O dever de indenizar por descumprimento contratual em recente decisão do STJ e a importância da previsão de multa em contratos
Leila Bitencourt e Fernanda Galvão
Foi publicada, recentemente, decisão do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) que entendeu que o descumprimento do contrato não gerou o dever de indenizar para a parte infratora, com destaque para a fundamentação apresentada pela 4ª Turma no sentido de que, ainda que tenha havido a demonstração do descumprimento contratual, não houve a comprovação do dano. A despeito da relevância do tema julgado, esse entendimento não é novidade porque nada mais é do que resultado da aplicação direta do art. 403 (1) do Código Civil.
Ainda assim, este texto é um convite para análise sobre como essa decisão se relaciona com a multa contratual, por meio da diferenciação entre o dever de indenizar e a obrigação de pagar o valor da cláusula penal pela parte infratora. Isso porque tal abordagem pode contribuir para a adoção de importantes estratégias no momento da elaboração do contrato e estipulação de determinadas cláusulas.
Primeiramente, em relação ao dever de indenizar, destaca-se que as normas aplicáveis estão contidas no instituto da responsabilidade civil, que, por sua vez, pode ser definida de forma geral como “o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente de outro dever jurídico” (2). Essa responsabilidade pode ser dividida em duas espécies: a extracontratual e a contratual, em que a origem é apontada por parte da doutrina como principal fator que as diferenciam.
A primeira decorre de um ato ilícito, ou seja, de ação que é contrária ao ordenamento jurídico. Por exemplo, alguém alcoolizado dirigindo perigosamente um veículo atropela uma pessoa e fica obrigado a reparar todos os danos e prejuízos sofridos pela vítima. Por sua vez, a segunda deriva do descumprimento de obrigação assumida previamente pelo devedor face ao credor, sendo o contrato o instrumento mais recorrentemente mencionado como exemplo. Neste último caso, o dever de reparar existe somente se não houver interesse ou utilidade para o credor que o devedor execute, ainda que tardiamente, a prestação descumprida (3).
Essas noções relacionam-se com o acórdão proferido pelo STJ no Recurso Especial nº 1.911.383/RJ (“Acórdão”) porque nesse caso foi verificada a existência de responsabilidade civil contratual em fornecimento de software feito por uma empresa de informática para uma seguradora. Em síntese, a fornecedora ajuizou ação com pedido de indenização face à seguradora com o fundamento de que esta última descumpriu o contrato ao distribuir 30 mil cópias do programa contratado para seus corretores, sem cumprir a obrigação prevista em contrato, de avisar previamente a empresa de software (4).
Dentre outros vários temas discutidos nesse caso, destaca-se parte do Acórdão a seguir: “Para o surgimento do dever de indenizar, todavia, o inadimplemento da obrigação é insuficiente. Faz-se necessário, também, a demonstração do prejuízo e do nexo de causalidade existente entre este e o incumprimento (art. 403 do C/02). A indenização atribuída a quem nada sofreu, ou além do que tenha sofrido, importaria em enriquecimento injustificado (ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 181)” (5).
Constata-se, assim, que ao aplicar a determinação do art. 403 do Código Civil de 2002 de que o descumprimento de obrigação somente gera perdas e danos se causar direta e imediatamente prejuízos efetivos e lucros cessantes, o STJ não condenou a parte infratora do contrato porque os prejuízos alegados não foram comprovados. Conforme o Acórdão em questão, ainda que a seguradora tivesse cumprido a obrigação de avisar para a outra parte que distribuiu as cópias do software, a fornecedora não faria jus a nenhum valor a mais por isso (5). Porém, se houvesse previsão de multa contratual nessa mesma situação, o resultado seria diferente.
