Da privacidade à proteção de dados pessoais: o Direito e o avanço tecnológico
Leila Bitencourt, Felipe Melazzo e Fernanda Galvão
O objetivo deste texto é abordar o direito fundamental à proteção de dados, objeto de proposta de emenda à constituição nº 17/2019 e analisar a sua relação com decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) em 24 de agosto de 2021 na qual restou decidida a prevalência do direito constitucional à intimidade em caso de compartilhamento de print de WhatsApp com terceiros, sem o consentimento do titular.
É oportuno mencionar a reflexão trazida por dois autores norte-americanos do século XIX, Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis, estudiosos do tema privacidade, no sentido de que o avanço tecnológico aumenta a necessidade de o Direito criar formas de proteger as pessoas dos impactos causados por invenções. À época dessa reflexão, a tecnologia disponível era a máquina fotográfica que passou a expor o cotidiano privado das pessoas sem a autorização. Com isso, Warren e Brandeis defendiam que a proteção exercida por meio do impedimento de publicações sem autorização e conferida aos pensamentos, sentimentos e emoções expressadas por meio da escrita ou das artes, consistiria em uma instância da aplicação do direito individual de ser deixado sozinho ou “the right to be left alone”. Dessa forma, os referidos autores entendiam que as leis existentes deveriam oferecer um princípio ou instrumentos de proteção à privacidade do indivíduo contra qualquer invasão, fossem aquelas exercidas pelo fotógrafo, pela imprensa ou pelo possuidor de qualquer dispositivo moderno utilizado para gravar ou reproduzir sons (1).
Pois bem. As reflexões de Warren e Brandeis ainda continuam aplicáveis. Agosto de 2021, foi marcado por acontecimentos de considerável relevância em relação ao uso de novas tecnologias e à proteção de dados pessoais. No dia 24, o STJ reconheceu, dentre outros, o direito à intimidade ao julgar o Recurso Especial 1.903.273 (“REsp” 1.903.273”), e, no dia 31, a Câmara dos deputados aprovou a Proposta de Emenda à Constituição nº 17/2019 (“PEC nº 17/2019”) para inserir o direito à proteção de dados pessoais como um dos direitos fundamentais expressos na Constituição Federal de 1988 (“Constituição”).
Como o legislativo e judiciário mencionaram expressamente direitos bastante próximos – a intimidade, a vida privada e o novel direito expresso à proteção de dados pessoais a ser inserido na Constituição, expõe-se, a seguir, as principais características desses direitos e em que medida é possível estabelecer relação entre as manifestações desses dois poderes no que diz respeito à proteção de dados pessoais.
1. Os direitos fundamentais à privacidade e intimidade e o Recurso Especial 1.903.273
Primeiramente, ressalta-se que os direitos da intimidade e da vida privada são direitos fundamentais, e estes, por sua vez, têm a finalidade de garantir dignidade, liberdade e igualdade para todas as pessoas. Sem essas garantias o ser humano não vive – ou sequer sobrevive (2). Assim, são direitos decorrentes do princípio da dignidade da pessoa humana previsto no Artigo 1º, inc. III, da Constituição, sendo que a intimidade e a vida privada também têm previsões constitucionais específicas no Artigo 5º, X (3). O direito à vida privada corresponde ao direito de estar só, ou seja, de poder conviver com quem queira e de poder recusar qualquer aproximação (4). Por outro lado, a intimidade relaciona-se a situações de caráter mais introspectivo da pessoa, “como segredo pessoal, relacionamento amoroso, situação de pudor etc.” (5).
Destaca-se ainda que os direitos fundamentais da Constituição têm relação direta com os direitos da personalidade previstos no Código Civil, pois garantem a dignidade humana. Os direitos da personalidade, como direito à vida, à integridade, à privacidade não precisam estar previstos expressamente em texto de lei para serem considerados pelo Direito (6), visto que decorrem dos atributos físicos, psíquicos e intelectuais essenciais para o desenvolvimento da pessoa humana tutelados por institutos jurídicos específicos (7). Pode-se afirmar, assim, que o regime jurídico dos direitos da personalidade é resultado do encontro entre as determinações do Código Civil e da Constituição (8) cuja violação caracteriza o dano moral, que gera para o agressor o dever de compensar a vítima por meio do pagamento de quantia em dinheiro (9).
E foi justamente o pedido de ressarcimento dos danos morais o objeto de discussão do REsp 1.903.273. Este foi postulado inicialmente na 4º Vara Cível de Curitiba em 29 de outubro de 2015 sob a alegação de violação ao direito de imagem e honra decorrente de divulgação em rede sociais e na mídia de prints das mensagens enviadas pelo autor da ação no WhatsApp. Essa publicação foi feita por um dos membros que, após deixar o grupo, passou a circular sem autorização as capturas de tela em que o autor da ação fez uma série de críticas à gestão de um clube de futebol (10).
