A omissão do legislador constituinte não é suficiente para permitir a edição de lei estadual que disponha sobre a cobrança do ITCMD em casos de bens vindos do exterior, diz STF
Maria Fernanda Pimenta
Em 1º de março de 2021, foi julgado pelo Superior Tribunal Federal (“STF”) o Recurso Extraordinário nº 851.108/SP (“RE 851.108/SP”), tema 825 de repercussão geral, em que era discutida a obrigação ao recolhimento do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de quaisquer Bens ou Direitos (“ITCMD”) em caso de doação testamentária recebida do exterior mediante o afastamento de disposições de Lei Estadual, que pretendia tributar o fato.
A argumentação do Estado de São Paulo ao defender a constitucionalidade da lei estadual que instituiu a cobrança de ITCMD sobre a situação mencionada, baseava-se na ideia de que, ao atribuir competências tributárias concorrentes, a Constituição Federal (“CF/88”) conferiu aos Estados competência plena, ou seja, o direito à instituição efetiva desse tributo, sem subjugá-lo à prévia existência de lei complementar. Para análise da questão, o voto vencedor, proferido pelo Ministro Relator Dias Toffoli, ressaltou, inicialmente, as disposições constitucionais sobre a competência da União de editar normas gerais. Daí, concluiu que a competência concorrente não pode ser invocada para embasar direito de legislar sem necessidade de lei complementar.
Nesse sentido, a respeito do ITCMD, o pleno do STF, por 7 x 4 votos, reconheceu que o texto constitucional já fornece regras para determinação da competência tributária, de forma que, muito embora a Constituição, art. 155, I, atribua aos estados a competência para instituição do ITCMD, ela também limita esta competência, ao determinar que cabe à lei complementar a regulação da instituição deste imposto por meio de lei complementar quando o de cujus tiver alguma relação com o exterior, vejamos:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I - transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos; [...] § 1º O imposto previsto no inciso I:
[...] III - terá competência para sua instituição regulada por lei complementar: [...] b) se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior. (1)
O STF reconheceu duas regras de competência contidas na Constituição Federal, relativas ao ITCMD de acordo com a natureza de bens e direitos: (i) é competente a unidade federada em que está situado o bem, se imóvel; (ii) é competente a unidade federada onde se processar o inventário ou arrolamento ou onde tiver domicílio o doador, relativamente a bens.
Ainda que essas duas regras tenham sido reconhecidas, os casos em que o doador ou o falecido possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior não estão nelas abarcados.
Portanto, diante da previsão constitucional de que nestas hipóteses deve haver lei complementar reguladora, e diante da inexistência dessa lei complementar, até o momento, não há que se falar em fato gerador, de forma que em casos de doação ou sucessão nos quais há um elemento relevante de conexão com o exterior, não haverá incidência de imposto sucessório ou de doação.
Em seu voto, o ministro Relator cita doutrina do professor Roque Carraza (2), segundo o qual, a previsão constitucional do art. 155, §1º, III, da CF/88 visa inibir conflitos de competências e possíveis guerras fiscais:
Assim, pensamos que tal lei complementar não pode fugir do critério básico dos incisos I e II do § 1º do art. 155 da CF: os impostos competem ao Estado (ou ao Distrito Federal) relacionado, de algum modo, à doação ou à transmissão causa mortis. Estando os bens no exterior ou tendo o inventário nele sido processado, o melhor critério, salvo engano, é a lei complementar atribuir esta competência à unidade federativa onde tem domicílio ou reside o donatário ou o herdeiro. Do contrário restarão feridos os princípios federativo e da autonomia distrital, abrindo espaço à ‘guerra fiscal’, cujos efeitos deletérios são por todos conhecidos.
A decisão que pacificou o entendimento teve seus efeitos modulados para que seja aplicada ex nunc, a partir da publicação do acórdão, ou seja, só terá efeitos para eventos futuros. Para os fatos geradores anteriores à decisão, se existir lei estadual instituindo a cobrança, há possibilidade da exigência de ITCMD, conforme o caso.
O contribuinte que já pagou ITCMD não poderá recuperar os valores pagos, mas, se o contribuinte já tiver ação judicial em andamento para discutir o tema, não deverá haver cobrança do ITCMD.
Sobre a tese de repercussão geral, firmou-se o entendimento:
É vedado aos estados e ao Distrito Federal instituir o ITCMD nas hipóteses referidas no art. 155, § 1°, III, da Constituição Federal sem a intervenção da lei complementar exigida pelo referido dispositivo constitucional.
Por fim, está em trâmite na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar 37/2021, apensado ao Projeto de Lei Complementar 363/2013 que prevê a incidência do imposto sobre bens situados no exterior e pretende determinar que o ITCMD competirá ao Estado em que tiver domicílio o beneficiário se o doador tiver domicílio ou residência no exterior; ou se o de cujus tiver seu inventário processado no exterior.
Mais informações sobre o assunto podem ser obtidas com a equipe de Direito Tributário do VLF Advogados.
Maria Fernanda Pimenta
Advogada da Equipe de Direito Tributário do VLF Advogados
(1) BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 jul. 2021.
(2) CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 1049.