Antes de adentrar nesse aspecto, é importante destacar que a multa prevista em contrato é disciplinada no Capítulo V do Código Civil intitulado “Da Cláusula Penal”, sendo aplicável quando há atraso ou descumprimento culposo do devedor de alguma obrigação que assumiu face ao credor, conforme define os artigos 408 e 410 do mesmo diploma normativo. Ressalta-se ainda que, para que o devedor inadimplente esteja obrigado a pagar a multa, não é preciso haver a comprovação dos danos gerados, nos exatos termos do que prevê o caput do art. 416 do Código Civil. Isto é, o surgimento da obrigação de o devedor pagar o valor previsto na cláusula penal decorre simplesmente da comprovação de que houve descumprimento obrigacional pelo devedor. Isso porque a presunção é a de que o dano é sempre existente nessa hipótese, ou seja, não admite prova em contrário (6).
Com isso, é possível afirmar que, se houvesse previsão de multa no caso do Acórdão analisado, seria possível que a empresa de software pudesse exigir o valor da penalidade mesmo sem a comprovação de prejuízos decorrentes do descumprimento contratual.
No entanto, é preciso ressalvar que se a previsão da cláusula penal nesse caso previsse que além da multa caberia também indenização por perdas e danos, em relação a esse valor suplementar deveria haver, necessariamente, a comprovação dos prejuízos causados (7). Esse tipo de multa é comumente designado nos contratos como multa não compensatória. Isso porque, nesse caso, a cláusula penal é uma prefixação mínima dos danos a serem ressarcidos, nos termos do parágrafo único do art. 416 do Código Civil. Porém, se a cláusula não previr essa possibilidade, o pagamento da multa corresponderá ao pagamento de todos os prejuízos gerados pelo inadimplemento, ainda que a apuração de danos sofridos pela outra parte seja maior do que o valor da penalidade (7). Esse tipo de multa é normalmente referido nos contratos como multa compensatória.
Considerando, portanto, o cenário analisado, é possível concluir que a previsão de multa contratual é ferramenta de extrema relevância nas relações contratuais pois ela tem a função de motivar o cumprimento das obrigações contratuais, na medida em que permite exigir mais rapidamente o pagamento de valores da parte infratora porque não é preciso haver a apuração de perdas e danos, como acontece na responsabilidade civil contratual. Por fim, a depender da forma como essa penalidade é prevista no contrato, o valor pago a título de cláusula penal pode significar a compensação por todos os danos gerados pelo inadimplemento ou o valor mínimo a ser pago pelo descumprimento obrigacional, de modo que, neste último caso, a comprovação das perdas e danos passa a ser indispensável para que a parte prejudicada possa obrigar a outra a pagar valores que ultrapassarem a quantia prevista na multa contratual.
A estipulação de cláusulas específicas nos contratos pode evitar prejuízos e judicialização nos casos de descumprimento contratual. Por isso, uma consultoria preventiva é muito relevante nas negociações de contratos. Caso necessite de auxílio na elaboração e revisão de contratos, basta entrar em contato com nossa equipe especializada em contratos.
Leila Bitencourt
Advogada da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
Fernanda Galvão
Sócia-executiva e Coordenadora da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
(1) Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.
(2) CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 14.
(3) NEVES, José Roberto de Castro. Direito das Obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro: GZ Ed., 2009. p. 278-279.
(4) SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Indenização por violação de obrigação contratual exige prova de prejuízo e nexo causal. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/24112021Indenizacao-por-violacao-de-obrigacao-contratual-exige-prova-de-prejuizo-e-nexo-causal.aspx. Acesso em: 15 dez. 2021.
(5) SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1911383/RJ, Relatora: Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, publicado no DJE em 8/10/2021. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=136519777®istro_numero=202003316136&peticao_numero=-1&publicacao_data=20211008&formato=PDF. Acesso em: 15 dez. 2021.
(6) BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin; TEPEDINO, Gustavo. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 762-763.
(7) SILVA, Caio Mário da. Instituições de Direito Civil – Vol. II – Teoria Geral das Obrigações. 29. ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 162-163.