Em primeira instância o réu foi condenado ao pagamento de R$5.000,00 de danos morais, decisão confirmada pelo Tribunal de Justiça do Paraná e pelo STJ no REsp 1.903.273. Resumidamente, o STJ entendeu que: (i) “a publicização das conversas acarretou ofensa à imagem e à honra do recorrido”; (ii) “as mensagens enviadas pelo WhatsApp são sigilosas e têm caráter privado. Ao divulgá-las, portanto, o recorrente (réu) violou a privacidade do recorrido (autor) e quebrou a legítima expectativa de que as críticas e opiniões manifestadas no grupo ficariam restritas aos seus membros” e (iii) “O sigilo das comunicações é corolário da liberdade de expressão e, em última análise, visa a resguardar o direito à intimidade e à privacidade, consagrados nos planos constitucional (art. 5º, X, da CF/88) e infraconstitucional (arts. 20 e 21 do CC/02)” (10).
Assim como os citados autores Warren e Brandeis identificaram a necessidade de proteção da privacidade dos indivíduos diante da criação de novas tecnologias, a decisão proferida no REsp 1.903.273, vai no mesmo sentido, pois houve o reconhecimento do aplicativo WhatsApp como um novo espaço de respeito aos direitos da personalidade, como é o caso da intimidade.
Constata-se que o STJ condenou o réu com fundamentação expressa em direitos da personalidade sem tratar especificamente do direito à proteção de dados pessoais. Apesar disso, desde a promulgação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (“LGPD”) em 2018, uma argumentação mais pontual – isto é, pautada na proteção de dados pessoais – para esse tipo de violação passou a ser cada vez mais possível, na medida em que a lei instituiu um sistema geral e específico para os tratamentos de dados pessoais no Brasil.
A LGPD, apesar de ter dado um passo importante na regulamentação do tema e ser responsável por fornecer subsídios para argumentações mais pontuais conforme exposto no parágrafo anterior, não chega a eleger a proteção de dados pessoais como direito fundamental. Entretanto, tem-se em tramitação a PEC nº 17/2019, que propõe, dentre outros temas, a previsão do direito à proteção de dados como direito fundamental expressamente previsto na Constituição. Porém, antes de tratar dessa proposta, destaca-se que a especialização de argumentações jurídicas voltadas para a proteção de dados pessoais teve como base o desenvolvimento de tutela positiva da privacidade e intimidade (como será abordado a seguir), bem como legislações infraconstitucionais existentes antes mesmo da promulgação da LGPD.
2. O direito à proteção de dados pessoais e a PEC nº 17/2019
O direito à intimidade e à privacidade foram originalmente pensados de modo a prever que a mera garantia da abstenção de terceiros e da não invasão dos espaços privados seriam suficientes para a tutela da dignidade humana (11). Tratava-se, portanto, de uma noção negativista desses direitos. Contudo, com a crescente presença massiva de novas tecnologias da informação no cotidiano dos seres humanos, essa noção negativista dos direitos à intimidade e à privacidade se mostrou insuficiente para a efetiva proteção e garantia da dignidade, liberdade e igualdade.
Dessa forma, fez-se necessário o desenvolvimento da noção de tutela positiva da intimidade e privacidade, que se resvalou na proteção dos dados pessoais. Se antes a tutela da privacidade estava ligada apenas à previsão de mecanismos que impediam a interferência de terceiros no âmbito privado do sujeito, com a proteção de dados pessoais, o foco passa para o dever do legislador e dos agentes de tratamento de dados em geral em garantirem que os titulares de dados pessoais tenham o pleno conhecimento sobre as formas de tratamento, finalidade e destino de seus dados e possam exercer o controle sobre as suas próprias informações, além de determinar como bem entenderem a maneira de construir sua esfera particular informacional (12). Essa é a chamada autodeterminação informativa dos titulares dos dados pessoais (13).
A organização de um sistema geral e específico de proteção de dados pessoais no Brasil adveio com a publicação, em 15 de agosto de 2018, da LGPD, que em seu Artigo 2º, inciso II, dispõe como fundamento a própria autodeterminação informativa. Apesar disso, a proteção de dados pessoais já estava prevista anteriormente no ordenamento jurídico brasileiro ainda que de forma não sistematizada em legislações infraconstitucionais como: (i) no Código de Defesa do Consumidor ao dispor sobre regras específicas a respeito do banco de dados e cadastros de consumidores; (ii) a Lei 14.414/2011 que disciplina o cadastro positivo; (iii) na Lei 12.527/2011 que regula o acesso a informações públicas, e no Marco Civil da Internet (14).
