As ações de responsabilidade previstas na Lei das S.A.
Fernanda Vidigal
A responsabilização dos administradores das companhias é tema recorrente em pesquisas, artigos, congressos, consultas e pareceres jurídicos. Especialmente em contexto no qual é cada vez maior a preocupação com a proteção de acionistas minoritários (1), compreender as regras que envolvem as condutas dos administradores e as hipóteses e formas de punir comportamentos antijurídicos no âmbito das sociedades anônimas (2) é tarefa de notável relevância.
Como se sabe, a Lei das Sociedades Anônimas (“Lei das S.A.”) (3) estabelece uma série de deveres fiduciários a serem observados pelos administradores, definindo, assim, o padrão de conduta para a sua atuação conforme os interesses sociais, em detrimento de seus interesses individuais. Adicionalmente, a Lei das S.A. prevê regime de responsabilidade civil (4) com a finalidade de garantir o fiel cumprimento desses deveres e reprimir a prática de atos lesivos no exercício dos poderes e atribuições da administração da companhia.
O referido regime é efetivado por meio das conhecidas ações de responsabilidade, previstas no artigo 159 da Lei das S.A., voltadas à reparação de danos causados pelos administradores à companhia, aos acionistas e a terceiros. São divididas em duas principais espécies: a ação social (prevista no caput e nos §3º e §4º do referido artigo 159) e a ação individual (prevista no §7º do mesmo dispositivo), sendo que a primeira, por sua vez, pode ser classificada em ação social uti universi e ação social uti singuli substitutiva e derivada, como se verá adiante.
A principal distinção entre a ação social e a ação individual diz respeito à titularidade do patrimônio que é diretamente prejudicado pelo ato ilícito praticado pelo administrador. Assim, se o dano for causado à sociedade, a ação cabível será a ação social, tendo como objeto a recomposição do patrimônio social. Por outro lado, se o ato danoso atingir o patrimônio do acionista ou de terceiros, caberá a propositura da ação individual e a indenização será direcionada ao acionista ou ao terceiro lesado, conforme for o caso. A seguir, serão apresentadas as principais características de cada espécie de ação e suas respectivas subclassificações.
A ação social pode ser qualificada como uti universi, quando proposta pela própria companhia, ou uti singuli, quando ajuizada pelos acionistas na condição de substitutos processuais em defesa da companhia. Veja-se que, em ambos os casos, a pretensão será sempre a mesma, qual seja, a de reparar um prejuízo causado à esfera da sociedade pela conduta antijurídica praticada pelo administrador. Além disso, para a propositura da ação social, seja ela uti universi, seja uti singuli, será sempre indispensável a prévia deliberação da assembleia geral. Dessa deliberação surgem três possibilidades, conforme abaixo descrito.
(i) Caso a assembleia geral determine que seja ajuizada a ação contra o(s) administrador(es), esta deverá ser promovida pela própria companhia em um prazo de 3 (três) meses contados da respectiva deliberação, nos termos do caput do artigo 159 da Lei das S.A. (5). Trata-se da ação social uti universi.
(ii) Porém, na inércia da companhia em propor a ação dentro do referido prazo, esta poderá ser ajuizada por qualquer acionista, conforme determina o §3º do mesmo dispositivo (6). Nesse caso, restará configurada a ação social uti singuli substitutiva.
(iii) Por fim, caso a assembleia geral delibere pelo não ajuizamento da ação, ela poderá ser proposta por acionistas que representem no mínimo 5% (cinco por cento) do capital social, segundo previsto no §4º do artigo 159 (7). Esta última hipótese caracteriza a chamada ação social uti singuli derivada.
