Sucessão empresarial fraudulenta e a extensão da responsabilidade patrimonial
Fernanda de Figueiredo Gomes e Eduardo Metzker Fernandes
O acesso à justiça, garantido pelo art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal (1), em interpretação sistemática, abrange não apenas o simples direito de acessar a jurisdição, mas o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, que permita ao jurisdicionado o real acesso à prestação material pretendida.
No entanto, a realidade é que os credores encontram enorme dificuldade em obter a efetiva satisfação do seu direito quando o processo avança para a fase executiva. Este fato é comprovado pelo “Relatório Justiça em Números 2021”, recentemente divulgado pelo CNJ (2). No estudo, verificou-se que, embora sejam ajuizados duas vezes mais processos de conhecimento do que de execução, no acervo o volume de execuções é 32,8% maior, o que evidencia que esses casos geralmente não são solucionados de maneira célere.
Parte da dificuldade em se alcançar a tutela satisfativa na execução pode ser atribuída aos estratagemas adotados pelos devedores para impedir que os credores tenham acesso ao seu patrimônio.
É justamente por isso que o legislador criou alguns institutos que visam coibir a prática de esvaziamento de patrimônio pelo devedor com o objetivo de frustrar o direito do credor. É o caso, por exemplo, da Desconsideração da Personalidade Jurídica, disposto no art. 50 do Código Civil (3), que permite que a esfera patrimonial do sócio da empresa seja alcançada se configurada confusão patrimonial ou desvio de finalidade.
Contudo, verificou-se com o passar do tempo o desenvolvimento de mecanismos mais sofisticados para promover o esvaziamento do patrimônio da pessoa jurídica devedora. Observou-se com alguma frequência que as empresas devedoras passaram a transferir os seus negócios e os seus bens para pessoa jurídica terceira, que continuava a exercer a mesma atividade econômica livre das dívidas contraídas pela devedora. Dessa forma, a relação direta e evidente entre a pessoa jurídica e seu sócio fica escondida pela participação de uma outra pessoa jurídica, cujo vínculo com a devedora nem sempre é evidente.
Não se trata, propriamente, de uma hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, pois ela pressupõe um desvio de finalidade ou uma confusão entre o patrimônio dos sócios e o da sociedade, autorizando excepcionalmente que o patrimônio pessoal dos sócios responda pelo débito da sociedade. Nesses casos, todavia, a manobra não implica no deslocamento do patrimônio do devedor para o de seus sócios, mas sim para pessoa jurídica terceira, de forma que o instituto não se aplicaria diretamente à hipótese fática em questão.
A prática da alienação do estabelecimento, isto é, do complexo de bens organizado para o exercício da empresa, é absolutamente regular e encontra expressa previsão legal no art. 1.143 do Código Civil:
Art. 1.143. Pode o estabelecimento ser objeto unitário de direitos e de negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam compatíveis com a sua natureza.
Esse negócio jurídico, todavia, pressupõe a transferência não só dos ativos, mas também do passivo da sociedade, já que o adquirente responde pelos débitos anteriores à transferência, nos termos do art. 1.146 do Código Civil:
Art. 1.146. O adquirente do estabelecimento responde pelo pagamento dos débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados, continuando o devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de um ano, a partir, quanto aos créditos vencidos, da publicação, e, quanto aos outros, da data do vencimento.
Muitas vezes, porém, a transferência do complexo de bens se dá de modo informal, inteiramente desacompanhada de um negócio jurídico como o previsto nos artigos citados acima, e isso ocorre especialmente com o objetivo de camuflar a transferência e dificultar o acesso dos bens do devedor pelo credor.
A partir dessas situações, a doutrina e a jurisprudência vêm avançando no sentido de estender a responsabilidade patrimonial diante da configuração de uma hipótese de fraude à execução, prevista no art. 792, IV, do Código de Processo Civil (4), que é denominada de sucessão empresarial fraudulenta:
Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:
I - quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver;
II - quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828;
III - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude;
IV - quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência;
V - nos demais casos expressos em lei.
Efetivamente, já há alguns anos, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) admite a sucessão empresarial fraudulenta como causa para a extensão de responsabilidade na fase executória de ações de natureza cível. Foi o entendimento que prevaleceu no julgamento do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 479102/ RJ de 3 de maio de 2018 (5).
Apesar de o estabelecimento da tese da extensão da responsabilidade, a realidade é que, na prática, os credores ainda encontravam grande dificuldade no redirecionamento da execução para o novo titular dos bens, pois a manobra dos devedores quase sempre se dá sem maiores registros e lastros, dificultando a obtenção de informações e provas pelos credores.
Com efeito, é tarefa árdua obter acesso ao negócio jurídico que propicia a transferência dos ativos, haja vista que muitas vezes ele sequer é formalizado pelos envolvidos, e nos casos em que formalmente celebrado, a documentação fica na posse dos envolvidos, que não têm interesse algum em disponibilizá-la.
Visando garantir o direito dos exequentes e coibir essa prática fraudulenta, recentemente, o STJ, no julgamento do Agravo Interno no Recurso Especial 1874250/RS (6), considerou ser desnecessária a comprovação formal da transferência de bens e direitos à nova sociedade. Nesse sentido, concluiu ser suficiente para a presunção da fraude que seja demonstrado que a nova empresa prosseguiu na exploração da mesma atividade econômica, no mesmo endereço e com o mesmo objeto social.
No caso em julgamento, foi reconhecida a sucessão empresarial fraudulenta diante de semelhanças no nome empresarial e no seguimento empresarial explorado pelas sociedades envolvidas no litígio. Ainda, identificou-se que ambas estavam sediadas no mesmo endereço e possuíam filial no mesmo local. Nesse contexto, concluiu o STJ que “não há dúvida de que os fatos previamente delineados na origem apontam para a existência de sucessão empresarial fraudulenta, sendo o termo ‘sucessão’ aqui utilizado em sentido lato”.
A presunção admitida pelo STJ parece permitir a superação dos óbices probatórios brevemente relatados nessa reflexão.
À vista do exposto, é possível concluir que a decisão parece dar um passo certo na direção da concretização da garantia do acesso à tutela jurisdicional efetiva e do fortalecimento do combate à prática de fraude à execução, que causa enormes prejuízos aos jurisdicionados.
Em outras palavras, o precedente do STJ nos coloca mais próximos do verdadeiro acesso à justiça, aquele em que o jurisdicionado efetivamente alcança a prestação material pretendida.
Fernanda de Figueiredo Gomes
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Eduardo Metzker Fernandes
Coordenador da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) BRASIL. Constituição da República Federal do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 17 out. 2021.
(2) CNJ. Justiça em Números 2021. Brasília, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/relatorio-justica-em-numeros2021-081021.pdf. Acesso em: 17 out. 2021.
(3) BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil (CC). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 17 out. 2021.
(4) BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil (CPC). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 17 out. 2021.
(5) STJ. AgInt no AgInt no AREsp 479.102/RJ, Rel. Ministro Gurgel De Faria, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20/03/2018, DJe 03/05/2018
(6) STJ. AgInt no REsp 1874250/RS, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/12/2020, DJe 18/12/2020