Responsabilidade limitada dos cotistas de fundos de investimento: alcance da Lei da Liberdade Econômica
Aline Piteres e Marina Leal
Com o intuito de fomentar a livre iniciativa e o livre exercício da atividade econômica, a Lei nº 13.874/19 (“Lei de Liberdade Econômica” ou “Lei”) inseriu no ordenamento jurídico uma série de dispositivos voltados para o estímulo ao empreendedorismo e à liberdade de contratar (1). Uma de suas inovações refere-se à possibilidade de limitação da responsabilidade dos cotistas de fundos de investimento ao valor de suas cotas:
Art. 1.368-D. O regulamento do fundo de investimento poderá, observado o disposto na regulamentação a que se refere o § 2º do art. 1.368-C desta Lei, estabelecer:
I - a limitação da responsabilidade de cada investidor ao valor de suas cotas.
Segundo a exposição de motivos da Medida Provisória nº 881/19, que originou a Lei de Liberdade Econômica, este dispositivo asseguraria um aumento da segurança das aplicações realizadas em fundos de investimento, o que contribuiria para um ambiente mais competitivo e, consequentemente, para um aumento de investimentos no geral (2).
A Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”), então, em sua competência para disciplinar o referido dispositivo, submeteu à Audiência Pública SDM 08/20 (“Audiência SDM 08/20”), em 1º de dezembro de 2020, minuta de resolução que versa, dentre outros aspectos, sobre a limitação de responsabilidade de cotistas de fundos de investimento. Segundo a CVM, tal resolução teria como objetivo modernizar a regulação dos fundos de investimento brasileiros, repercutir e sistematizar as inovações introduzidas no ordenamento jurídico pela Lei e propor outras alterações que se apresentam como convenientes e oportunas no cenário atual da indústria de fundos (3).
Ocorre que, dentre as disposições inseridas na minuta da resolução, a CVM indicou que os regulamentos de fundos de investimento exclusivos – assim entendidos os fundos de investimento ou os fundos de investimento em cotas de fundos de investimento, que são destinados a investidores qualificados e constituídos para receber aplicações de um único cotista – não poderiam limitar a responsabilidade dos investidores ao valor de suas cotas (4). Demonstrou-se preocupação com “o dano que pode ser causado à imagem e ao funcionamento eficiente dessa indústria hipótese em que fundo de investimento de um único cotista pudesse alegar limitação de responsabilidade para não cobrir patrimônio líquido negativo” (5).
A referida disposição reuniu diversos comentários no âmbito da Audiência SDM 08/20, como pode ser observado nas manifestações encaminhadas à CVM (6). Argumenta-se, por exemplo, que a justificativa exposta pela CVM para a restrição mencionada não encontra respaldo em sua competência disciplinar, atribuída pelo parágrafo único do artigo 1.368-C do Código Civil, inserido pela Lei de Liberdade Econômica (7). Alega-se que a autarquia poderia estabelecer requisitos mínimos a serem observados para que seja possível a limitação de responsabilidade, mas não poderia suprimir essa previsão legal.
No mesmo sentido, algumas manifestações apresentadas no âmbito da Audiência SDM 08/20 indicaram que a diretriz citada da norma só poderia ser restringida por vontade dos investidores na linha do princípio de liberdade econômica que disciplina a Lei. Sustenta-se que a proibição aos fundos exclusivos de limitar a responsabilidade dos seus credores apenas estimularia artificialismos, com recurso a cotistas pro forma para cumprimento da previsão regulatória.
Percebe-se que o tema é polêmico e passível de diversos posicionamentos. Assim, encerrado o prazo para envio de manifestações, aguarda-se os desdobramentos da Audiência SDM 08/20. Juntamente com diversas outras questões controvertidas propostas pela referida resolução, os comentários apresentados encontram-se em análise e poderão influenciar a versão final do regulamento em discussão.
A Equipe de Consultoria do VLF está acompanhando essa e outras normas em deliberação pela CVM e fica à disposição para mais informações ou esclarecimentos acerca da matéria.
Aline Piteres
Advogada das Equipes de Consultoria e Arbitragem do VLF Advogados
Marina Leal
Advogada das Equipes de Consultoria e Arbitragem do VLF Advogados
(1) Art. 2º. São princípios que norteiam o disposto nesta Lei: I - a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas; II - a boa-fé do particular perante o poder público; III - a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas; e IV - o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado.
(2) “Atenta às necessidades de facilitar a canalização de recursos poupados para a economia real, a proposta assegura a legalidade de responsabilidade limitada para fundos de investimento, o que deverá aumentar a segurança da modalidade por meio dessas estruturas. Contribui-se, assim, para um ambiente mais competitivo e atrativo que beneficiará inclusive os grandes programas de desestatizações, outro assunto emergencial que justifica a existência desta Medida. Espera-se que, ao equacionarmos nosso ambiente com o resto do mundo desenvolvido, abrindo a possiblidade desse tipo de fundo, conforme futura regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários, consigamos um aumento de investimentos em geral” (Exposição de Motivos da Medida Provisória n. 881/19).
(3) Edital de Audiência Pública SDM Nº 08/20.
(4) Artigo 98, parágrafo único, minuta do Edital de Audiência Pública SDM Nº 08/20.
(5) Edital de Audiência Pública SDM Nº 08/20.
(6) Disponíveis em: http://conteudo.cvm.gov.br/audiencias_publicas/ap_sdm/2020/sdm0820.html. Acesso em: 24 ago. 2021.
(7) Art. 1.368-C. O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza. § 1º Não se aplicam ao fundo de investimento as disposições constantes dos arts. 1.314 ao 1.358-A deste Código. § 2º Competirá à Comissão de Valores Mobiliários disciplinar o disposto no caput deste artigo. § 3º O registro dos regulamentos dos fundos de investimentos na Comissão de Valores Mobiliários é condição suficiente para garantir a sua publicidade e a oponibilidade de efeitos em relação a terceiros.