso haja imposição de qualquer dificuldade pelo fornecedor configurará prática abusiva.
5) Ofertas enganosas
Um ponto também de grande relevância diz respeito à imposição do fim do assédio aos consumidores, haja vista que a Lei vedou qualquer tipo de prática desta natureza, seja expressa ou implícita, para atrair o cliente a contratar produto, serviço ou crédito. Portanto, a ação habitualmente utilizada pelos fornecedores acerca da desnecessidade de consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor para conclusão da operação financeira passam a ser vedadas. Também em alusão à transparência das informações, os fornecedores não poderão criar mais qualquer tipo de dificuldade quanto à compreensão sobre os ônus e riscos acerca da contratação do crédito ou da venda a prazo. Vale frisar que o grupo de indivíduos que ganhou maior relevância nestas questões foram os idosos, analfabetos, doentes ou pessoas em estado de vulnerabilidade agravada.
Com base nestas inovações, a 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás proferiu decisão inovadora ao pautar-se na nova legislação. No caso, o autor da ação havia contratado com a instituição financeira um empréstimo consignado na modalidade cartão de crédito, no qual, em momento algum foi informado o número de parcelas, tampouco o saldo devedor ao longo do tempo. Nessa perspectiva, o Relator Desembargador Marcus da Costa Ferreira ressaltou em seus fundamentos que houve a inobservância ao dever de informação e transparência ao cliente, por parte da empresa ré, pois, nesse tipo de empréstimo pessoal, o cliente contrata um valor com o banco e recebe um cartão de crédito com desconto diretamente em sua remuneração ou benefício previdenciário. Contudo, em vez de parcelas mensais para amortizar a dívida, o valor total é estipulado na fatura do cartão e o consumidor paga apenas o mínimo, incidindo juros mensalmente no saldo total, tornando a dívida insustentável.
Segundo o magistrado, a nova legislação reforçou a responsabilidade da empresa em oferecer dados claros e objetivos ao consumidor: “Todas as disposições inseridas já decorriam do dever de informação preconizado no artigo 6º do CDC, porém, diante da relutância de aplicação por muitos e diante da baixa efetividade, tornou-se necessário constar explicitamente na legislação o que já era de hialina clareza”. Portanto, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás entendeu que a prática torna a dívida impagável e é, portanto, abusiva (4).
Em que pese o grande avanço atribuído aos consumidores, o legislador se preocupou em criar certas ressalvas quanto à utilização destes institutos, sendo uma delas a prevista no art. 54-A, §3º (5) que afirma que a prevenção e proteção do superendividamento não serão aplicadas em casos que se observe que o consumidor contraiu a dívida mediante fraude ou manifesta má-fé, como também aquelas que foram assumidas dolosamente com o propósito de não pagamento, ou, até mesmo as que se referem à aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor. Ainda, cuidou-se de esclarecer que a Lei somente se aplica às pessoas físicas.
Em razão das colocações expostas e diante das inovações implementadas pela Lei nº 14.181/21, torna-se incontestável que houve uma admirável conquista quanto à preservação dos direitos consumeristas, pois, os consumidores terão a possibilidade de recomeçarem sua vida financeira sem que haja a configuração da insolvência civil. Essa iniciativa permite que estes reingressem no mercado de consumo, beneficiando a todos. Noutro giro, as empresas também serão indiretamente beneficiadas, já que o novo diploma legal possibilita estas de reaverem seus respectivos créditos de forma mais célere. Portanto, é imprescindível que o Poder Judiciário atue com cautela na aplicação da nova Lei, impossibilitando também sua utilização apenas como meio protelatório para cumprimento das obrigações assumidas.
Luiz Octávio Santos Jerônimo
Advogado da Equipe de Direito Consumerista do VLF Advogados
(1) Art. 54-A, §1º da Lei 14.181/2021: Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.
(2) CORONAVÍRUS: Brasil confirma primeiro caso da doença. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/07/01/percentual-de-familias-com-dividas-chega-a-70percent-e-brasil-atinge-o-maior-nivel-em-11-anos-aponta-cnc.ghtml. Acesso em: 13 jul. 2021.
(3) Parágrafo único do art. 54-D, da Lei 14.181/2021: O descumprimento de qualquer dos deveres previstos no caput deste artigo e nos arts. 52 e 54-C deste Código poderá acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor.
(4) TJGO; Apelação Cível 5409656-79.2019.8.09.0051; Relator (a): Marcus da Costa Ferreira; Órgão Julgador: 5ª Câmara Cível - 30ª Vara Cível de Goiânia; Data do Julgamento: 08/07/2021; Data do Registro: 08/07/2021.
(5) Art. 54-A, §3º da Lei 14.181/2021: O disposto neste Capítulo não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor.