Lei nº 14.195/2021: a inauguração do voto plural e as demais alterações promovidas na Lei das S.A.
Letícia Camargos e Fernanda Vidigal
Foi sancionada, em 26 de agosto de 2021, a Lei nº 14.195/2021 (1), resultado da conversão da Medida Provisória nº 1.040/2021 (“MP 1.040”) (2), que estava em vigor desde 30 de março deste ano. De acordo com sua Exposição de Motivos, a MP 1.040 foi publicada com o objetivo de incentivar o crescimento e a modernização do ambiente de negócios brasileiro e melhorar a posição do país no relatório Doing Business do Banco Mundial, que analisa o impacto das regulamentações aplicadas em relação às atividades empresariais ao redor do globo (3).
O texto final da Lei nº 14.195/2021, após as revisões implementadas no decorrer do procedimento legislativo de conversão da MP 1.040, inaugurou novas disposições no ordenamento jurídico brasileiro, alterando o Código Civil, o Código de Processo Civil, a Lei das Sociedades Anônimas e diversos outros diplomas legais.
Sob a ótica da legislação empresarial, destacam-se as mudanças promovidas no Direito Societário, dentre elas, a extinção da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (“EIRELI”) e as novas regras implementadas para as companhias na busca pela proteção de acionistas minoritários.
Dois anos após as alterações trazidas pela Lei de Liberdade Econômica (4) ao art. 1.052 do Código Civil, que permitiram a constituição de sociedades limitadas unipessoais, a Lei nº 14.195/2021 extinguiu tacitamente as EIRELIs, pela determinação de seu art. 41, que assim prevê:
Art. 41. As empresas individuais de responsabilidade limitada existentes na data da entrada em vigor desta Lei serão transformadas em sociedades limitadas unipessoais independentemente de qualquer alteração em seu ato constitutivo.
Parágrafo único. Ato do Drei disciplinará a transformação referida neste artigo. (5)
A principal diferença entre o regime das EIRELIs e das sociedades limitadas unipessoais está na exigência que era trazida pelo modelo extinto de capital mínimo para a sua constituição, o que não se observa entre as regras das sociedades limitadas. A ideia de se ter capital social mínimo visava, ao menos em tese, evitar a formação de sociedades com capacidade financeira incondizente com os riscos relacionados ao desenvolvimento da atividade econômica, e, por sua vez, coibiria problemas de fraude, subcapitalização, confusão patrimonial etc. Por outro lado, a ausência da obrigação de capital mínimo garante maior liberdade para o ingresso de pequenos empresários no mercado, impulsionando o empreendedorismo em consonância com o princípio da livre iniciativa.
Quanto às modificações realizadas na Lei nº 6.404/1976 (“Lei das Sociedades Anônimas” ou “LSA”), é inovadora a previsão do chamado voto plural (6), introduzido pelo inciso IV do art. 16 e disciplinado pelos arts. 15, 16-A e 110-A da LSA. O novo instituto revogou o paradigma de “one share, one vote”, outrora expresso no art. 110 da LSA, passando a admitir a criação de uma ou mais classes de ações ordinárias com atribuição de voto plural, que não poderá ser superior a 10 (dez) votos por ação.
A adoção de voto plural deve ser precedida de deliberação social e, ressalvada a possibilidade de majoração do quórum pelo Estatuto Social, deverá ser aprovada por, no mínimo, (i) metade dos votos conferidos pelas ações com direito a voto e (ii) metade das ações preferenciais sem direito a voto ou com voto restrito, nos termos do art. 110-A, §§1º e 3º da LSA. Caso seja aprovada a emissão dessa classe de ações, é ressalvado o direito potestativo de retirada aos acionistas dissidentes, desde que a criação de ações ordinárias com atribuição de voto plural não esteja prevista no Estatuto, conforme o §2º do mesmo dispositivo (6).
No que se refere ao prazo, o §7º do art. 110-A da LSA estabeleceu que o voto plural atribuído às ações ordinárias será inicialmente limitado ao período de 7 (sete) anos, prorrogável por qualquer prazo.
É importante ressaltar, no entanto, que as companhias abertas já registradas na Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) não poderão adotar o voto plural. Nesse sentido, a Lei nº 14.195/2021 vedou as operações de (i) incorporação e fusão de companhia aberta que não adote voto plural, e cujas ações ou valores mobiliários conversíveis em ações sejam negociados em mercados organizados, em companhia que adote voto plural; e (ii) cisão de companhia aberta que não adote voto plural, e cujas ações ou valores mobiliários conversíveis em ações sejam negociados em mercados organizados, para constituição de nova companhia com adoção do voto plural, ou incorporação da parcela cindida em companhia que o adote (7). Da mesma forma, o voto plural não poderá ser instituído pelas empresas públicas, sociedades de economia mista e subsidiárias ou sociedades controladas pelo Poder Público.
Além do voto plural, a Lei nº 14.195/2021 trouxe novas regras para as companhias no que diz respeito aos livros societários, às assembleias gerais e aos órgãos da administração. Com relação aos livros societários, a introdução do §3º ao art. 100 da LSA permitiu a realização de registros mecanizados ou eletrônicos para os seguintes livros das companhias fechadas: (i) Livro de Registro de Ações Nominativas; (ii) Livro de Transferência de Ações Nominativas; (iii) Livro de Registro e Transferência de Partes Beneficiárias Nominativas; (iv) Livro de Atas das Assembleias Gerais; e (v) Livro de Presença dos Acionistas.
Quanto às assembleias gerais, a nova Lei ampliou as matérias de sua competência e alterou as regras para a sua convocação. Entre as matérias de competência privativa das assembleias gerais, previstas no art. 122 da LSA, foram acrescidas: (i) deliberação sobre transformação, fusão, incorporação e cisão da companhia, sua dissolução e liquidação, bem como a eleição e destituição dos liquidantes e julgamento de suas contas; (ii) autorização aos administradores para confessarem falência e pedirem recuperação judicial; e (iii) deliberação, quando se tratar de companhias abertas, sobre a celebração de transações com partes relacionadas, a alienação ou a contribuição para outra empresa de ativos da companhia, caso o valor da operação corresponda a mais de 50% (cinquenta por cento) do valor de todos os seus ativos, conforme constantes do último balanço aprovado.
No que concerne às convocações para as assembleias gerais das companhias abertas, a Lei das Sociedades Anônimas passou a adotar o prazo mínimo de 21 (vinte e um) dias em relação à data de instalação para a primeira convocação e 8 (oito) dias para a segunda (9).
Em relação aos órgãos da administração, a Lei nº 14.195/2021 extinguiu a exigência de residência no Brasil para os diretores das companhias, desde que, nesses casos, seja constituído representante residente no país, conforme previsto no art. 146, caput e §2º da LSA.
Ademais, foram incluídos os parágrafos 3º e 4º do art. 138 da LSA, que vedaram a acumulação pela mesma pessoa dos cargos de presidente do conselho de administração e de diretor presidente, salvo exceção a ser regulada pela CVM para companhias com menor faturamento. Por fim, tornou-se obrigatória a participação de membros independentes no conselho de administração das companhias abertas, nos termos do parágrafo 2º, do art. 140 da LSA. Essas duas disposições, na verdade, já eram preconizadas no Regulamento do Novo Mercado da B3 e estavam previstas no texto original da MP 1.040.
As mudanças trazidas pela Lei nº 14.195/2021 se alinham, em geral, a práticas já aplicadas por outros países com a pretensão de garantir maior proteção a acionistas minoritários e, assim, estimular o ambiente de negócios. A efetividade das novas regras, no entanto, deverá ser analisada em concreto, haja vista que a captação de investimentos depende não apenas de alterações legislativas, mas do alinhamento de um conjunto de características e da organização de diversas esferas que tornem o ambiente econômico não apenas rentável, mas também seguro e atrativo.
Letícia Camargos
Estagiária da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Fernanda Vidigal
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) BRASIL. Lei nº 14.195, de 26 de agosto de 2021. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.195-de-26-de-agosto-de-2021-341049135. Acesso em: 23 set. 2021.
(2) BRASIL. Medida Provisória nº 1.040, de 29 de março de 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Mpv/mpv1040.htm. Acesso em: 13 abr. 2021.
(3) Conforme discorrido no Informativo VLF nº 79 de 28/04/2021, que tratou da análise da Medida Provisória nº 1.040/21 e as alterações promovidas na Lei das S.A. Disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=887.
(4) BRASIL. Lei n.º 13.874, de 20 de setembro de 2019. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm. Acesso em: 23 set. 2021.
(5) Veja-se que o Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (“DREI”) já publicou orientações, determinando que as EIRELIs existentes deverão ser automaticamente transformadas em sociedades limitadas unipessoais pelas Juntas Comerciais, conforme Ofício Circular SEI nº 3510/2021/ME, disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/drei/legislacao/arquivos/oficios-circulares-drei/2021/orientacoes-sobre-a-realizacao-de-arquivamentos-diante-da-revogacao-tacita-da-empresa-individual-de-responsabilidade-limitada-constante-do-inciso-vi-do-art-44-e-do-art-980-a-e-paragrafos-do-codigo-civil.pdf. Acesso em: 23 set. 2021.
(6) Entre outras finalidades, o voto plural é “associado ao controle da companhia pelo fundador durante um prazo suficiente à implementação de seu plano de negócios” (CALÇAS, JUNQUEIRA, CLEMESHA, 2021). Nesse sentido, grandes empresas de tecnologia, como Alphabet e Facebook, utilizam-se deste instituto. Essa medida, então, além de estar em consonância com as prerrogativas idealizadas na Exposição de Motivos, também é congruente aos ideais que permearam o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador. Sobre o tema, ver: (a) CALÇAS, Manoel. JUNQUEIRA, Ruth. CLEMESHA, Pedro. Reflexões sobre o voto plural: perspectivas para admissão de estruturas societárias com duas ou mais classes de ações com direito de voto diferenciado no Direito brasileiro. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, vol. 92, ano 24, p. 159-185; e (b) VIDIGAL, Fernanda. ROCHA, Pedro. O Marco Legal das Startups e a regulamentação do empreendedorismo inovador. Informativo VLF 81/2021, de 29/06/2021. Disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=908.
(7) Conferir o art. 110-A, §2º e o art. 45 da LSA.
(8) Ver art. 110-A, §11 da LSA.
(9) De modo diverso, o texto original da MP 1.040 determinava que a primeira convocação poderia ser realizada no prazo de 30 dias antes da data prevista para a instalação da assembleia.