A reforma da Lei de Improbidade Administrativa e os reflexos nas sociedades e sócios
Fernanda Vidigal
Muito tem-se discutido acerca das alterações promovidas na Lei de Improbidade Administrativa (“LIA”) (1) pela Lei nº 14.230, publicada em 25 de outubro de 2021 (a seguir referida como “Reforma da LIA”) (2). A edição anterior do Informativo VLF (3) contou com análises sobre (i) a retroatividade das novas regras para beneficiar os réus; (ii) a previsão do princípio do non bis in idem para a aplicação de sanções previstas na LIA e na Lei Anticorrupção (4); e (iii) as principais mudanças processuais trazidas pela Reforma da LIA. O presente artigo pretende, agora, examinar os reflexos dessa reforma do ponto de vista das sociedades e de seus sócios.
A LIA é direcionada essencialmente a sancionar os atos de improbidade administrativa praticados pelos agentes públicos no exercício de suas funções, com o objetivo de resguardar a integridade do patrimônio público e social (5), em atenção ao mandamento do art. 37, §4º, da Constituição Federal (6). No entanto, para garantir a completa tutela da probidade na organização do Estado, mesmo antes da Reforma da LIA, suas disposições já eram aplicáveis aos agentes privados que induzissem ou concorressem para a prática do ato de improbidade, conforme determinação genérica prevista no texto legislativo anterior (7).
Nesse contexto, a Reforma da LIA foi inovadora ao regular expressa e especificamente a responsabilização de sócios, cotistas, diretores e colaboradores de pessoas jurídicas de direito privado (art. 3º, §1º) (8), bem como ao prever, de forma explícita, a sucessão empresarial da obrigação de reparar o dano causado ao erário nas hipóteses de alteração contratual e reorganização societária (art. 8º-A) (9). Houve, ainda, a menção à possibilidade de instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica (art. 16, §7º, e art. 17, §15) (10). A seguir, analisa-se cada uma dessas inovações.
Em relação à responsabilização de sócios, cotistas, diretores e colaboradores de pessoas jurídicas de direito privado, a redação anterior da LIA não fazia qualquer referência às hipóteses de aplicação de suas sanções a tais agentes. Na ausência dessa regulamentação era comum que as ações de improbidade administrativa fossem ajuizadas também contra os sócios e diretores de sociedades, em razão do simples fato de ocuparem as referidas posições.
A nova redação da LIA, então, fixou os parâmetros para a responsabilização do sócio, cotista, diretor ou colaborador, determinando que estes somente responderão em caso de comprovada participação e benefícios diretos no ato de improbidade, bem como nos limites de sua participação. Isto é, aquele que não tenha contribuído para a prática do ato pela pessoa jurídica ou que dele não tenha diretamente se beneficiado não deverá sofrer qualquer sanção. A nova regra, assim, busca garantir maior segurança jurídica na aplicação da LIA aos agentes privados e evitar a confusão entre as esferas dos sócios e das sociedades.
Quanto à sucessão empresarial da obrigação de reparar o dano causado ao erário, prevista na LIA, nos casos de alteração contratual e reorganização societária, o tema também não havia sido originalmente tratado pelo legislador. A nova disposição implementada pela Reforma da LIA veio, portanto, estabelecer as hipóteses e os requisitos que autorizam a extensão de responsabilidade decorrente de ato de improbidade administrativa em operações de fusão, incorporação, cisão, transformação e alterações contratuais.
Da leitura do novo art. 8º-A, caput e parágrafo único, observa-se que a sucessão empresarial é prevista de maneira restrita, abrangendo tão somente a obrigação de reparação do dano causado, até o limite do patrimônio transferido. Desse modo, a regra contribui para que haja maior previsibilidade nas operações societárias, permitindo o conhecimento prévio dos encargos a serem transmitidos e o cálculo do risco empresarial. Além disso, as demais sanções previstas na LIA não poderão ser imputadas à sociedade sucessora em virtude de atos de improbidade praticados pela sucedida (11), o que é salutar considerando-se o caráter pessoal das penas (12).
Não se pode deixar de notar que a regra é similar àquela prevista no art. 4º da Lei Anticorrupção (13), com a ressalva de que, nesta, a sucessão ocorre não apenas quanto à obrigação reparatória do dano, mas também em relação ao pagamento de multa. Ademais, a Lei Anticorrupção previu a solidariedade entre sociedades controladoras, controladas, coligadas ou consorciadas, o que não se observa no texto da LIA.
