Lei de Improbidade Administrativa é reformada e deve beneficiar os réus
Bruno Fontenelle e Maria Tereza Fonseca Dias
Em 26 de outubro, a presidência da república sancionou a Lei nº 14.230/2021, responsável por alterar a Lei nº 8.429/1992, que dispõe sobre improbidade administrativa. Conforme nova redação, somente a conduta dolosa será capaz de condenar agentes públicos pelos crimes de improbidade.
A mudança mais relevante promovida pela Lei nº 14.230/2021 refere-se à alteração do art. 3º, da Lei nº 8.429/1992, que prescreve que o ato de improbidade poderia ser caracterizado mediante culpa ou dolo do agente. A nova redação determina que o enquadramento agora ocorra tão somente nos casos de comprovado dolo, ou seja, nos casos em que o agente induza ou concorra para a prática do ato com a intenção de enriquecimento ilícito, dano ao erário ou violação dos princípios da Administração pública, listados no rol de incisos dos artigos 9º, 10 e 11 da Lei de Improbidade.
Conforme art. 1º, §2º, da Lei nº 8.429/1992, considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 da Lei, não bastando a voluntariedade do agente. Deste modo, condutas consideradas culposas, ou seja, decorrentes de ações praticadas com imprudência, negligência e imperícia não estarão mais sujeitas à penalização. Passou a constar expressamente da lei, conforme redação dada ao art. 17-C, § 1º, que “a ilegalidade sem a presença de dolo que a qualifique não configura ato de improbidade”.
Ademais, conforme §8º, da nova redação do artigo 1º, “não configura improbidade a ação ou omissão decorrente de divergência interpretativa da lei, baseada em jurisprudência, ainda que não pacificada, mesmo que não venha a ser posteriormente prevalecente nas decisões dos órgãos de controle ou dos tribunais do Poder Judiciário”. Tal norma está de acordo com o art. 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que delimita que a revisão de ato administrativo cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, não podendo tal revisão surtir seus efeitos de maneira retroativa.
Tendo em vista as modificações benéficas da legislação, considerando as regras precedentes, indaga-se acerca da retroatividade das regras da Lei nº 14.230/2021 para beneficiar os atuais réus, pois o texto legal não previu expressamente essa possibilidade.
O Ministério Público Federal (“MPF”), por meio da Orientação nº 12, da 5ª Câmara de Combate à Corrupção, defende que o art. 37, § 4º, da Constituição, veda o retrocesso no combate à corrupção e impede a retroatividade das normas mais benéficas da Lei de Improbidade Administrativa para beneficiar os atuais réus (1).
O Conselho Federal da OAB, voltando-se contra a edição desta Orientação do MPF, apresentou pedido de suspensão desta orientação no Conselho Nacional do Ministério Público (“CNMP”), arguindo, em síntese, que o Direito Sancionador – independente da esfera punitiva – deve nortear-se pelo postulado da retroatividade da norma mais favorável ao réu (princípio da reformatio in melius), previsto como garantia fundamental no art. 5º, XL, da CF/88, que estabelece que “lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (2).
Contudo, mesmo diante desta aparente divergência, apesar de não haver norma expressa contida na Lei nº 14.230/2021 acerca de sua retroatividade, é importante destacar dois argumentos jurídicos relevantes que a determinam.
O primeiro é que o art. 37, § 4º, da CF/88, não trata da questão da irretroatividade da legislação e nem mesmo da instituição de um sistema de combate à corrupção, mas tão somente da previsão dos atos de improbidade administrativa, suas respectivas sanções e da necessidade de edição de legislação específica sobre o assunto (3).
O segundo argumento, na linha do que defende o CFOAB, é que há precedentes do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) que tratam da possibilidade de aplicação retroativa da atual redação da Lei de Improbidade com base no artigo 5º, XL, da Constituição, permitindo que norma sancionadora retroaja quando for para beneficiar o administrado.
Conforme estabelecido na decisão RMS 37.031-SP, entendeu-se que o tema relacionado à retroatividade “insere-se no âmbito do Direito Administrativo sancionador e, segundo doutrina e jurisprudência, em razão de sua proximidade com o Direito Penal, a ele se estende a norma do artigo 5º, XVIII, da Constituição da República, qual seja, a retroatividade da lei mais benéfica”. Veja-se a ementa deste julgado:
DIREITO ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA AO ACUSADO. APLICABILIDADE. EFEITOS PATRIMONIAIS. PERÍODO ANTERIOR À IMPETRAÇÃO.IMPOSSIBILIDADE. SÚMULAS 269 E 271 DO STF. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973. APLICABILIDADE.
[...]
III – Tratando-se de diploma legal mais favorável ao acusado, de rigor a aplicação da Lei Municipal n. 13.530/03, porquanto o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no art. 5º, XL, da Constituição da República, alcança as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador. Precedente.
IV – Dessarte, cumpre à Administração Pública do Município de São Paulo rever a dosimetria da sanção, observando a legislação mais benéfica ao Recorrente, mantendo-se indenes os demais atos processuais.
[...]
(RMS 37.031/SP, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/02/2018, Dje 20/02/2018)
Deste modo, deverá ser aplicada a nova redação da Lei de Improbidade aos casos em curso, devendo ser extintas as ações considerando, notadamente, os casos de ausência de imputação de conduta dolosa aos agentes, além das alterações dos prazos prescricionais, discutidas no artigo “Alterações na Lei de Improbidade Administrativa, trazidas pela Lei nº 14.230/21, sob a ótica processual” deste Informativo.
Bruno Fontenelle
Advogado da Equipe de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
Maria Tereza Fonseca Dias
Sócia-executiva e Coordenadora da Equipe de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
(1) BRASIL. Ministério Público Federal. Orientação Normativa nº 12. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/PGR00413785.2021Orientao12.20215CCRLIA.pdf. Acesso em: 24 nov. 2021.
(2) CFOAB. Ref. Orientação n. 12/2021 – 5ª CCR – Pedido de Liminar. In: HIGIDIO, José. Reclamação ao CNMP: OAB pede suspensão de orientação do MPF contra nova Lei de Improbidade. Consultor Jurídico, 17 nov. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/oab-suspensao-orientacao-mpf-lei.pdf. Acesso em: nov. 2021.
(3) Veja-se a redação do dispositivo, que em nada se alinha ao impedimento de retroatividade de nova legislação acerca da improbidade administrativa. “Art. 37 [...] § 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.”