Apesar do desenvolvimento de uma noção positiva da intimidade e da privacidade, que consiste na proteção dos dados pessoais cujo fundamento é autodeterminação informativa, tal noção não se encontra prevista de maneira expressa na Constituição.
Dessa forma, foi proposta em março de 2019 pelo Senador Eduardo Gomes (MDB/TO), a PEC nº 17/2019 (15) cujo objetivo consiste em acrescentar o inciso XII-A, ao Artigo 5º, e o inciso XXX, ao Artigo 22, ambos da Constituição para incluir expressamente a proteção de dados pessoais entre os direitos fundamentais do cidadão e fixar a competência privativa da União para legislar sobre a matéria.
Em 31 de agosto de 2021, a PEC nº 17/2019 foi aprovada pela Câmara dos Deputados na forma de um texto alternativo, assinado pelo Relator Dep. Orlando Silva (PCdoB-SP) que incluiu à redação da proposta o acréscimo do inciso XXVI ao Artigo 21 da Constituição para prever também, dentre as competências da União, a organização e fiscalização da proteção e o tratamento de dados pessoais, nos termos da lei (16). Após a aprovação pela Câmara dos Deputados, a PEC retornou para o Senado Federal e até a publicação do presente texto não foi votada novamente.
Em linhas conclusivas, uma vez aprovada, a PEC nº 17/2019, por incluir a previsão expressa da proteção de dados pessoais como um dos direitos fundamentais do cidadão no texto constitucional, além de consagrar a noção positiva do direito à privacidade e à intimidade, reforça e facilita decisões como a proferida por meio do REsp 1.903.273.
Isso porque, uma vez considerada a proteção de dados pessoais como mais um direito da personalidade, o leque argumentativo e as possibilidades para o enquadramento de possíveis violações face às novas tecnologias aumentam de maneira expressiva, visto que o enquadramento não dependeria apenas da intimidade e da privacidade.
Além disso, a aprovação da PEC pela Câmara dos Deputados, ainda que não suficiente para modificar a Constituição, se analisada conjuntamente com o REsp 1.903.273 demonstra desde já harmonia entre os Poderes Legislativo e Judiciário no que se refere à proteção da privacidade, intimidade e proteção de dados pessoais.
O VLF Advogados possui equipe especializada de consultoria em privacidade e proteção de dados pessoais. Caso queira saber mais sobre esse assunto, basta entrar em contato conosco.
Leila Bitencourt
Advogada da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
Felipe Melazzo
Advogado da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
Fernanda Galvão
Sócia-executiva e Coordenadora da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
(1) BRANDEIS, Louis D. WARREN, Samuel D. The right to privacy. Harvard Law Review, v. 4, n. 5, dec. 15, 1890, p. 193-220, p. 195-196, p. 205-206.
(2) SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 180.
(3) “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
(4) PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – v. I/ Atual. Maria Celina Bodin Moraes – 30 ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 216.
(5) DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, v. 1: teoria geral do direito civil. 29 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 150.
(6) Enunciado 274 da Conselho da Justiça Federal: “Os direitos da personalidade, regulados de maneira não-exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, inc. III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana)”.
(7) FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB, volume 1, 13. ed. ver. ampl. E atual. São Paulo: Atlas, 2015, p. 139.
(8) AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 5 ed. Rio de Janeiro: Renovar: 2003, p. 250-251.
(9) CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 10. Ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 90.
(10) SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1903273/PR, Relatora: Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/08/2021. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroOrigem&termo=309270320158160001&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea. Acesso em: 10 set. 2021.
(11) (12) (13) BODIN DE MORAES, Maria Celina; QUEIROZ, João Quinelato de. Autodeterminação informativa e responsabilização proativa. In: Proteção de dados pessoais: Privacidade versus avanço tecnológico. Cadernos Adenauer. Rio de Janeiro, ano XX, n. 3, 2019, p. 113-135.
(14) CUEVA, Ricardo Villas Bôas. A proteção de dados pessoais na Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. In: FRAZÃO, Ana; TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato (Coord.). Lei geral de proteção de dados pessoais e suas repercussões no direito brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 88.
(15) CONGRESSO NACIONAL. Proposta de Emenda à Constituição n° 17, de 2019. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pec-17-2019. Acesso em: 10 set. 2021.
(16) SENADO FEDERAL. Proposta de Emenda à Constituição n° 17, de 2019. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/135594. Acesso em: 10 set. 2021.