Deve-se refrisar que a ação social é destinada à proteção do patrimônio da sociedade, de modo que, quando proposta pelos acionistas (ação social uti singuli substitutiva ou derivada), estes atuam como substitutos processuais em prol da reparação de dano causado pelo administrador à companhia. Esta possibilidade de agir dos acionistas na defesa do patrimônio social por meio da ação uti singuli é de suma importância para a proteção dos direitos da minoria no contexto societário, haja vista que a propositura da ação uti universi está condicionada a uma aprovação em assembleia geral. (8)
A ação individual, a seu turno, é cabível na ocasião em que a conduta ilícita do administrador prejudica diretamente o patrimônio de um acionista ou de um terceiro. Encontra-se prevista no §7º do artigo 159 da Lei das S.A. (9) e corresponde a prerrogativa do acionista ou terceiro que sofreu o dano independentemente de qualquer deliberação assemblear. Nesse caso, o acionista (e/ou o terceiro) agirá não como substituto processual, mas em defesa de direito próprio, visando à recomposição de seu patrimônio individual.
A Lei das S.A. busca, portanto, proteger não apenas a esfera patrimonial da companhia, mas também de acionistas e terceiros prejudicados por atos ilícitos ocorridos em virtude da administração empresarial. Pretende-se, assim, garantir que esta seja exercida de forma lícita e efetiva, evitando a perpetuação de abusos e a prevalência de interesses individuais sobre os sociais.
O regime de responsabilidade civil estabelecido pela Lei das S.A., envolvendo os deveres fiduciários dos administradores e a possibilidade de responsabilização pelo seu descumprimento, é ao mesmo tempo profilático e remediador. De um lado, orienta a conduta dos administradores e, de outro, permite aos sujeitos prejudicados um caminho para exigir a reparação dos danos causados pela eventual prática de atos antijurídicos no exercício da administração. A aplicação da responsabilidade, no entanto, requer cautela, para que uma boa gestão, em conformidade com os deveres fiduciários, não seja coibida ou tolhida pelo receio de eventuais punições.
Fernanda Vidigal
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) O que se observa do crescente foco em temas de governança corporativa, com o desenvolvimento de relatórios como o Doing Business, do Banco Mundial, e o Corporate Governance Factbook, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”), bem como de medidas legislativas voltadas à proteção dos minoritários, como a recém-publicada Lei nº 14.195/2021.
(2) A temática da responsabilidade civil dos administradores recebe maior atenção no âmbito das sociedades anônimas, tendo em vista que, nesse modelo, ao menos em teoria, há maior distanciamento entre os sócios e o poder de controle sobre a atividade empresarial. Com isso, amplia-se a liberdade de atuação dos administradores, o que, consequentemente, gera um maior risco de desvios de condutas e práticas abusivas.
(3) BRASIL. Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404consol.htm. Acesso em: 23 out. 2021.
(4) O princípio básico da responsabilidade civil dos administradores das companhias é previsto no artigo 158 da Lei das S.A., que assim estabelece: “O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder: I - dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo; II - com violação da lei ou do estatuto”.
(5) “Art. 159. Compete à companhia, mediante prévia deliberação da assembléia-geral, a ação de responsabilidade civil contra o administrador, pelos prejuízos causados ao seu patrimônio.”
(6) “§ 3º Qualquer acionista poderá promover a ação, se não for proposta no prazo de 3 (três) meses da deliberação da assembléia-geral.”
(7) “§ 4º Se a assembléia deliberar não promover a ação, poderá ela ser proposta por acionistas que representem 5% (cinco por cento), pelo menos, do capital social.”
(8) Assim defende Marcelo Von Adamek: “não é usual que a própria companhia venha a processar os seus antigos administradores, pois, de certa forma, isso representa um reconhecimento por parte do controlador de que errou ao escolher pessoa inábil ou desonesta para administrar os negócios. A ação social uti universi não representa, por isso, um instrumento efetivo de proteção da minoria”. ADAMEK, Marcelo Vieira Von. Responsabilidade civil dos administradores de S/A (e as ações correlatas). São Paulo: Saraiva, 2009, p. 367.
(9) “§ 7º A ação prevista neste artigo não exclui a que couber ao acionista ou terceiro diretamente prejudicado por ato de administrador.”