Outra novidade trazida pela Reforma da LIA diz respeito à aplicação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, disciplinado nos art. 133 a 137 do Código de Processo Civil. A menção ao incidente pode ser identificada tanto no art. 16, §7º, da LIA, referente à decretação de indisponibilidade de bens, como em seu art. 17, §15, que trata dos procedimentos a serem observados para a ação de improbidade administrativa.
Em síntese, tais dispositivos determinam que o patrimônio pessoal dos sócios e dirigentes das pessoas jurídicas poderá ser atingido em caso de atos de improbidade a ela imputados, desde que devidamente instaurado o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Com isso, torna-se exigível a comprovação do abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial (14). Mais uma vez, verifica-se a intenção da Reforma da LIA de delimitar a responsabilização de sujeitos privados pela prática de atos de improbidade, garantindo maior segurança para a sua aplicação.
É inegável a necessidade e a relevância da punição pela prática de atos de improbidade administrativa, não apenas de agentes públicos como também de sujeitos privados. Trata-se, na verdade, da efetivação da defesa da Administração Pública, constitucionalmente estabelecida. A responsabilização de sócios e sociedades, todavia, requer prudência, e, principalmente, segurança jurídica, tendo em vista a sua repercussão no funcionamento do mercado e nas relações econômicas.
Justamente por isso, são importantes as novas disposições trazidas pela Reforma da LIA, ao especificarem as hipóteses de aplicação de seu regime sancionatório aos agentes privados. Contribuem, assim, pela busca por maior segurança e previsibilidade na esfera empresarial, bem como pela não proliferação de decisões arbitrárias e condenações temerárias.
Fernanda Vidigal
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) BRASIL. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm. Acesso em: 23 dez. 2021.
(2) BRASIL. Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14230.htm. Acesso em: 23 dez. 2021.
(3) Informativo VLF nº 86/2021, de 26 de novembro de 2021. Disponível em: http://www.vlf.adv.br/newsletter.php. Acesso em: 22 dez. 2021.
(4) BRASIL. Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm. Acesso em: 23 dez. 2021.
(5) Essa noção pode ser extraída dos artigos 1º e 2º da LIA.
(6) Constituição Federal, art. 37, §4º: “Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.
(7) Conforme a redação anterior do art. 3º da LIA.
(8) “Art. 3º (...) § 1º Os sócios, os cotistas, os diretores e os colaboradores de pessoa jurídica de direito privado não respondem pelo ato de improbidade que venha a ser imputado à pessoa jurídica, salvo se, comprovadamente, houver participação e benefícios diretos, caso em que responderão nos limites da sua participação. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)”.
(9) “Art. 8º-A A responsabilidade sucessória de que trata o art. 8º desta Lei aplica-se também na hipótese de alteração contratual, de transformação, de incorporação, de fusão ou de cisão societária. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)
Parágrafo único. Nas hipóteses de fusão e de incorporação, a responsabilidade da sucessora será restrita à obrigação de reparação integral do dano causado, até o limite do patrimônio transferido, não lhe sendo aplicáveis as demais sanções previstas nesta Lei decorrentes de atos e de fatos ocorridos antes da data da fusão ou da incorporação, exceto no caso de simulação ou de evidente intuito de fraude, devidamente comprovados. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)”.
(10) “Art. 16 (...) § 7º A indisponibilidade de bens de terceiro dependerá da demonstração da sua efetiva concorrência para os atos ilícitos apurados ou, quando se tratar de pessoa jurídica, da instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, a ser processado na forma da lei processual. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)”.
“Art. 17 (...) § 15. Se a imputação envolver a desconsideração de pessoa jurídica, serão observadas as regras previstas nos arts. 133, 134, 135, 136 e 137 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil). (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)”.
(11) Salvo em caso de simulação ou de evidente intuito de fraude, devidamente comprovados, conforme o art. 8º-A, § único, da LIA.
(12) Conforme previsto no art. 17-D da LIA.
(13) Lei Anticorrupção, art. 4º: “Subsiste a responsabilidade da pessoa jurídica na hipótese de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária. § 1º Nas hipóteses de fusão e incorporação, a responsabilidade da sucessora será restrita à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado, até o limite do patrimônio transferido, não lhe sendo aplicáveis as demais sanções previstas nesta Lei decorrentes de atos e fatos ocorridos antes da data da fusão ou incorporação, exceto no caso de simulação ou evidente intuito de fraude, devidamente comprovados. § 2º As sociedades controladoras, controladas, coligadas ou, no âmbito do respectivo contrato, as consorciadas serão solidariamente responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei, restringindo-se tal responsabilidade à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado”.
(14) Nos termos do art. 50 do Código Civil.